Prólogo

2171 Words
Maya Albuquerque Maya Albuquerque, ou melhor, Dóris. Esse é o nome pelo qual sou mais conhecida. Não apenas como a mulher que comanda o morro do Alemão, mas também como aquela que carrega uma história de dor e resistência. Nunca imaginei que chegaria até aqui, mas, se você me permitir, vou contar como me tornei essa figura envolta em segredos e lembranças. Perdi meu marido, e foi nesse momento que conheci Renata. Ela se tornou uma das minhas maiores amigas, alguém que surgiu na minha vida num instante de escuridão e trouxe luz. Renata já conhecia o morro como a palma de sua mão, mas nossos caminhos só se cruzaram quando Júlio, um dos homens que trabalha comigo, nos apresentou. Não sei explicar, mas houve algo instantâneo entre nós, uma conexão que eu não esperava. Gostei dela de imediato. Mas, como todos que se aproximam de mim, Renata também acabará descobrindo que meus segredos são profundos. Às vezes, me pergunto por que a polícia me persegue tanto. Não sou uma mulher c***l. Não saio por aí espalhando dor ou sofrimento sem razão. Muito pelo contrário, sou guiada por um código de justiça que talvez poucos entendam. Detesto quando alguém age por conta própria, usando da violência sem pensar nas consequências. Há um lugar sombrio no morro, uma sala que me enche de desgosto. Quando alguém é levado para lá, sinto uma raiva que me consome. A crueldade que presenciei lá me lembra da noite em que perdi tudo o que amava. Alguns dias atrás, quase perdi o controle. Um homem espancou uma mãe de família por um erro. Ela roubou, sim, mas quebrar suas mãos? Isso não. Ela tem filhos, uma vida a proteger. Quem deu essa ordem também pagou o preço, e de uma forma que nunca esquecerá. Não foi só sobre controle, foi sobre compaixão. Mesmo no meio do caos, quem manda aqui sou eu, e até hoje aquele homem sente nas mãos a marca da sua desobediência. Eu sou assim: forte, mas justa. A raiva, quando me domina, me transforma. Mas não pense que gosto de ver o sofrimento. Talvez porque já tenha vivido minha própria dor, uma dor que nunca se apaga, que permanece em mim desde aquela noite, há 17 anos. Lembro-me como se fosse ontem. A casa estava cheia de vida, e nós jantávamos juntos, como uma família comum. Meus pais eram a alegria em pessoa, e meu pai, embora sempre muito ocupado, tinha uma presença que eu amava. Ele passava horas no escritório, e, quando eu era pequena, via aquilo como um mistério. Foi num desses momentos de curiosidade que descobri seu segredo: armas, muitas delas. Um armário de vidro trancado que um dia, por acaso, encontrei aberto. Eu era apenas uma menina, fascinada e assustada ao mesmo tempo. Nossa casa, com seus visitantes sérios e apressados, era cheia de segredos. Eu não entendia muito bem o que meu pai fazia, mas sabia que era algo grande. Ele era firme, um homem de poucas palavras, mas com a gente, sempre foi doce. Naquela noite, tudo desmoronou. Estávamos reunidos na sala, assistindo TV, quando um barulho ensurdecedor ecoou pela casa. Naquele momento, eu ainda não sabia o que era o som de disparos. Tudo aconteceu rápido demais. Meu pai gritou, me mandou correr e me esconder no lugar secreto que ele havia criado para mim e para meu irmão, Rafael, durante nossas brincadeiras. Eu obedeci, corri, mas Rafael não conseguiu. Ouvi sua voz, implorando para que eu fosse mais rápida. E as últimas palavras do meu pai... até hoje elas ecoam no meu coração: "Minha princesa, logo estarei com você." Quando estava prestes a perguntar sobre o meu irmão, notei que meu pai já não estava mais ao meu lado. Ele caminhava em direção ao escritório, o lugar onde passava tantas horas perdido em pensamentos e trabalho. Antes que eu pudesse compreender o que estava acontecendo, me vi obedecendo à sua ordem urgente de me esconder. Corri para o nosso esconderijo secreto, aquele que ele havia preparado com tanto cuidado, quase como se sempre soubesse que este dia chegaria. Lá dentro, encolhida, o som dos gritos e dos tiros incessantes preenchia o ar, me sufocando. Cobri os ouvidos, desesperada para abafar aquele caos que parecia invadir cada parte de mim. E então, o silêncio. Um silêncio que não trazia paz, mas a certeza de que algo