PARTE 1: INDO • CAPÍTULO 1 - VOCÊ TEM QUE CRESCER

1602 Words
Aquele foi mesmo o pior dia. Mirra acordou desesperada, como quem já sabe que se atrasou quando abre os olhos. A primeira coisa que fez foi grunhir para o relógio de sino em cima da cômoda, e a segunda foi pular da cama, como todos os dias. Relíquia da família… aquela velharia simplesmente não funcionava quando não queria e teimavam em fazê-la usá-lo mesmo assim. 'Só preciso de um relógio novo, só um relógio!' ela pensava ao se vestir apressada, tentando afugentar a lembrança dos colegas de turma balançando celulares pra lá e pra cá bem debaixo de seu nariz. A van escolar havia deixado ela pra trás, obviamente, por isso ao chegar na escola, atrasada, cansada e com fome (já que não tinha tido tempo pra tomar café da manhã) a menina ainda teve que ficar em pé ao lado da porta, fazendo cara de cachorro na chuva até a professora decidir que a humilhação já era o suficiente. Isso foi o começo. Mais tarde, na fila da merenda, Caíque Brigão (um menino que… você deve entender pelo nome) quase a jogou no chão com um trombo no ombro. Ela nem viu ele chegando, nem ele se importou de virar para ver a menina tropeçando em quem estivesse na frente, apenas continuando a andar com as mãos na frente dos olhos. Quem estava atrás de Mirra na fila, mais que depressa deu um passo à frente, tomando seu lugar e deixando a menina para se zangar sozinha e exasperada. Depois foi a vez da prova. Dessa vez Mirra sabia que ela iria acontecer, qual a matéria e o assunto. Ela estava mais preparada do que nunca. Mesmo assim… 'Será que eu faltei quando ensinaram isso?' Ela pensou, afundando na cadeira. Um dia inteiro de leitura e não conseguia encontrar o que estava no livro em lugar nenhum daquele teste fajuto. Ela não desistiu facilmente, e até que risadas soassem ao seu lado ela não tirou os olhos das palavras incompreensíveis. Mas olhando enfim para o fuzuê, sua persistência pareceu virar uma chacota ridícula e desesperada. Caíque Brigão saía da sala rindo alto e brincando com os colegas, até virando para olhar a menina nos olhos por um segundo antes de atravessar a porta. Mirra acertou a cabeça contra a mesa num baque s***o. "Senhorita Demína," O professor Borges perguntou alto, com seus óculos à ponto de escorregar da ponta de seu nariz. "Algum problema?" Mirra suspirou. "Não, senhor." Aquela foi a parte irritante, mas não tão r**m de seu dia. E por 'não tão r**m' quero dizer que a partir daí as coisas pioraram muito, e tudo teve início quando aquilo aconteceu. Na volta para casa, Mirra arrastava os passos ao dar a volta no muro baixo do pequeno estádio da cidade. Ela ia atravessando vez e outra a via larga que dividia as casas dos morros baixos, observando o sol se escondendo atrás dos morros, imaginando o que é que havia do outro lado das árvores lá em cima. Não estava animada por voltar para casa, já que não sabia se teria mais paz lá do que na escola. E nem queria imaginar o que aconteceria quando o resultado da prova saísse. Mesmo assim, suspirando, parando e dando quantas voltas pudesse dar no caminho, uma hora ela finalmente contornou a esquina de sua rua. Lá na frente, o portão de sua casa se abria enquanto a figura rígida de seu pai saía segurando duas latas redondas, uma em cada mão ao tentar puxar o portão atrás de si. O Sr. Demína parecia nunca sair de casa sem carregar alguma coisa naqueles dias, sempre fazendo algo para alguém. 'Preciso fazer isso' ele dizia sempre. 'Preciso fazer aquilo'. Ao tentar fechar o portão desajeitado, um borrão amarelo passou por debaixo de suas pernas, quase fazendo o homem cair enquanto xingava. "Danúbio!" Mirra gritou, fingindo braveza, o que fez o grande cão dourado dar meia volta na rua e correr em sua direção destrambelhado. A menina colocou as mãos sobre os quadris e esperou a bola de pêlos, fazendo bico, mas logo um sorriso desabrochou em seu rosto. Não poderia sentir-se brava de verdade com o único que estava realmente feliz em vê-la. Aqueles olhinhos nunca deixariam de sorrir para ela, mesmo no pior dos dias, e era exatamente aquilo o que ela precisava para que seu dia melhorasse. O pai de Mirra gritava alguma coisa atrás do cachorro, mas a menina não entendia muito bem o que queria dizer com os latidos de Danúbio se misturando à algazarra das buzinas. O barulho da borracha de pneus se arrastando no asfalto a despertou. Ela estremeceu e desviou o olhar para o carro que derrapava, deixando um rastro tênue de fumaça que subia pela pista. Então virou-se para o cachorro que atravessava