Tesouro encontrado.( Luís Paulo- morador de rua).
A fome corrói não só as vísceras, mas também a honra de um ser humano. Muitos conhecem a dor da miséria, poucos fingem que ela não existe. Assim é mais fácil maquiar o cenário da cidade maravilhosa, jogando todas as mazelas para debaixo do tapete persa que cobre os pisos dos luxuosos gabinetes e escritórios políticos.
Para onde vai tanta verba, tanto dinheiro que nunca consegue atingir e beneficiar as camadas mais vulneráveis da população?
Penso que somos invisíveis aos olhos destes e dos demais que desfilam por aí exibindo seus carrões importados, joias e roupas de marcas. Onde foi parar aquela passagem bíblica em que Deus fala para seus filhos terrenos: "Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração."
Esquecida na mente dos humanos, semelhante a móveis velhos empilhados num pequeno cômodo de uma casa abandonada, onde só a poeira circula e as teias de aranha se acumulam por todos os lados.
Ajuntar tesouro no céu no meu humilde conceito é particar os ensinamentos de Jesus Cristo, entre eles: partilhar o pão e vestir aqueles que tem frio.
Entretanto, isso ocorre com certa escassez por aqui.
Eu, diante dessas pessoas empoderadas e cheias de si, que mais se assemelham a estátuas: bonitas por fora, frias e desprovidas de coração, sou o famoso João ninguém e não o Luís Paulo, homem alagoano que deixou sua terra natal para trás e "ganhou o mundo" em busca de boas oportunidades de emprego.
Vi na migração interna a chance de mudar de vida. Sonhei em conquistar meu espaço e, munido de coragem, fui em busca do que almejei. Antes não tivesse feito, hoje me arrependo amargamente. Deixei esposa e filhos para trás e acabei frustrado, vivendo nas ruas, dormindo em qualquer lugar, catando no lixo restos para saciar minha fome.
Caminhando pelas ruas da Lapa, reduto da boemia, adentrando a madrugada, disputo com os ratos as migalhas deixadas nas lixeiras.
Se eu fosse nomear a minha vida, "Soneto da Desesperança" seria perfeito para descrevê-la.
Meus pés doem, calço um sapato menor que o meu número, fruto de uma doação, uma vez que os meus antigos estavam em péssimo estado.
Atravesso a faixa de pedestres e sigo caminhando solitário pela rua Teixeira de Freitas, chego perto do Passeio Público.
Ando clamando aos céus para que o amanhã seja melhor do que o hoje.
_ Agradece, Luís Paulo, poderia estar chovendo.- murmuro sozinho.
Ando rente ao gradil que cerca o parque inaugurado no séc XVIII, situado nas proximidades da Cinelândia.
De longe, vejo uma pequena caixa de papelão. Me aproximo um pouco e percebo que o recipiente feito de fibra de celulose está se mexendo.
Meu coração aperta.
" Algum desalmado deve ter jogado filhotinhos de cão ou gato na rua. Agora virou "moda": não quer os animais, descarta na rua, como se os bichinhos fossem um monte de resíduos sem utilidade."
- penso eu.
Apresso os meus passos para tentar ajudar os prováveis animaizinhos. Não é a primeira vez que presencio algo deste tipo. Alguns monstros revestidos de pele humana colocam as indefesas criaturas em sacolas e amarram a boca, para que os animais morram sufocados.
Aproximo-me e remexo na montoeira de panos. Então, um grito fica entalado na minha garganta enquanto um choro de criança recém-nascida quebra o silêncio.
Fico apavorado, olho ao redor e nenhum sinal de quaisquer pessoas.
_ Meu Deus! O que eu faço agora?- sibilo perplexo
Meu corpo treme por inteiro. Penso em pegar o pequeno bebê, mas temo machucá-lo, pois faz anos que não pego uma criança no colo.
Respiro fundo e pego a caixa com essa inocente vida dentro. Com cuidado, caminho apressado buscando encontrar alguma ajuda.
Aflito e sem encontrar uma alma bondosa para socorrer a criança, desço até a Praça Quatro de Julho, onde costuma sempre haver uma viatura da polícia militar estacionada.
Chego perto dos dois agentes públicos arfando, com o coração batendo na garganta e os pulmões ardendo.
_ Boa noite, preciso de ajuda. Acabei de encontrar essa criança abandonada na calçada do Passeio Público. — falo, estendendo a caixa com todo cuidado na direção dos dois homens que já estavam com a mão em contato com suas armas.
Eles me olham cheios de receio, até o pequeno inocente começar a se esgoelar outra vez.
Rapidamente embarcamos na viatura. Primeiro fomos ao hospital, pois a criança precisava de atendimento médico, podendo estar sofrendo de hipotermia.
Por lá, fico sabendo que o bebê é uma menina que ainda tinha consigo o cordão umbilical e restos de placenta. A pobre alma nascera há poucas horas. Depois, sou levado para a Delegacia para poder prestar depoimento e, de certa forma, ajudar com fatos para a investigação que irá iniciar-se.
Quando finalmente fui liberado pelo delegado de plantão, o crepúsculo dominava. Respondi a tantas perguntas feitas de diversas formas diferentes. Talvez tenham pensado que eu pudesse ter sequestrado aquela criatura inocente, no entanto, fui enfático e firme em todas as minhas respostas.
_ Deus, que o senhor cuide bem daquela criança e lhe reserve o melhor da vida.- peço numa oração silenciosa.
Caminho sem rumo e o tempo voa.
São por volta das duas da tarde quando sou abordado por uma equipe de reportagem. Eles querem saber detalhes de como encontrei o bebê.
Tímido e sem jeito para falar com pessoas tão educadas, conto o que ocorreu. A repórter, muito solícita, procura saber mais sobre minha vida. Entre lágrimas, conto tudo o que aconteceu comigo nesses sete anos que estou aqui no Rio.
Minha história de vida comove o cinegrafista, que, após o término da gravação, se prontifica a me doar uma passagem de volta para Alagoas.
Eu me vi envolto em lágrimas de alegria. A esperança voltou a florescer dentro de mim.
A vida é doce e amarga, bipolar.
Uma mãe para uns e carrasca para outros.
Nesse exato momento que estou dentro de um ônibus confortável, limpo e vestindo roupas novas, vejo a vida me sorrir.
Respiro embalado pela felicidade que afaga minha alma, os tempos de tortura acabaram, agora é o momento de mansidão.
A única lembrança boa que levarei comigo da tal cidade maravilhosa, é a de eu ter feito a diferença na vida daquela menina.
Aprendi a minha lição, nunca mais me aventuro a sair do meu estado, nunca mais quero saber de fazer migração interna.
Sinto a dignidade retornar a cada célula do meu ser.