1
Kysha
Fios de condensação escorriam pela lateral do meu copo enquanto eu observava o ambiente. O restaurante não estava vazio, mas também não lotado — perfeito. Não era surpresa que meu alvo tivesse escolhido esse lugar. Sofisticado, mas sem ostentação, era exatamente o tipo de local em que eu imaginava que ele levava suas vítimas. Ainda assim, estava atrasado, o que não combinava com o padrão dele.
— Kysha? — a voz no meu fone de ouvido quebrou o silêncio. — Algum sinal?
Peter. Um dos outros agentes da Arcanum designados para a operação. Éramos uma equipe de três: dois homens e a isca. Eu, claro, era a isca. Peter permanecia em uma van sem identificação a três quarteirões dali, enquanto Jorge estava em posição estratégica, câmera em mãos, com visão direta do restaurante. Meu assento, perto da grande janela saliente, não foi escolhido por acaso; garantia ângulo claro para qualquer movimentação.
O fone de ouvido era minúsculo, praticamente invisível — só alguém absurdamente atento poderia perceber. Mais silencioso que qualquer tecnologia convencional, havia sido criado por uma fada para o Conselho, encantado de forma que apenas o portador ouvisse as transmissões. Perfeito para missões que envolviam criaturas como metamorfos, cuja audição superava os humanos. Ainda assim, por precaução, mantinha os meu longo cabelo solto, cobrindo as orelhas. O loiro natural caía até os meus ombros, escondendo o dispositivo. Em outras operações, usava perucas ou tingia, mas hoje optei por ser eu mesma — talvez para parecer mais vulnerável, mais real.
Levei o copo aos lábios para disfarçar o movimento da boca.
— Nada. Não sei por que está demorando tanto — sussurrei.
A voz grave de Jorge atravessou a linha:
— Já verifiquei os estacionamentos ao redor. Nada. Estou começando a achar que ele não vai aparecer.
O alvo era um metamorfo leão chamado Elijah Carter, conhecido por caçar mulheres humanas. Três meses de relatos — perseguições, agressões, tentativas frustradas — foram suficientes para atrair a atenção do Conselho da Arcanum. Relações interespécies não eram proibidas, mas esse tipo de comportamento abusivo era intolerável. Especialmente para nós, metamorfos-lobo, que víamos nisso um desrespeito imperdoável.
— Ainda não entendo — murmurou Peter. — Por que o Conselho está tão obcecado com esse caso em particular?
— Porque, gênio, ele está violentando humanas. Precisa de mais motivo? — Jorge respondeu com sarcasmo.
Fechei os olhos por um instante, contendo a irritação.
— Se recomponha, Jorge. E mantenha o foco. Não quero que ninguém perceba que estou falando sozinha quando deveria parecer apenas uma mulher jantando.
Meu olhar voltou para a porta de entrada, e uma pontada de instinto percorreu minha espinha. O atraso não significava desistência. Às vezes, predadores apenas esperavam o momento certo para atacar.
— Desculpe, o i****a soou meio agressivo — disse Jorge. — Eu quis dizer... Peter é que foi i****a.
— Entendo — respondeu Peter, ignorando a provocação. — Mas ainda acho estranho. Quando recebemos a missão, parecia um caso simples. Por que o Conselho está tão empenhado? Não poderiam as autoridades humanas lidarem com um estuprador qualquer? Parece exagero envolver a Arcanum.
— É a velha guarda e suas regras retrógradas — falei, apoiando o queixo na mão e cobrindo a boca com os dedos. — Os alfas estão em guerra fria porque esse metamorfo-leão persegue mulheres de outras espécies. Favores foram cobrados, pressões feitas. No fim, é política. Besteira da velha guarda, mas quem se importa? Como você mesmo disse, ele é um canalha que merece ser castrado. Estamos aqui, então fazemos o trabalho.
Diferente de outros metamorfos-lobo, eu nunca tive problema com relacionamentos entre espécies. Mas os velhos que controlavam a maioria das matilhas eram ariscos com o assunto. Tanto que, sempre que algo assim acontecia, recorriam à prefeitura ou ao Conselho para “resolver discretamente”.
— Certo — Peter suspirou. — Mas continuo achando que esse sujeito já percebeu. Talvez tenha nos farejado. O olfato de um leão não deve ser nada m*l.
— Esperamos — sibilei entre dentes. — Vocês sabem como estão as coisas. Ele caçando em território lobo já é provocação suficiente. Esperamos. Ponto final.
