O fundo do poço

2576 Words
Conforme os dias passavam, Gisella sentia-se afundar cada vez mais em um poço sem fim. A saudade que sentia de Theodred era tanta que a pobre garota m*l comia e m*l bebia. Os elfos ficaram preocupados. Evin misturou algumas gotas da poção Água De Lethe no suco de Gisella, mas a garota jogou o suco no vaso de plantas assim que a elfa lhe deu as costas. Gisella já sabia que os elfos costumavam lhe dar aquela poção para que ela não sentisse falta de sua verdadeira família. Muitas vezes, Gisella tomava a poção de livre e espontânea vontade só para não ser torturada pelas lembranças… Lembranças que a cada dia se desvaneciam. Ela já não se lembrava do rosto de sua verdadeira mãe ou de seus irmãos. Gisella era grata aos elfos por acolherem ela e a tratarem como um m****o da família, até se considerava sortuda por eles gostarem dela, uma vez que tinha conhecimento que nem todas as humanas que iam para o Reino Feérico terminavam bem. Algumas encontravam um destino bem c***l como escravas sexuais de anões repugnantes ou então em tabernas. Ela sabia que não deveria sair sozinha porque era perigoso, mas não suportaria mais um só minuto longe de Theodred. Por isso, na primeira oportunidade que teve, escapou pelos fundos correndo para o bosque. Ela não tinha a mínima ideia de como voltar ao seu antigo vilarejo, mas estava certa de que encontraria o caminho de qualquer jeito. O que não podia era continuar ali esperando que Theodred viesse montado em um cavalo branco resgatá-la. Enquanto corria sentia seus cabelos ruivos se agitarem com o vento frio. As ninfas a chamavam com sussurros sedutores, tentando atrair sua atenção. “Ei, psiu?”, “Gisella?”. Por duas vezes, Gisella se sentiu fortemente tentada a parar e se render ao doce encanto das ninfas, mas a lembrança de Theodred era tão vívida que ela quase sentia como se os dois fossem um só. Precisava revê-lo, abraçá-lo, beijá-lo, permitir que ele a envolvesse com sua luz. Quando chegou a uma antiga clareira parou. A luz da lua nova iluminava o bosque que agora parecia assombrado. O som de asas batendo fez a garota girar, alerta, procurando pela coisa que produzira aquele som. O que seria? Uma fada? Um grifo? Quantas criaturas mágicas com asas existiam? Quantas eram pouco amistosas com humanos? Muitas. Gisella ouviu novamente aquele som e, assustada, se escondeu atrás de um arbusto, espiando por entre seus galhos. Viu quando um vulto n***o caiu do alto. Parecia uma pessoa agachada, mas então um par de asas negras semelhantes a asas de pássaros se revelou nas costas do estranho que se levantou. Um homem alto e forte, sem camisa, com cabelos curtos e castanhos e olhos azuis. Era muito belo, mais do que um elfo, e pareceria inofensivo se não estivesse segurando uma adaga com cabo prateado que brilhava mesmo no escuro. Havia uma fúria em seu olhar. No fundo, Gisella sabia o que ele era, mas se recusou a acreditar porque a casta maldita dele não tinha nada o que fazer ali no bosque das ninfas. — Ele está aqui por causa dos portais. — Disse uma voz feminina. Gisella olhou para o lado e viu a ninfa que habitava aquele arbusto. Uma jovem, com cabelos castanho-claros e olhos azuis. Como todas as ninfas do bosque, ela usava um vestido branco de tecido leve, mas não transparente. Também usava uma coroa de flores na cabeça. — Que portais? — Gisella sussurrou. — Os portais que levam para todos os reinos. — A ninfa respondeu. — Faz tempo que os “desertores” declararam guerra contras os reinos. Porque eles não tem mais um lugar só deles e foram expulsos da Terra, e não podem mais entrar no Céu, e não querem estar no Inferno. Por isso, pretendem tomar nossa morada. — E