CAPÍTULO 2 - FAZENDO UM 'O'

1774 Words
A luz acordou Mirra. A menina sentiu os olhos lacrimejarem imediatamente ao abri-los, ficando quase cega com os raios de sol. Isso não foi lá um 'bom dia' muito confortável… mas, de certa forma, era reconfortante. Ela levantou a mão direita, tapando os olhos, mas logo começou a mover os dedos na frente do nariz, encolhendo, abrindo e esticando eles, moldando a luz enquanto examinava as linhas da própria palma, então observou a curva dos dedos e as unhas. Sua mãe fazia questão de cortá-las curtas e retas. O cenho da menina foi se apertando aos poucos, e, suspirando exasperada, puxou a cortina ao lado da cama, tapando a fresta por onde o sol se intrometia e fazendo o cômodo escurecer novamente antes de rolar para debaixo do travesseiro. Já não conseguia se lembrar direito o que é que havia sonhado, sabia apenas que tinha algo haver com suas mãos, ou com alguma mão qualquer. E que tinha sido um sonho esquisito, ainda mais esquisito do que o normal. Infelizmente, as lembranças do dia anterior começaram a se enfiar no meio de seus pensamentos, fazendo a confusão da menina ir se transformando numa melancolia doída e silenciosa. Não demorou muito pra que Mirra não aguentasse mais a cama quentinha debaixo de si, por isso, pulou de pé, olhando para o relógio de sino caído sobre a cômoda. Mesmo de cabeça para baixo, dessa vez a velharia parecia estar funcionando. Os ponteiros ainda marcavam seis da manhã. Era cedo demais, mesmo assim, pegando a roupa embrulhada ao pé da cama, que era a mesma do dia anterior, Mirra se vestiu depressa e saiu do quarto feito um camundongo que fugia de um gato horripilante. Alguns dizem que quem está triste só quer ficar quieto… Para Mirra, aquilo era a maior lorota de todas. Ela claramente só queria sair dali, fazer qualquer coisa, correr. Ficar quieta a fazia pensar, e pensar era doloroso… doloroso demais. O café da manhã naquele dia… bem, ele não aconteceu na casa de Mirra. Isso porque a Sra. Demína tinha saído antes que a menina acordasse, já o Sr. Demína… bem, ele estava lá. Ou pelo menos, a casca do homem altivo que Mirra se lembrava ser seu pai parecia estar em casa. Sentado no sofá quebrado com as costas retas como uma tábua e o cabelo feito um ninho de andorinha, a figura do homem sozinho e em silêncio parecia quase tão abobalhada quanto um tanto doente. Seus olhos avermelhados e fundos não desgrudavam da tela desligada da tv, e na mão, ainda segurava firme o controle remoto. Aqueles olhos pareciam não ter se fechado por um segundo sequer desde que Mirra tinha o visto pela última vez na noite passada. "Estou saindo, pai." Disse a menina, olhando para o homem, sem saber se iria respondê-la ou se estava dormindo de olhos abertos. "Ah." Ele resmungou, nem sequer desviando o olhar para a filha. "Hmm… Vou mais cedo hoje." "Tudo bem." Ele respondeu, simplesmente, sem perguntar o porquê. Mirra mordeu o lábio, pensando no que dizer. Acabou apenas atravessando a sala e abrindo a porta, deixando a figura sentada para trás. Foi difícil cruzar a rua, cada passo que Mirra dava naquele asfalto recém colocado e liso faziam subir calafrios por todo o corpo da menina. Seus olhos teimavam em se voltar para um certo ponto da rua, lá na frente, onde uma mancha dividia a pista num rastro escorrido até sumir pela canaleta. Ao chegar enfim ao passeio, Mirra apertou os olhos, permitindo um suspiro trêmulo escapar por entre os lábios secos antes de abri-los outra vez, sempre olhando apenas para a frente. Então correu. Correu e correu, cruzando as ruas de sempre, a via deserta pela longa curva que dividia a cidade de morros gramados que enchiam o horizonte. Não parou de correr até que estivesse na frente do grande portão de ferro pintado de um azul bebê e cheio de buracos de ferrugem. Fechado. Não havia uma única outra pessoa na porta da escola, e por isso Mirra não sabia se ficava grata ou irritada. Sentindo o suor escorrer debaixo de suas roupas, ela arfava, sem conseguir conter a tosse que acompanhou a parada abrupta. 'Mais um motivo para pegarem no meu pé.' Ela pensou, apoiando as mãos nos joelhos ao cheirar debaixo do próprio braço enquanto ainda tentava controlar a respiração. 'Ótimo.' Com as pernas doendo, ela caminhou para o lado do portão, onde o degrau mais inútil que se possa imaginar haver em um passeio tinha sido construído. Parecia estar ali apenas pra que se sentassem nele, o que Mirra fez logo que chegou lá, se escorando contra o muro. Recostou a cabeça, olhando para o céu limpo entre os postes lotados de fios e sentindo a brisa fresca ao escutá-la varrer folhas secas pela rua. Seria um bom dia se… é, seria um bom dia. Mirra fechou os olhos contra os raios de sol. Talvez ela tenha cochilado em algum momento, ou não. De tanto afugentar qualquer ponta de pensamento que surgisse em sua mente, Mirra não notou o tempo passando ao seu redor. Talvez estivesse mais cansada do que sua mente a permitisse entender estar. Despertou apenas ao sentir uma respiração pesada próxima de