Carol
O sol da Rocinha queimava minha pele enquanto eu estendia as roupas no varal improvisado no fundo da casa de Gabriel. Fazia uma semana desde que me mudei pra cá, e cada dia parecia mais sufocante que o anterior. A mansão dele, por fora, parecia o topo do poder, mas por dentro... era uma prisão de luxo.
As paredes eram lisas, frias, e os olhos de Gabriel me seguiam mesmo quando ele não estava por perto. Ele não deixava claro o que queria de mim, mas eu sabia que não era amor. Era posse. Controle. Ele era o tipo de homem que gostava de saber que eu estava ali, respirando sob as regras dele.
— Precisa de ajuda aí? — uma voz feminina me chamou atenção.
Virei, surpresa. Uma mulher bonita, da minha idade, pele morena e cabelos cacheados presos num coque bagunçado, sorria pra mim com naturalidade. Usava uma camiseta larga e uma bermuda jeans, e parecia... normal.
— Você é a esposa do patrão, né? — ela completou, se aproximando.
Assenti, ainda cautelosa. — Sou. E você?
— Luciana. Trabalho aqui do lado. Ajudante de cozinha da casa principal. A gente se vê de vez em quando, mas você sempre parece tão na sua... — ela deu de ombros. — Posso ficar um pouco?
Sorri de leve. Pela primeira vez, alguém me tratava como uma pessoa e não como “a mulher do dono do morro”. — Claro. Senta aí.
Ela puxou um caixote virado ao contrário e sentou ao meu lado, me ajudando com as roupas.
— E aí, como tá sendo? — perguntou com um sorriso compreensivo.
Suspirei, sem forças pra manter a fachada. — Tá sendo... pesado. Ele é difícil. Quase não fala comigo, só manda. E quando fala, é como se estivesse dando ordem pra um soldado.
Luciana riu de um jeito leve. — Gabriel é assim com todo mundo. Até com os próprios homens. Mas... com mulher é diferente. Ele nunca teve uma do lado. Pelo menos não por muito tempo. Acho que você mexe com ele mais do que imagina.
Arqueei a sobrancelha. — Duvido. Ele parece uma rocha.
— Rochas racham, Carol — ela disse, num tom misterioso. — Ainda mais quando são atingidas todo dia.
No dia seguinte, aproveitei um raro momento de liberdade e fui até o pátio onde alguns dos homens de Gabriel treinavam. Eu só queria um pouco de ar, mas acabei parando ao lado de um deles que esticava o braço com uma pistola, mirando em garrafas de vidro.
— Quer tentar? — perguntou ele, percebendo minha presença. Era alto, musculoso e parecia simpático, com um sorriso fácil no rosto.
— Deus me livre — brinquei, cruzando os braços.
— Eu sou o Bruno. Um dos homens de confiança do chefe. Mas não precisa ficar com medo, não sou do tipo que obedece ordem cega.
Sorri, sentindo uma pontinha de liberdade naquela conversa.
— E eu sou a Carol. A prisioneira de luxo.
Ele soltou uma gargalhada, me olhando com uma mistura de pena e admiração.
— Você tem coragem de dizer isso por aqui?
— Alguém tem que dizer alguma coisa.
Estávamos ali, trocando palavras, quando senti o ar pesar. Uma sombra se aproximou, e o som firme das botas contra o chão de cimento ecoou. Gabriel. Ele parou a poucos metros, o olhar cravado em mim, mas foi Bruno quem ele encarou como se estivesse prestes a puxar o gatilho.
— Tá sobrando tempo aí, Bruno? — a voz dele era baixa, mas carregada de veneno.
Bruno, que até então parecia confiante, engoliu seco e se endireitou.
— Não, chefe. Só estava conversando com ela.
— Conversa é no rádio. Aqui é hora de trabalho. — Gabriel então virou o rosto lentamente pra mim. — E você devia estar dentro de casa, Carol.
Engoli em seco. Não queria mostrar medo, mas meus dedos estavam gelados.