os arcanjos? — Perguntou Gisella. — Ocupados demais com os humanos. — Falou a ninfa. Gisella e ela observaram o anjo caído se aproximar de uma pedra grande que ficava no centro da clareira. Havia inscrições no idioma das fadas, talhadas na pedra, e quando o anjo aproximou sua mão da pedra, as palavras brilharam como luzes de neon. — Pedra guardiã revele a mim, os portais. — Falou o anjo. Os raios lunares banharam a pedra, penetrando-a e saindo dela por diversas partes, apontando as direções dos portais. Estes estavam ocultos em lugares que normalmente passariam despercebidos por olhos menos atentos como um pequeno círculo de cogumelos, um poço desativado próximo a uma velha casa, que também abrigava um portal, e entre arbustos se observasse com atenção, notaria uma leve corrente de ar em espiral vindo do portal, quando afastasse as folhagens. O anjo sorriu malicioso e se aproximou do portal entre os arbustos. Se agachou e afastou as folhagens com as mãos e então atravessou o portal. Uma vez que o anjo se foi, os raios lunares deixaram de iluminar os portais, ocultando suas localizações. — Para onde ele foi? — Gisela inquiriu. — Para a Fairyland. — Respondeu a ninfa. — Então, é aquele o portal que leva a Fairyland? — Disse Gisela feliz por ter descoberto como chegar ao reino das fadas, mas, ao mesmo tempo, preocupada com o que aquele desertor pudesse fazer lá. — Um dos muitos domínios da Fairyland… Sim. — Falou a ninfa. — Sabe como volto para Bellanandi? — Gisella perguntou. — O poço. — A ninfa apontou a direção. Gisella riu, achando que fosse brincadeira, mas se deu conta de que a ninfa não brincara, já, que a mesma se manteve séria. — Não. Isso é loucura! — Gisella balançou a cabeça, assustada com a ideia de ter de pular no poço escuro. — Deve ter outra passagem. — Esse é o único atalho seguro. — Disse a ninfa. — E depois? Como é que eu volto? — Perguntou Gisella certa de que não conseguiria escalar o poço. — E você quer mesmo voltar? — A ninfa arqueou uma sobrancelha e riu. — Quando você pensa demais, a mágica simplesmente não flui como deveria, Gisella. Está tudo aqui… Oh! — A ninfa bateu com o indicador na cabeça. — Combine intenção com visualização e acredite. Nada é mais forte que sua fé. — Certo. — Gisella suspirou. — Obrigada pela ajuda…? — Ängie. — A ninfa revelou seu nome. — Obrigada, Ängie. — Gisella sorriu. — Sou Gisella. — Gisella dos elfos… Eu sei. — Ängie sorriu docemente. — Minhas irmãs me falaram de você. — Só Gisella… Sem os elfos. — Ela disse. — Talvez “das ninfas” soe melhor. — Com certeza. — Disse Ängie. — Que Diana a proteja. Gisella assentiu antes de ir. Caminhou apressada até chegar onde o velho poço estava. Parou diante do mesmo. Segurou suas bordas com força e encarou seu fundo escuro. Não pode evitar sentir um calafrio. “Acho que eu não consigo”, pensou antes de recuar. Olhou no chão a sua volta até encontrar o que procurava, uma pedra. Se aproximou novamente do poço, mas antes que pudesse jogar a pedra para saber a profundidade do mesmo, ouviu uma voz atrás de si e se virou, sobressaltada. — Ei? Isso não é nada educado! — Disse uma moça alta, com olhos azuis e penetrantes, e cabelos negros e lisos, com comprimento quase à altura dos ombros, que vestia um vestido branco longo, cuja barra estava manchada de barro. A moça estava descalça. — Você é uma moira, não?! — Gisella se afastou ligeiro do poço, temendo que a estranha surtasse e a empurrasse. A moça riu e agarrou seu xale vermelho que estava na borda do poço, antes de dizer: — O meu nome é Dilya Dorric e sou uma Marimanta. Em um piscar de olhos, a marimanta se teleportou para mais perto de Gisella e aproximou seus lábios dos dela, deixando