CAPÍTULO 3 - UM POUCO MUITO ESTRANHO

1174 Words
Aquela situação entreteu Mirra por algum tempo, mas o dia ainda acabou por ser um dos ruins da mesma forma. O resultado da prova tinha saído, e como Mirra tinha previsto em seu desespero… "Você sabe o que significa estudar, senhorita Demína?" Os olhos do Professor Borges carregavam toda a superioridade de quem pode acabar com sua vida apenas com uma caneta ao observar Mirra do alto de seus óculos que continuavam a escorregar lentamente pelo nariz torto. O pai de Mirra costumava dizer que um nariz torto significava que a pessoa provavelmente já tinha quebrado ele em algum momento da vida. Talvez o Professor Borges já tivesse entrado numa briga algum dia, e se esse fosse o caso, devia ter tomado um soco terrível pra acabar daquele jeito. Não hoje. Hoje ele é quem dava o soco, e quem o tomava era Mirra Demína. "Não sabe?" Ele perguntou novamente, sua voz se tornando ainda mais alta enquanto risos abafados escapavam da turma ao redor. "Sei." Respondeu Mirra, tentando soar o mais educada possível. "Tem certeza?" Professor Borges balançou a prova na frente dos olhos da garota. Um grande '0,5' estava grafado em vermelho em cima de metade da página. "Acho que não." ele disse. Bateu com a prova na mesa de Mirra e esticou as costas, vasculhando a turma com os olhos. "Isso vale pra todos vocês." Disse ele, começando a caminhar lentamente na frente do quadro, deslizando um dedo sobre qualquer sujeira do canetão azulado que ainda estivesse visível depois de ter mandado os alunos esfregarem a lousa por quase quinze minutos. "Não sei se estou no quarto ano ou no prézinho." Parou, esfregando os dedos sujos debaixo dos olhos. "Se não pararem com as gracinhas e crescerem logo, vão ficar cada vez mais para trás. Posso contar nos dedos quem estuda de verdade aqui." Ele olhou para uma cadeira ao fundo, e Mirra tinha a sensação desagradável de que era do brigão opressor da turma de quem falava. "Também posso falar os nomes de quem não tem compromisso com nada!" Mirra poderia jurar sentir sua testa esquentando debaixo do olhar do professor. "Vou chamar alguns pais aqui. Uma hora ou outra vocês vão ter que começar a ter responsabilidade." Ele disse ajeitando a gola e alisando a roupa ao virar-se. Ao sentar em sua cadeira, reclinado feito um rei, cruzou os braços enquanto observava a turma à medida que um silêncio opressivo e já bem habitual tomava conta do ar. Mirra bem que gostaria de dizer algumas coisas para o professor Borges, mas tudo o que fez foi respirar fundo antes de fechar os olhos e baixar a cabeça para a própria prova. Sentiu um pequeno cutucão nas costas, e, cuidando para não alertar o professor, virou apenas o suficiente para ver a mão esticada perto de sua cadeira. A letra floreada de Lara não mudava desde o terceiro ano, mas, por algum motivo, a diferença de suas notas para o que eram antigamente era realmente assustadora. A frase 'Acho que nos demos m*l… kkk' quase não podia ser vista ao lado do '0,5' em vermelho. Mirra suspirou, escrevendo em sua própria prova: 'Não devia ter me perguntado as respostas. Desculpe.' e mostrando para a outra, escondido, o que apenas fez risinhos soarem. Então sentiu batidinhas de consolo em seu ombro. "Tudo bem." Sussurrou a menina atrás dela. "Se eu fizesse sozinha provavelmente ia tirar zero vírgula zero." Mirra balançou a cabeça, sorrindo desesperançada. Lara era a pessoa mais próxima de uma amiga que ela tinha, e como era inteligente… mas desde que tinha começado a se interessar por garotos, a menina parecia não conseguir fazer outra coisa a não ser pensar em beijos, livros românticos e… bem, meninos. Mirra baixou a cabeça novamente, tentando imaginar como dar a notícia aos seus pais, e… se indagando o porquê de sua nota ter sido escrita tão maior que a de Lara. Na volta, a mesma rota esperava a menina. De um lado, o muro baixo, atrás do qual Mirra sabia haver grama fresca e talvez sprinklers prontos para girar e jogar água até por cima do muro. Do outro lado, uma cerca de arame acompanhava o terreno que subia suavemente até terminar em montes verdes e cheios de árvores aglomeradas, um ao lado do outro. Mirra ainda se perguntava se a cerca estava ali para prender a rua ou os montes. O sol ia descendo pelo céu alaranjado, se aproximando cada vez mais do horizonte, como se deitasse aos poucos, se preparando para dormir outra vez. O sol não crescia. Ele tinha responsabilidades, sim, mas elas não o faziam mudar. Não tinha que provar nada a ninguém e não tinha que ter medo do que cada adulto boboca faria no próximo instante. Ele era o sol, apenas o sol. Mirra suspirou, chutando uma pedrinha para o mato do outro lado da cerca. Então deu uma risada repentina ao se lembrar de uma outra parte de seu dia. Uma parte mais estranha do que r**m. Enquadrou o sol já meio escondido com as mãos, se perguntando o que é que o professor Borges diria se visse Caíque Brigão andando por aí, desembestado e fazendo cara de doido, com apenas um olho aberto entre os dedos. Ela sorriu ao saltitar para o passeio outra vez, segurando a alça da mochila e deixando apenas uma mão na frente do rosto enquanto a faixa de luz que cobria o horizonte desaparecia por completo, deixando apenas a coloração rosada perdurar no céu cheio de nuvens esparsas. Então fechou um olho e, sobre o outro aberto, encostou a ponta dos dedos. Um raio de sol despontou sobre um morro novamente, brilhando tão forte que a menina teve de virar o rosto apressada, lacrimejando. Enxugou com força o olho que ardia sem parar e abriu o outro com cuidado ao proteger o rosto da luz. Mas… estava escuro. O céu esmaecia rapidamente enquanto as lâmpadas nos postes começavam a brilhar opacas. Mirra girou sobre os calcanhares, ainda vendo um borrão avermelhado cobrindo metade de sua visão ao procurar a fonte da luz esquisita de um segundo atrás. As luzes laranjadas dos postes eram fracas demais, e o sol tinha acabado de se pôr. Ela piscou, confusa, então fechou um olho só, ao observar seus arredores. A rua ficava cada vez mais escura, mesmo que o céu ainda tivesse o tom mais acinzentado de roxo, se tornando azul lá de onde a noite chegava. Tentou procurar com o outro olho. Nada. Aquela era a segunda vez em um só dia que algo realmente estranho acontecia, e dessa vez não tinha sido engraçado. 'Segunda vez…' Mirra franziu, olhando para a mão que fizera o 'O' a um instante. Olhou para a curva na rua deserta por um momento, sem querer ceder a esquisitice. Pelo menos, não se alguém estivesse olhando. Então, olhando na direção em que o sol havia sumido, devagar ela ergueu a mão, e tocou a ponta dos dedos outra vez.
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