— Só estava tomando um pouco de ar. Não é crime.
— Ainda. — Ele se aproximou mais, e o tom da voz caiu uma oitava. — Mas se continuar provocando, posso pensar em mudar as regras.
Bruno recuou, visivelmente tenso, e saiu sem dizer mais nada. Gabriel me encarou por mais alguns segundos e então se virou, esperando que eu o seguisse. E eu fui, porque naquele momento... não tinha escolha.
Naquela noite, Luciana apareceu no meu quarto com uma bandeja de chá.
— Nossa, clima tenso hoje, hein? — comentou, me entregando a xícara.
— Ele surtou por eu estar conversando com o tal do Bruno — falei, revirando os olhos. — Sério, parecia que ia matar o cara.
— E você achando que ele é uma rocha... — ela disse, provocando. — Isso foi puro ciúmes, Carol.
— Ciúmes? Ele nem me toca. — Dei um gole no chá, tentando ignorar o nó no estômago.
— Mas te observa. Todo santo dia. Você acha que ninguém vê, mas ele passa mais tempo vigiando do que mandando. Pode não demonstrar com carinho, mas... o olhar dele entrega tudo. Aquele homem tá te querendo, e não sabe lidar com isso.
***
Na manhã seguinte, fui acordada com o som da porta se abrindo bruscamente. Gabriel entrou sem pedir permissão, os olhos frios, a mandíbula cerrada.
— A partir de hoje, não quero você perto dos meus homens.
Sentei na cama, ainda meio tonta. — E você vai me trancar num quarto escuro, é isso?
— Vou te manter segura. — Ele cruzou os braços. — Ou você prefere que alguém use você pra me atingir?
— Isso é sobre me proteger... ou é porque você não aguenta me ver falando com outro homem?
Ele piscou lentamente, a tensão aumentando. — Você não tem ideia do que acontece quando alguém se mete com o que é meu.
Levantei da cama, encarando ele de perto. — Eu não sou uma arma. Nem uma posse. Nem uma boneca que você tranca num armário.
Gabriel segurou meu rosto com força, os olhos ardendo em raiva — ou seria desejo? — e sua voz saiu grave, carregada de ameaça:
— Você é minha mulher. E vai aprender o que isso significa.
Horas depois, ainda estava com o coração acelerado. Luciana me encontrou na cozinha, onde eu estava descascando batatas como válvula de escape.
— O que houve agora?
— Ele surtou. Disse que eu sou a mulher dele. Como se isso desse a ele o direito de controlar até a minha respiração.
— Carol... — ela pousou a mão sobre a minha. — Com Gabriel, as palavras vêm carregadas. Ele não sabe amar como os outros. Ele protege, domina... mas amar? Amar, pra ele, é guerra. É invasão.
— E eu sou o campo de batalha.
Luciana suspirou. — Sim. Mas também pode ser a única que tem o poder de vencer essa guerra.
Naquela noite, no silêncio abafado da casa, ouvi passos vindo até meu quarto. A porta se abriu lentamente, e Gabriel surgiu, com a expressão mais controlada que eu já tinha visto.
— Queria pedir desculpa.
Fiquei em choque. Gabriel? Pedindo desculpa?
— Falei merda. Mas é difícil ver você com outro. Mesmo que não seja nada... me dá vontade de quebrar tudo.
— Então não olha. — Respondi, desafiando.
Ele se aproximou, parando perto da cama. — Não consigo. Eu olho, Carol. O tempo todo. E não é só ciúmes. É outra coisa. Que eu não sei lidar. Que me consome.
Meu peito apertou. Pela primeira vez, Gabriel parecia... humano. Frágil, de um jeito bruto.
— Vai ter que aprender — sussurrei. — Porque eu não sou corrente pra você usar. Sou gente. E quero ser tratada como tal.
Ele assentiu devagar, e naquele instante, percebi que talvez eu tivesse dado o primeiro passo pra abrir uma rachadura naquela rocha.
Talvez... só talvez... eu estivesse ganhando espaço dentro do coração do rei do morro.