O Noivo Perfeito
POV Elisa
O vestido é leve.
Mas eu sinto como se carregasse o peso do mundo costurado em cada renda feita a mão.
As flores da mesa são brancas, caras e sem cheiro — como tudo o que me cerca.
O salão está cheio. Gente bonita, algumas pessoas eu nem conheço, as taças cheias, música alta e ensaiada.
Eu sou a única coisa viva tentando parecer morta.
Meu pai, Antônio Valença, brilha entre empresários e políticos, contando piadas que ninguém entende, mas todos riem.
Ele ergue a taça:
— Ao futuro da família Valença.
E todos brindam.
Por um segundo, o som das taças me parece vidro quebrando.
Ou talvez seja só a minha cabeça, que já se quebrou há muito tempo.
Ao meu lado, Caio Ferraz segura minha mão.
Os dedos dele são frios. Firmes demais.
Sinto o anel pressionar a pele — um lembrete bonito de que não existe volta.
Ele sorri.
O sorriso que as câmeras amam.
O mesmo sorriso que me observa até eu esquecer quem sou.
A plateia suspira.
— Casal perfeito.
— Amor de novela.
— Ela é tão sortuda.
— Parabéns ao casal do ano.
Sortuda.
A palavra gruda na garganta como vidro moído.
As pessoas me cercam com elogios que soam como sentenças.
— Que vestido lindo.
— Vocês nasceram um para o outro.
— Ele é maravilhoso, Elisa.
— Seus filhos serão lindos.
Eu sorrio.
Não porque quero.
Mas porque aprendi que sorrir é a única forma de sobreviver.
O jantar segue.
Risos. Brindes. Fotógrafos.
Tudo calculado.
Até o ar parece ensaiado.
Por dentro, meu coração lateja.
A lembrança de outro nome, outro rosto, outra voz:
Rafael.
Aquele que me fazia rir de verdade.
Que me chamava de amor como se o mundo fosse só nosso.
Que prometeu lutar por mim.
E mentiu.
Meu pai encosta o copo na mesa.
— Elisa, querida, brinde ao seu noivo.
Levanto a taça.
Os olhos de Caio se fixam nos meus.
Azuis. Frios. Cheios de posse.
— Ao amor.
A taça treme na minha mão, mas ninguém percebe.
Ou prefere não perceber.
A hipocrisia é a gravata social que todo mundo veste sem reclamar.
Caio beija minha mão.
Lento.
Calculado.
As pessoas aplaudem.
— É linda.
— Ele é um homem de sorte.
— Perfeitos um para o outro.
Mas ninguém vê o jeito que o polegar dele aperta meu pulso.
Nem a dor fina que sobe até o ombro.
É um toque discreto, imperceptível —
mas dentro de mim, tudo grita.
— Relaxa, amor — ele sussurra. — Todo mundo está olhando.
E sorri.
Porque ele é bom nisso.
Em parecer o homem que o mundo quer ver.
E eu, o retrato da mulher que o mundo quer que exista.
O jantar termina.
As luzes abaixam.
Os convidados saem com promessas vazias e parabéns automáticos.
Minha mãe se despede rápido, com os olhos baixos.
Elise, minha irmã gêmea, não apareceu.
Talvez por se sentir culpada — tanto faz.
Quando o salão esvazia, o ar muda.
A música some.
Mas o silêncio… o silêncio grita.
Caio me guia até o carro.
A mão firme nas minhas costas.
O toque dele não era de carinho.
É comando.
No banco de trás, o motorista pergunta o destino.
Caio responde por mim.
Claro.
Eu não tenho voz — só aparência.
A cidade brilha pela janela.
Tudo parece calmo.
Bonito.
Ordenado.
Mas há algo podre no silêncio entre nós.
Ele segura minha mão de novo.
O mesmo gesto.
A mesma força.
Forte o bastante pra marcar.
Suave o bastante pra ninguém perceber.
— Você é perfeita, sabia?
Perfeita.
A palavra é um veneno doce.
— E vai continuar assim, não vai? Você é muito inteligente pra tentar mudar isso.
Olho pra frente.
Não respondo.
Ele encosta o rosto no meu pescoço.
O perfume dele invade tudo.
O medo também.
— Fala, Elisa.
— Vou continuar.
Ele sorri.
Satisfeito.
Vitorioso.
A lua nos observa pela janela, testemunha muda da cena.
Quando chegamos, a porta da mansão se abre sozinha.
Empregados treinados.
Olhares submissos.
Subo as escadas sentindo o anel pesar mais do que deveria.
O corredor parece longo demais.
Cada passo soa como sentença.
No quarto, o espelho me espera.
Meu reflexo é uma estranha:
olhos sem cor, lábios sem riso.
Uma boneca vestida de gente.
O barulho da porta se fechando atrás de mim é baixo, mas parece um trovão.
Ele se aproxima.
Devagar.
O mesmo homem que todos chamam de anjo.
O mesmo que me faz temer até o próprio nome.
Ele tira o paletó.
Afrouxa a gravata.
Olha pra mim.
— Está linda.
A voz é suave, mas carrega algo escondido.
Alguma coisa que aprendi a reconhecer:
não é pedido.
É exigência.
Fico imóvel.
Ele se aproxima, segura meu queixo.
O toque é leve — quase terno.
Mas o olhar é de dono.
De alguém que mede, calcula, decide.
Por um segundo, o mundo parece suspenso.
Então ele beija minha testa e sussurra:
— Amanhã começa nossa vida. E eu quero que ela seja do meu jeito.
Sorriso.
Beijo.
Controle.
Quando ele sai, o silêncio volta como avalanche.
Fico ali, parada, encarando meu reflexo.
O pulso dói.
A marca é quase invisível.
Mas eu sei que está lá.
Sento na cama e respiro.
O véu branco pendurado no canto parece me observar.
Bonito.
Limpo.
Mortal.
Fecho os olhos.
Tento imaginar outro futuro.
Um onde o amor não doa, o toque não machuque,
e o nome Elisa ainda pertença a mim.
Mas nada vem.
Só o som distante do mar...
e a voz dele ecoando:
Perfeita. Sempre perfeita.
Deito.
O travesseiro é macio demais pra tanto peso.
As lágrimas vêm, discretas, disciplinadas.
Aprendi até a chorar sem fazer barulho.
E no meio da escuridão, uma promessa silenciosa nasce:
Um dia, eu vou fugir.
Nem que seja pro inferno…
contanto que ele não esteja lá.
O relógio marca meia-noite.
A cidade dorme.
E eu acordo pra dentro.
O amor não salva.
Mas um dia… eu vou.
EM BREVE...