a ruiva nervosa. A marimanta recuou, rindo com malícia e escondeu as mãos atrás do corpo. — Me diga que, pelo menos, sabe para onde esse poço a levará. — Bellanandi. — Respondeu Gisella. — Hmmm… — A marimanta manteve o sorriso malicioso e gesticulou para que Gisella fosse adiante. Sem tirar os olhos da marimanta, Gisella se aproximou do poço. Viu a corda na qual estava amarrado um balde antigo, parecia ser uma corda resistente, certamente, poderia aguentá-la se ela a usasse para descer ao poço. No entanto, antes que Gisella pudesse pegar a corda, a marimanta se teleportou para o seu lado, agarrando-a com força e empurrando-a no poço. Gisella gritou e tentou se agarrar a qualquer coisa, mas foi inútil. — Boa viagem! — Disse a marimanta debruçando-se sobre o poço e riu. Gisella caiu rapidamente, o que lhe pareceu, mais ou menos, cerca de quarenta andares. Enquanto caía, tentou tocar as paredes do poço, mas não conseguiu alcançá-las. Naquele instante foi tomada de puro terror e se arrependeu por ter fugido de casa. Agora, ela morreria… Ou pior… Se quebraria inteira e ficaria a mercê da primeira criatura mágica que descesse ou subisse ao poço. Onde ela estava com a cabeça quando sequer considerara a ideia de ir até o poço? Ela não era um elemental. Não sabia saltar grandes alturas como os elfos nem voar como as fadas. Certamente, as ninfas pensaram que ela fosse uma bruxa. Bem, ela era… Mas não do tipo que dominava suas habilidades psíquicas. O pior de tudo era morrer sem antes ter a chance de rever e se despedir de Theodred ou Gaion. A queda chegou ao fim e Gisella sentiu-se cair em um relvado. Não se machucou, nem sequer um arranhão sofreu. Surpresa, olhou ao redor e percebeu que estava em um tipo de gruta de tamanho médio que dava acesso direto a um parque digno dos contos de fadas, com árvores de folhas roxas e também verdes, flores semelhantes a hibisco e papoulas enfeitavam árvores e arbustos. Samambaias em cercados circulares feitos de pedras a beira do lago raso de águas verdes cristalinas. Havia uma estradinha coberta por blocos de pedras quadradas que ligava a gruta ao parque. Libélulas voavam livremente enquanto beija-flores pousavam de uma flor a outra e pássaros cantavam no mais harmonioso coro. Gisella suspirou, encantada diante de tamanha beleza e então, olhou para cima, para o buraco escuro de onde caíra. Conseguiu enxergar a passagem que dava para o poço, graças a … Luz da… Lua? Espere? Gisella olhou novamente para o parque a sua frente iluminado pela luz do dia e então para o poço acima de sua cabeça. Como podia ser noite no bosque das ninfas e dia na elfland? “Dimensões diferentes”, lembrou antes de se levantar e seguir adiante. Havia pessoas mais a frente em volta de mesas fartas fazendo piqueniques. Eram tão lindos que pareciam anjos! Mas Gisella sabia que não eram anjos e, sim, elfos. Embora, eles lembrassem mais Gaion que Hendrik. Talvez, porque os elfos em Bellanandi não usassem capas como os de Ljossalfheim. Gisella respirou fundo e decidiu controlar seu deslumbramento e agir normalmente para não atrair atenção para si. Caminhou apressada e se forçou a não encarar aqueles seres que tanto a encantavam, os elfos de luz. Saindo do parque, deparou-se com um vilarejo medieval onde mulheres e homens caminhavam pelas ruas, vestidos como pessoas da era medieval e muitos usavam capas verdes de capuz. Tinha uma feira mais a frente e o som de tambores e flautas fez com que Gisella se sentisse tentada a ir conferir o som de perto, mas se conteve, seguindo a direção oposta à da feira. Estava em Ljossalfheim, o reino dos elfos de luz. Algumas vezes, Gisella foi abordada por belos e sorridentes elfos