terrível havia acontecido. Eu estava aterrorizada, o coração disparado, enquanto o eco das explosões e dos gritos permanecia, como fantasmas dentro da minha mente. Saí devagar do esconderijo, como meu pai havia pedido, sem fazer barulho, sem ser notada. Ao chegar na escada, a visão que se revelou diante de mim me destruiria para sempre. Um homem de pele escura, cercado por outros cinco, todos armados, riam diante dos corpos inertes das pessoas que eu mais amava. Eles riam, enquanto o mundo ao meu redor desmoronava. O líder, aquele homem que parecia se deliciar com a dor que havia causado, inclinou-se sobre meu pai, que ainda lutava para respirar, e com uma voz fria e carregada de rancor, disse: — Vou encontrar sua filha e acabar com o resto da sua família maldita. Isso aqui vai ser meu. Você tirou tudo de mim, me mandou para a prisão. Agora é a minha vez. Sua mulher... ela sempre foi para ser minha. Eu avisei que ela pagaria caro por escolher você. Ele chutou o rosto do meu pai, e o som seco do impacto, seguido pelo sangue que escorria de sua boca, me encheu de um horror indescritível. As risadas dos outros homens pareciam se misturar com os sons dos meus batimentos acelerados. Então, vi meu pai, ainda consciente, erguer o olhar para mim. Não precisou dizer uma única palavra; seu olhar, sempre tão forte, me ordenava pela última vez que eu voltasse para o esconderijo. E eu obedeci. Fiquei lá, imóvel, tentando me tornar invisível, até que o som de sirenes finalmente preencheu o silêncio. Mesmo assim, não saí. O medo me prendia ao chão, até que uma policial me encontrou. Nunca soube como ela sabia do esconderijo, já que aquele lugar era um segredo da nossa família. Eu estava em choque, frágil, faminta, com o coração quebrado, depois de tantas horas sozinha na escuridão. Quando me perguntaram se eu tinha algum parente, mencionei minha tia. Ela foi chamada e recebeu a terrível notícia sobre meus pais e meu irmão. Eu era jovem demais para compreender o peso de tudo o que havia acontecido. Tudo foi tão rápido, mas a imagem daqueles homens, rindo enquanto meu pai agonizava, jamais deixou a minha mente. A polícia me mostrou fotos de possíveis suspeitos, esperando que eu os identificasse. E eu os reconheci. Todos eles. Cada um dos monstros que haviam destruído minha vida. Mas naquele momento, decidi não falar. Não ainda. Eu tinha apenas nove anos. E naquele instante, uma única certeza surgiu em meu coração despedaçado: um dia, eu faria justiça. Um dia, eles pagariam por tudo. Enquanto minha tia me levava para sua casa em Ipanema, cercada de conforto e amor, eu já sabia que minha vida nunca mais seria a mesma. Fui matriculada em uma escola particular, rodeada de carinho e apoio. Minha tia me deu tudo o que podia, mas nem o amor dela, nem as sessões de terapia, foram suficientes para apagar as cicatrizes profundas que carregava. A imagem da minha família ensanguentada, caída no chão da nossa casa, era uma dor que não passava. Cresci com aquela raiva, aquele desejo de vingança, sempre pulsando sob a superfície. Durante o dia, eu era uma estudante dedicada de arquitetura, aparentemente tranquila. Mas à noite, eu me tornava outra pessoa. Comecei a me infiltrar no submundo, planejando cada passo da minha vingança silenciosa. Ninguém poderia descobrir quem eu realmente era, a dor e a fúria que carregava comigo. Com o tempo, comecei a frequentar bailes funk, me misturando ao caos do crime e da adrenalina. Muitos homens me desejavam, tentando me conquistar, mas eu não era de ninguém. Minha primeira vez foi com um universitário, um rapaz doce e gentil. Mas ele era bom demais para mim. Eu o deixei, sabendo que ele merecia alguém melhor, alguém que não carregasse tanta escuridão no coração. No fundo, eu vivia para aquele momento. O momento em que eu finalmente teria o poder de fazer cada um daqueles homens pagar pelo que fizeram. Vingança. Era isso que me movia, e nada, nem ninguém, poderia me impedir. Certo dia, em meio a uma festa onde a música pulsava forte e as luzes dançavam pelo salão, senti um arrepio profundo percorrer minha espinha. Aquele rosto... Eu o reconheceria em qualquer lugar. Um dos assassinos dos meus pais estava ali, a poucos