sua cabeça, o que a fez abrir os olhos pra dar de cara com Caíque Brigão, bem em cima dela, a olhando com um olho só por entre os dedos, como quem faz um óculos com o polegar e o indicador. Mirra ficou petrificada com a visão do menino a encarando. Os cabelos empapados de Caíque caíam em desordem sobre o rosto oleoso. A boca entreabertas do menino só aumentava a sua estranheza enquanto olhava intensamente bem dentro dos olhos de Mirra, sem desviar o olhar arregalado. Não piscava, não se movia, não parecia nem respirar direito, como uma estátua. Esperando o menino dizer ou fazer qualquer coisa, encolhida contra a parede e com as mãos fechadas em punhos, Mirra e Caíque Brigão ficaram nesse impasse por quase um minuto inteiro antes que o aborrecimento da menina finalmente se tornasse maior que sua surpresa. "O que é que você quer?" Ela disse. "Oi?" Caíque Brigão piscou finalmente, levantando e girando no mesmo lugar ao tirar a mão da frente dos olhos, procurando pela rua vazia atrás de si . "Quem foi que…" O menino coçava a cabeça, fungando. "O que está fazendo?" Mirra perguntou, fazendo o garoto saltar para longe dela, então se virar lentamente até poder ver a menina sentada ali, desconfiada. "Aí, caramba." Ele suspirou, aliviado ao levantar a mão para o peito. "Que susto, cara… " Depois seu rosto foi se apertando numa careta raivosa. "O que é que está fazendo, pirralha? Não te ensinaram que não é legal chegar por trás das pessoas de fininho?" Mirra franziu. "Você está ficando doido?" Ela disse, se apoiando contra a parede ao se levantar, encarando o garoto que era mais de dois palmos mais alto que ela. "Quem você está chamando de doido?" Caíque Brigão apertou o beiço e estufou o peito, arrastando os pés meio passo na direção de Mirra. A menina bufou com força, mas não disse nada, apenas fechando as mãos ao olhar ao redor de soslaio. Seu peito batia feito um tambor de batalha, mas estava pronta para fugir ou… ela sentiu seu estômago dar uma volta completa dentro de sua barriga. Brigar? Ela nunca tinha feito isso. Quanto mais, aquele era o Caíque Brigão. Ela sabia o porquê de ele ter esse nome. No ano anterior, quando ainda estavam na quarta série, ele tinha 'caído na p*****a' com um menino da sétima. Aquele era definitivamente o pior dos valentões que a quinta série já tinha visto, e qualquer um que entrasse em seu caminho pagaria caro por isso. Mas… ela estava surpresa consigo mesma ao pensar: 'Porque não?'. Medo e dor eram só mais coisas pra se sentir. Coisas bobas, bobas demais. E ela já sentia tantas coisas muito piores aqueles dias… Mirra encarou o menino, fazendo a careta mais amedrontadora que podia fazer. A mochila de Caíque Brigão pendia frouxa de um único ombro largo e mesmo com a blusa grande demais para ele, o menino ainda parecia um Golias sinistro com sua expressão de quem roubava doce de criança. Mas Mirra persistiu em encará-lo ao espremer o nariz e a boca cada vez mais, mostrando os dentes no que achava ser uma visão ameaçadora. O menino começou a cerrar as sobrancelhas, dando um passo para trás. "Você que é doida." Ele resmungou. Então deu meia volta e, ainda olhando a menina por sobre o ombro, atravessou a rua. Uma vez do outro lado, o menino apenas levantou o queixo para a garota antes de voltar a colocar a mão sobre o rosto, da mesma forma de antes. Com os dedos juntos ao redor do olho esbugalhado, girava no mesmo lugar, olhando para os lados, para cima e procurando pelo chão feito um detetive de filme. Parando as vezes pra fixar o olhar em coisas e lugares aleatórios por algum tempo, então voltando a vasculhar o chão. Mirra sabia que o menino era estranho, mas aquilo já estava ridículo. Caíque Brigão fazia um 'O' com os dedos, levando a mão para longe e então aproximando do olho novamente, como se usasse um binóculo imaginário. Não que a brincadeira do menino fosse totalmente fora de série, mas, mesmo com o olho aberto, ao caminhar ele ainda conseguiu trombar em duas das latas de lixo em seu caminho, dar de cara com um poste, girar e continuar andando até cair do meio fio e quase ser atropelado. Enquanto o motorista bigodudo contornava o menino, o xingando, Caíque tirou a mão da frente do olho, abobalhado, como se acordasse de um sonho outra vez, assim como fizera mais cedo na frente de Mirra. Olhou para a menina que o observava do outro lado da rua, bufou, deu de ombros, então virou as costas para ela, voltando a fazer o mesmo 'O' com os dedos. Mirra apertou as sobrancelhas, encabulada, mas antes que pudesse cair na gargalhada, algo fez com que a graça da situação virasse confusão na cabeça da menina. Isso é, por um breve instante, ao virar-se, a mão de Caíque Brigão foi vista sem querer por Mirra. E entre os dedos do menino, parecia haver algo escuro, muito escuro. Mesmo fugaz e repentina, a imagem ainda deixou Mirra intrigada. Caíque Brigão claramente tinha as mãos vazias ao virar-se de lado, ainda olhando pelo mesmo vão entre seu polegar e indicador.
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