comerciantes que insistiam para que ela levasse alguma coisa como pulseiras, ervas ou poções. Eles eram tão belos e simpáticos que ela tinha certeza que gastaria até o último centavo se tivesse algum dinheiro. Envergonhada, ela disse que estava com pressa, mas que voltaria depois. — Sim, senhorita. Tenha uma boa tarde. — Disse o último comerciante que lhe ofereceu poções de cura e invisibilidade. Uma estrada estreita ladrilhada de pedrinhas brancas e brilhantes levava até Bellanandi. Adjacente a estrada, de ambos os lados havia um gramado bem cuidado e árvores com folhagens fartas que quase alcançavam o solo. Ao redor das árvores, arbustos de flores brancas e perfumadas. Gisella caminhou sem pressa, admirando a vista. Após alguns minutos de caminhada, a paisagem ao seu redor começou a mudar. As folhagens das árvores assumiram um tom amarelado como se fosse a época do outono. A luz solar também enfraqueceu, parecendo que o crepúsculo se aproximava. Gisella apertou o passo, temendo que escurecesse e ela estivesse sozinha na estrada. Seria perigoso. Algum elemental sombrio poderia surpreendê-la e lhe fazer muito m*l. Quanto mais se afastava de Ljossalfheim e se aproximava de Bellanandi, mais a paisagem se alterava, adquirindo um tom lúgubre. Árvores mortas e com os troncos muito próximos uns dos outros. Céu nublado e correntes frias de ar. Não tardou para que ela chegasse em Bellanandi, o reino cinzento, habitado pelos elfos egoístas. À primeira vista, o lugar poderia ser confundido com um bairro comum da dimensão dos humanos, pois a arquitetura das casas era bem similar à dos mortais. Só o que as diferenciava era a forma como os cômodos eram mobiliados e/ou dispostos. Não era incomum que na sala ficasse o quarto e no quarto ficasse a sala, por exemplo. Elementais não seguiam o mesmo padrão humano na hora de organizar os cômodos: sala, cozinha e quartos. Para eles, a ordem era quase sempre inversa. Evin costumava seguir o padrão élfico, mas depois que conheceu o padrão humano, achou mais prático e o aderiu. Poucos elfos eram vistos nas ruas – o oposto de Ljossalfheim que tinha suas calçadas cheias de comerciantes ambulantes –, uma vez que Bellanandi ficava bem próxima de Svartalfheim. Não havia uma divisa clara nem muros que separassem um lugar do outro, mas Svartalfheim era pura escuridão. A luz do sol não alcançava aquele ponto ou seus habitantes eram tão cruéis que a escuridão vinha deles mesmos. Svartalfheim não tinha árvores nem flores, apenas espinhos e ervas daninhas. As casas pareciam abandonadas. As ruas imundas. E, em cada esquina, havia uma taberna onde elfos, anões e outros seres malévolos se reuniam para beber e brigar. Um verdadeiro inferno o qual nenhum elemental ou um humano em sã consciência desejaria ver de perto. Gisella seguiu para a Pousada do Ésadre e quando atravessou o saguão e seguiu para a recepção encontrou um gato grande e preto com olhos amarelos, deitado preguiçosamente sobre o balcão. Gisella se aproximou do balcão e encarou o gato antes de dizer a ele: — Pode avisar ao Theo que estou aqui? O gato respondeu com um miado antes de saltar para detrás do balcão. Um homem alto, branco, com cabelos castanho escuros, olhos heterocrômicos, usando uma calça cáqui com suspensórios e uma camisa branca de mangas longas e botão, se ergueu, encarando a ruiva. — Posso sim. — Disse o homem que se chamava Ésadre e pegou o telefone e ligou para o quarto onde Theodred estava. — Ela está aqui. Deixo ela subir? Tudo bem. — Ésadre desligou e disse a Gisella que ela podia subir. — Obrigada. — Gisella disse ao bakeneko antes de seguir em direção as escadas.
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