A ordem era clara: derrubar Elijah Carter rápido. A sociedade dos metamorfos-lobo estava dividida, volátil. Uns defendiam pureza e isolamento, outros pediam a******a e tolerância. Bastava uma fagulha para incendiar a guerra que rondava há meses. E um predador felino atacando fêmeas humanas poderia ser exatamente essa fagulha.
— Ainda acho que eu devia ser a isca — disse Jorge, debochado. — Eu fico ótima de vestido de festa. Sem... volume extra.
Soltei um suspiro de irritação. Eu mesma me ofereci para atrair o metamorfo-leão. Como uma das poucas agentes que conseguia se passar por humana até mesmo diante de criaturas paranormais, eu era a escolha óbvia. Já fazia anos que não assumia minha forma de lobo. Tanto tempo que até meu cheiro havia mudado. Era praticamente indistinguível de uma mulher humana. Perfeita para o papel.
Minha equipe montou um perfil falso no mesmo aplicativo que Carter usava para caçar vítimas. Selfies provocativas, mensagens insinuantes, um desfile de fotos de pênis não solicitadas... até que finalmente Elijah engoliu a isca. O encontro foi marcado para um restaurante em Cullman, uma pequena cidade próxima ao Oriental Selvagem, onde a maioria da população era humana. Só essa enxurrada de mensagens nojentas já justificava minha determinação em prendê-lo. Eu merecia vê-lo algemado por tudo que tive que aturar.
— Vamos dar mais alguns minutos — murmurei.
— Entendido — disse Peter.
— Dez e quatro. Estou me movendo para uma visão melhor — Jorge acrescentou, abafando um grunhido.
Sem muito a fazer além de esperar, abri a câmera frontal do celular para checar maquiagem e cabelo. Se ele aparecesse, eu precisava estar impecável. Emily tinha feito um trabalho incrível comigo. Troquei para o app de mensagens e escrevi:
Ei, garota, adorei a transformação que você fez. Esse cara vai cair duro quando me vir.
A resposta veio em segundos:
Ótimo! E o vestido, o que achou?
Olhei para o vestido colado ao meu corpo. Decotado, justo. Pelos olhares desviados dos agentes, meus s***s deviam estar um espetáculo.
É fantástico. Ele vai babar assim que entrar.
Pena que ele é um canalha. Senão eu diria para você dar uma chance. Melhor do que aquele seu amigo pirado, que nunca valoriza o esforço que faço pra te deixar perfeita. Talvez eu o encante só pra ver se para de te enrolar.
Revirei os olhos. Emily provavelmente brincava... provavelmente. Como fada, podia mesmo encantar alguém, mas isso seria ilegal — e indesejado. Eu não precisava de um “companheiro” fabricado por magia. Meu destino seria, no máximo, um casamento conveniente. Amor não fazia parte da equação.
Mesmo assim, a mensagem me aqueceu. Era bom ter alguém que me apoiava de verdade. Mas eu não podia me distrair. O leão podia aparecer a qualquer instante.
Preciso voltar ao trabalho. Depois te conto.
Emily respondeu com um emoji de polegar, e eu guardei o celular. Jorge e Peter voltaram a discutir protocolos no meu ouvido, e eu desliguei mentalmente. Mas então outra voz, inesperada, cortou a comunicação.
— Kysha, precisamos encerrar isso. Reagrupamos mais tarde e analisamos onde erramos.
Cerrei os dentes. Até o som daquela voz me irritava.
— Darius? — cobri a boca com a mão. — Que diabos você está fazendo aqui? Você não foi designado pra essa operação.
Darius Blackwood. Parceiro da Arcanum, melhor amigo do meu irmão, e a praga que nunca ia embora.
— Estamos na mesma divisão. Compartilhamos recursos. Li o arquivo e achei que você precisava de reforço. Estou em um sedã a uns cem metros. Ouça: vamos abortar. Montamos outro perfil, tentamos de novo.
Apoiei o queixo na mão, escondendo a boca.
— Dane-se. Ele vem. Eu sei. As mensagens dele praticamente babavam desejo. Esse é o equilíbrio, Darius. Ele caça humanas, eu vou caçá-lo. Agora me deixe trabalhar.
Antes que ele retrucasse, a voz de Jorge estourou no fone:
— Atenção. Alvo se aproximando. Repito: alvo se aproximando.
Meu coração acelerou. Levantei o olhar para a entrada. Jorge tinha razão. Eu havia decorado cada traço da foto dele, e aquele maldito leão tinha acabado de entrar.