metros de mim. A alegria que invadiu meu corpo foi avassaladora, quase insana. Depois de tanto tempo, finalmente, eu o havia encontrado. Meu coração batia descompassado, não de medo, mas de satisfação. Mas logo percebi que ele não estava sozinho. Estava cercado pelo mesmo grupo que havia participado do m******e, como se o destino os reunisse diante de mim. Determinada a fazer justiça com minhas próprias mãos, fui atrás de Gael, um aliado leal e confiável, o único a quem eu confiaria minha vingança. Com sua ajuda, conseguimos capturar o desgraçado. O levamos para um local isolado, longe de olhares curiosos, um lugar que eu havia preparado especialmente para aquele momento. Eu acreditava que ninguém nos seguia, mas estava enganada. O dono do morro, o líder que controlava tudo à distância, observava cada movimento, cada golpe que eu desferia. Ele assistia, fascinado, enquanto eu torturava o homem que tirou de mim tudo o que eu amava. O miserável morreu sem me revelar o paradeiro dos outros, mas vê-lo sofrer, vê-lo pagar por seus crimes, trouxe-me uma sensação indescritível de prazer, quase inebriante. Era como se, por um instante, eu tivesse o poder de corrigir o passado. O que eu não esperava era que o líder da favela, o homem que silenciosamente filmava cada segundo daquela vingança, acabaria se apaixonando por mim. Aos quinze anos, fui viver com ele. Naquela época, eu ainda era ingênua para perceber o perigo que ele representava. O amor que ele professava rapidamente se transformou em possessão. Ele era c***l, manipulador, e acreditava que poderia me controlar, como se eu fosse uma marionete em suas mãos. Achava que tinha o direito de me agredir, de me chantagear com a minha própria história. Quando ele descobriu que eu vinha de uma família rica, tentou me extorquir, ameaçando me entregar para a polícia. Mas foi a última coisa que ele fez. Sem hesitar, eu o eliminei, fria e decidida. Naquele momento, assumi seu lugar e me tornei a verdadeira líder daquele morro. O poder, que antes era uma ferramenta de vingança, tornou-se parte de quem eu era. Eu controlava tudo, tanto na vida criminosa quanto na minha vida como estudante exemplar. Enquanto me destacava na faculdade, jogando o papel de aluna promissora, escapava com facilidade das inúmeras tentativas da polícia de me prender. Era uma dança perigosa, mas eu sabia como conduzir os passos. Então, numa noite de baile, avistei um homem entrando no local. Sua presença era magnética, difícil de ignorar. Algo em seus traços me chamava a atenção. Ele tinha um ar de familiaridade que não pude ignorar, algo que despertou um misto de curiosidade e raiva. — E aí, mano? O que veio fazer na boca da loba? — ouvi alguém perguntar, sem perceber quem eu era de verdade. O estranho parecia desconfiado, como se estivesse testando o terreno. Ele se parecia assustadoramente com um dos homens que eu havia jurado matar. Eu já havia enviado um para o inferno, mas ainda faltavam cinco. E todos eles iriam sofrer, lentamente, assim como eu sofri durante anos. — Só vim conhecer, mano. Ouvi falar muito dessa mulher. Mas não se preocupe, não vim arrumar confusão nem tomar esse morro, como costumo fazer, né, JL? — respondeu ele, com um sorriso cínico e desafiador, como se o perigo não o afetasse. Eu o encarei diretamente, sem piscar, e com uma calma sombria, respondi: — Se você tentar tomar isso, não estará vivo no dia seguinte para contar quem te matou, mano. Ele me olhou com uma intensidade que eu não esperava, como se quisesse me devorar ali mesmo. Seus lábios se curvaram em um sorriso provocador, e ele lambeu os lábios, como se estivesse me desafiando a tentar algo. Mas eu sabia. Ele seria a minha chave. Ele me levaria até os outros, e eu daria fim a todos eles, um por um, sem hesitação, com a mesma frieza que eu havia desenvolvido ao longo dos anos. Minha vingança, que por tanto tempo parecia um sonho distante, estava finalmente ao meu alcance. Depois de dezessete longos anos, eu estava a apenas alguns passos de fazer justiça com minhas próprias mãos. O momento que eu esperei durante toda a minha vida estava chegando. E ninguém seria capaz de me deter.
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