Capítulo 01 : O Preço da Dívida
Carol
A rua estava úmida e escura, como sempre ficava depois de uma garoa que passava sem fazer alarde. O cheiro de terra molhada misturado com fumaça de cigarro, óleo de fritura e a maresia que subia lá do asfalto compunham o perfume típico da Rocinha à noite. Eu apertava a mochila contra o corpo, os ombros doloridos de um dia inteiro de aula e estágio. O relógio marcava 21h46 quando dobrei a esquina da viela que levava até a casa da minha mãe. Ainda ofegante da caminhada íngreme, tentei me concentrar na sensação de vitória: eu estava a poucos meses de me formar enfermeira. Era o sonho da minha mãe. Agora também era o meu.
Mas naquela noite, algo estava errado.
A vizinhança estava silenciosa demais. Ninguém na laje da Dona Norma ouvindo pagode alto, nenhum moleque jogando bola com chinelo como trave improvisada. E quando bati o olho na porta da minha casa entreaberta, o estômago afundou.
— Mãe? — chamei, empurrando a porta com cautela.
O barulho da televisão vinha da sala, mas era só isso. Entrei com passos lentos, o coração martelando no peito.
— Carol? — ouvi a voz baixa da minha mãe vindo da cozinha. Ela apareceu logo em seguida, com o olhar desesperado e o rosto pálido. — Graças a Deus você chegou.
— O que aconteceu? — larguei a mochila no chão. — Cadê o Rafael?
Ela hesitou. E aquele segundo de silêncio foi pior do que qualquer grito.
— Eles vieram aqui. Dois homens armados. Procuravam por ele. Disseram que ele tem até amanhã pra pagar uma dívida… senão…
Ela não terminou a frase. Não precisava.
— Quem, mãe? Quem veio?
— Eu não sei os nomes… mas eram do pessoal do Gabriel. Disseram que o Rafael se meteu com o homem errado. Que deve dinheiro de uma encomenda que sumiu.
Senti a cabeça girar.
— Que encomenda, mãe? Ele me disse que tinha largado tudo... que tava limpo!
— Ele mentiu, filha. — A voz dela falhou. — Eu também queria acreditar. Mas parece que não largou, não de verdade.
As mãos começaram a suar, a respiração ficou curta. Meu irmão sempre teve um pé nos corres da comunidade, mas jurou por tudo que amava que tava limpo. Eu quis acreditar. A gente sempre quer acreditar em quem ama.
— Onde ele tá agora?
— Fugiu. Disse que ia resolver. Mas eu tô com medo, Carol… medo de não ver meu filho de novo.
Segurei as lágrimas com os dentes cerrados. Não dava tempo de chorar. Não dava tempo de sentir. Só dava tempo de agir.
— Eu vou falar com o Gabriel.
— O quê?! — A voz da minha mãe saiu aguda, desesperada. — Você tá louca, menina? Aquele homem é perigoso!
— E você acha que deixar o Rafael nas mãos dele é menos perigoso?
Ela ficou em silêncio. Sabia que não era.
A subida até o complexo do Gabriel era sombria, pesada. Aquilo não era só um caminho físico, era simbólico. Eu tava saindo da minha zona de segurança, atravessando uma linha que jurei nunca cruzar. Sempre fui a filha que estudava, que evitava problema, que não olhava pros lados errados. Mas quando é seu irmão em risco, você se joga na cova dos leões se for preciso.
Dois olheiros me viram chegar e se entreolharam. Um deles reconheceu meu rosto. Rafael me levava às vezes nos bailes quando queria me mostrar como "a quebrada brilhava". Eles sabiam quem eu era.
— Vim falar com o Gabriel — falei, com a voz firme, mesmo com o coração batendo descompassado.
— Ele tá ocupado.
— Então diga pra ele que a irmã do Rafael tá aqui. E se ele quiser o dinheiro que o Rafael deve, vai me ouvir.
O olheiro mais velho piscou devagar, analisando meu rosto. Depois pegou o rádio no ombro e falou algo em código. Minutos depois, fui escoltada por um dos capangas até o alto da laje onde o Gabriel mantinha seu trono improvisado.
Ele estava de pé, braços cruzados, cigarro aceso nos dedos, olhando a cidade como se fosse dono de tudo que a vista alcançava. E era. Ali, ele mandava.
— Carol Viana. A menina que tirava nota 10 em tudo e fugia do baile depois de 10 minutos. — Ele virou o rosto devagar, analisando meu corpo como se dissesse “não esperava te ver aqui”. — O que te traz até o alto do morro à essa hora?
— Meu irmão.
Ele soltou a fumaça devagar.
— Ah, sim… o Rafael. Garoto esperto. Mas nem tão esperto assim.
— Ele errou. Mas você não precisa matar ele.
— Não preciso? — A sobrancelha dele arqueou. — Quando alguém mexe com meu dinheiro, minha palavra, meu nome… você acha que posso deixar barato?
— Você quer o dinheiro de volta, certo? Me dá um prazo. Eu vou conseguir. Mas não encosta nele.
Ele deu uma risada seca.
— E como pretende fazer isso? Vai vender brigadeiro no metrô?
Mordi a língua pra não reagir.
— Eu tenho um estágio em uma clínica. Conheço médicos, pessoas influentes. Posso conseguir contatos, favores. Só preciso de tempo. E de saber quanto ele te deve.
Gabriel me olhou nos olhos. Era o tipo de homem que testava limites. Que gostava de ver até onde uma pessoa podia se humilhar por quem ama.
— Sete mil.
Senti a pancada no peito.
— Você tem cinco dias. E eu não gosto de promessas vazias, Carol. Se você me fizer perder tempo… o Rafael paga com a vida.
— Ele não vai morrer — sussurrei. — Eu vou pagar.
Ele se aproximou. O cheiro do cigarro e do perfume amadeirado dele me envolveram. E quando parou diante de mim, com aquele olhar que misturava desprezo e curiosidade, falou baixo:
— Tem coragem. Isso é raro por aqui. Mas lembra… coragem demais também mata.
Voltei pra casa sem sentir as pernas. Minha mãe me olhou como se eu tivesse enfrentado o próprio d***o. E talvez tivesse mesmo.
Naquela noite, não dormi. Só conseguia pensar em como conseguir sete mil reais em cinco dias. Pensei em pedir empréstimo, vender o celular, minha aliança de formatura. Mas tudo isso não chegava nem perto.
E no fundo, bem lá no fundo… uma voz c***l me perguntava:
Até onde você iria pra salvar alguém que te colocou nessa enrascada?
A resposta veio em silêncio.
Até o inferno, se fosse preciso.