Darius voltou a insistir:
— Kysha, dê o sinal se precisar.
Com um sorriso de dentes cerrados, murmurei baixo:
— Cala a boca.
Elijah atravessou o salão e me cumprimentou com um abraço casto e um beijo na bochecha.
— Meu Deus, você está deslumbrante. Dá vontade de morder.
Hora de encarnar o papel. Rindo, toquei o peito dele com leveza.
— Ah, para.
Ele sorriu satisfeito e estalou os dedos para o garçom. Estalou mesmo. Que babaca. Pediu vinho e pratos sem sequer me consultar, depois voltou o olhar para mim.
— Preciso admitir, você é ainda mais bonita pessoalmente.
Balancei a mão, rindo como se estivesse lisonjeada.
— Aposto que você diz isso para todas.
— Só para as que valem a pena — retrucou, faminto.
— Kysha, não gosto desse olhar — Darius alertou em meu ouvido. — Temos que te tirar daí.
De frente para a janela, cocei a lateral da cabeça usando o dedo médio. Tomara que ele entendesse o recado.
Inclinando-me sobre a mesa, deslizei a mão pelo braço musculoso de Elijah.
— Uau... tão duro e grosso. Tem outro assim escondido?
O corpo dele reagiu instantaneamente, os olhos faiscando. O cheiro de feromônio quase me sufocou.
— Ah, tenho algumas surpresas. Se jogar bem suas cartas... vai descobrir.
Ergui uma sobrancelha. — É só isso? Uma promessa?
Ele assentiu, passando a língua pelos lábios. — Pode apostar.
Um dos motivos para o encontro presencial era coletar uma amostra de DNA. O plano era simples: Jorge entraria assim que saíssemos do restaurante e pegaria o copo de Elijah antes que o garçom o retirasse. Isso, combinado com o testemunho humano, deveria ser suficiente para derrubá-lo. Infelizmente, eu tinha que agir ao vivo, mantendo uma máscara de normalidade diante desse i****a. Acariciar o ego dele era nauseante, mas parte do trabalho.
A conversa continuou por mais cinco minutos, até que o garçom trouxe nosso vinho. Elijah já havia feito comentários sobre meus s***s duas vezes e até perguntou se eu depilava a região íntima. Era difícil manter uma expressão séria diante de tamanha ousadia e arrogância, especialmente considerando que nos conhecíamos pessoalmente há menos de dez minutos.
De minha parte, eu era uma boa atriz. Cada gesto, cada palavra cuidadosamente calculada fazia parte do disfarce. Minha atuação no restaurante mereceria um Oscar. Perguntei sobre relacionamentos passados, sobre mulheres com quem ele havia se envolvido, qualquer coisa que pudesse me dar provas mais incriminatórias. Mas invariavelmente, a conversa voltava para meu corpo, o dele e posições sexuais detalhadas.
— Posso experimentar seu prato? — Elijah olhou para o meu bife com interesse predatório.
Sorri. — Com certeza.
Ele se inclinou sobre a mesa e cortou um pedaço, e ao se afastar, esbarrou na minha taça de vinho, que balançou perigosamente. Com reflexos quase felinos, agarrou a taça com as duas mãos e me devolveu. Agradeci com um aceno rápido.
— Que diabos foi isso? — Darius latiu no meu ouvido pelo comunicador. — Alguém mais viu? Kysha, não beba esse vinho!
Mas já era tarde. Um gole atravessou minha garganta. Algo estava errado. O gosto era amargo, o aroma, ligeiramente diferente. O i****a provavelmente tinha colocado alguma substância na minha bebida. Não consegui identificar o que era; meus sentidos de metamorfo eram aguçados, mas sutilidades como essa eram difíceis de detectar. Provavelmente um sedativo ou algum tipo de droga humana. Não faria efeito em mim, mas a tentativa mostrava que meu plano estava funcionando.
Pisquei quando uma sensação quente percorreu meus olhos. Minhas íris, castanhas, agora brilhavam com um leve tom dourado. O sorriso de Elijah desapareceu instantaneamente, substituído por desgosto e raiva.
— Seu filho da mãe — sibilei, pulando da cadeira e virando a mesa na minha direção.
Ele correu para a porta. Empurrei a mesa para longe e o segui.
— O alvo está à solta! Repito, o alvo está à solta! — gritei pelo microfone.
O caos se instalou. Clientes gritavam e corriam, tentando se afastar da confusão. Tirei minha pistola do coldre da coxa e avancei atrás de Elijah. A tagarelice nos meus ouvidos era quase indecifrável; arranquei o fone e o joguei no chão.
Lá fora, vi Elijah correndo para o estacionamento dos fundos. Cerrando os dentes, acelerei. Havia algo viciante na perseguição, e não pude evitar sentir um frio de adrenalina. Ele estava ao alcance, e eu sabia que poderia alcançá-lo.
Mas ao dobrar a esquina, percebi meu erro. Elijah parou, me esperando. Ele sabia que eu era rápida demais para fugir. Então decidiu atacar.
Uma lâmina cortou o ar a menos de um centímetro dos meus olhos. Instintivamente, joguei a cabeça para trás, criando uma a******a. Ele aproveitou, chutou minha arma para longe, que quicou pelo chão.
Ele avançou com raiva, enfiando a faca em direção à minha barriga. Girei, desviando, e acertei um golpe em seu rosto, usando o impulso da facada a meu favor. Ele bateu de cara na parede de tijolos. Ouvi o estalo de seu nariz quebrando, mas ele não diminuiu o ritmo.
Ele ainda segurava a faca. O cheiro familiar da prata me atingiu como um tapa. Girei, chutei seu pé, derrubando-o. Montei nele e agarrei o pulso que segurava a lâmina. Ele facilitava demais, acostumado a dominar mulheres indefesas. Eu não seria mais uma.
Levantei a mão livre, pronta para cotovelá-lo no rosto. Mas então, uma onda de calor percorreu meu corpo. Fogo. Lava. Minhas veias ardendo. Minha visão ficou turva, minha mente girando.
Elijah se soltou e cravou a lâmina em meu peito. No último instante, consegui rolar, desviando-a de meu coração. Ela entrou entre meu ombro e clavícula. Um grito escapou da minha garganta enquanto eu caía no asfalto. Ele se levantou, furioso, e sumiu na floresta próxima.
Jorge e Peter apareceram, armas em punho. Me viram caída, sangue escorrendo do ombro. Jorge avançou, mas acenei freneticamente para a floresta.
— Ele foi por ali! — gritei. — Rápido! Ele não pode escapar!
Relutantemente, eles correram atrás. Meu corpo estava em alerta máximo. A dor da prata em meu ombro se misturava ao calor estranho que percorria minhas veias. Sangue escorria, adrenalina fervia, e eu sabia que ainda havia muito mais por vir.
Não tinha certeza se a lâmina havia cortado uma artéria ou se a prata estava impedindo meu sangue de coagular. De qualquer forma, aquilo adicionava um novo nível de medo à situação.
Darius correu em minha direção, o cabelo suado e desgrenhado colado à testa. Seu rosto permanecia esculpido e firme, exatamente como eu me lembrava. Abriu a boca para me dar uma bronca, mas ao ver o ferimento, toda intenção de me repreender desapareceu.
— p**a merda, Kysha. Você está bem? — perguntou, ajoelhando-se ao meu lado e segurando minha cabeça com cuidado.
O cheiro dele me atingiu de imediato: almíscar e homem, pinheiros, serragem e um toque de uísque. Um pensamento único irrompeu em meio à dor. Calor. Um calor intenso, inexplicável, que parecia consumir cada fibra do meu corpo. Tentei compreender o que estava acontecendo, mas meus pensamentos estavam como um liquidificador em velocidade máxima. Restava apenas meu lobo interior uivando, bloqueando toda lógica ou coerência.
Um rosnado baixo escapou da minha garganta. Instintivamente, me virei e me agarrei a Darius. Passei as mãos pelos seus cabelos escuros e bagunçados, procurando ancorar-me em algo familiar. Olhei diretamente em seus olhos verdes, e era como se um fogo tivesse sido aceso entre minhas pernas, eclipsando todo pensamento racional. O desejo me dominava de forma crua, urgente.
Tudo o que eu queria era tê-lo próximo, senti-lo dentro de mim. A simples ideia disso fez minha boca salivar, meu corpo tremer. Nunca havia me sentido tão animalesca — e ao mesmo tempo, tão vulnerável. Não era apenas vontade; era necessidade. Cada fibra do meu ser implorava por ele. O calor intenso que me consumia só poderia ser apagado por Darius. Como água no deserto, ele era tudo o que eu precisava para sobreviver.
Seus olhos se arregalaram em choque quando eu o arranhei levemente, segurando sua camisa e puxando-o em minha direção, ignorando a dor do ferimento. A urgência do momento, a mistura de dor e desejo, me deixava entregue, completamente consumida por algo primitivo e irresistível.