em sua direção, sem ter tempo para pensar em qualquer coisa além de: 'Não…'. Então o parachoque se conectou com seu amigo amarelo. Um grito engasgado e impotente escapou da boca da menina ao ver o corpo do cão rolar debaixo do carro, rodando sem parar enquanto era arrastado antes de passar debaixo de uma roda e… parar, imóvel. A pobre criança não conseguiria se lembrar bem do que se passou a seguir, apenas que, tarde demais, decidiu fechar os olhos ao desabar sobre os próprios joelhos na calçada desnivelada enquanto sentia o rosto esquentar com as lágrimas, a garganta doer com o choro, e seus ouvidos se encherem com buzinas e gritos. Quando uma eternidade já parecia ter se passado, uma mão se fechou sobre seu ombro e a puxou, a fazendo cambalear e tropeçar ao caminhar ainda com os olhos bem fechados por algum tempo antes que outra mão a apoiasse de pé. "Mirra." Mirra sentiu as lágrimas descerem como uma cascata ao ver seu pai ajoelhado à sua frente. O rosto duro do homem carregava um raro toque de pesar ao examinar a menina. De alguma forma haviam chegado em casa, mas a visão daquele lugar fez o peito de Mirra doer ainda mais. Naquela noite, a casa de Mirra foi palco para a pior briga de todas. Primeiro teve a angústia e choro, o que já era r**m o suficiente, mas o Sr. e Sra. Demína não deixaram que isso os impedisse de atacar um ao outro, muito pelo contrário, Mirra nem conseguia entender como é que podiam discutir por algo tão h******l, ou porque é que tudo aquilo estava acontecendo. Sabia apenas que, por um mísero dia, não queria que brigassem um com o outro, por isso, enquanto diziam qualquer coisa sobre 'responsabilidade' ela gritou com toda a força que tinha: "Parem!" Os dois olharam para ela surpresos, e por um segundo, parecia que realmente iriam se acalmar. Mas então suas caras ficaram ainda mais zangadas e recomeçaram, então colocando a culpa um no outro por todos os problemas. Mirra começou a chorar, impotente. O que instantaneamente fez os dois se voltarem para ela. "Mirra, pare de chorar." A Sra. Demína disse aos prantos. "Já está na hora de você crescer, Mirra." Disse o Sr. Demína entre dentes. Mirra foi deitar cedo aquele dia, mas demorou a conseguir dormir com os gritos que davam. Apertava as cobertas sobre a cabeça e fungava em silêncio. Não soube dizer quando, mas em algum momento começou a achar que estava sonhando, mesmo que continuasse a fungar. Um cachorro amarelo se sentava sobre uma grande poltrona a sua frente, olhando fixamente para ela enquanto a menina se encolhia contra a parede. "Porque está chorando?" Perguntou o cachorro numa voz rouca, o que quase fez a menina chorar ainda mais, mas, apertando as pernas contra o peito com mais força, Mirra acabou apenas respondendo: "Porque é difícil." "O que é difícil?" O cachorro inclinou a cabeça de lado, examinando a menina ao deixar a língua pender enquanto respirava alto, com a boca entreaberta. "Tudo… tudo deu errado." "Tudo o que?" "Você… você morreu." As lágrimas escorriam sem parar sobre os braços de Mirra. "Você tem que crescer." Disse o cachorro, com um latido. "Eu não quero crescer!" "Se não quisesse de verdade, desejaria com todas as forças." "Eu não quero com todas forças." Ela choramingou. "Quereria ainda mais do que com todas as forças." Retrucou o cachorro. "Eu não quero crescer! Não vou crescer. Não quero ser igual à eles. Não quero!" Então sentiu-se cair quando a imagem do cachorro, da poltrona e de tudo ao seu redor virou um borrão amarelado, zunindo feito uma espiral. Despencando, a menina passou por dentro de uma grande roda lustrosa, e então por outra, e mais outra. Caía por um caminho feito de círculos brilhosos que se estendiam até se perder de vista no escuro lá em baixo. Mas, de repente, ela já havia aterrissado em algo fofo. Se levantando com dificuldade, Mirra viu uma planície alaranjada à sua frente. O chão aos seus pés parecia tão enrugado quanto a pele de um gigante por onde se olhasse, e lá longe o horizonte terminava em montes baixos por todas as direções, montes alaranjados que constrastavam com o céu preto e sem brilho sobre sua cabeça. Alguém a cutucou no ombro, e ao virar-se, Mirra viu que olhava para a imagem de si mesma, do outro lado do que parecia uma cortina d'água que caía de lugar nenhum e nunca chegava ao chão. E diferente do que a menina fazia, seu reflexo permanecia imóvel, com um olho fechado enquanto uma mão cobria parte do próprio rosto ao juntar o indicador ao polegar, a olhando por entre o buraco.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD