PRÓLOGO
📓 PRÓLOGO — NARRADO POR MIGUEL SANTANA
Quem olha hoje e me chama de Capitão… não faz ideia do caminho que eu fiz pra chegar aqui.
Entrar pro BOPE não foi conquista. Foi sobrevivência.
Eu não nasci com sobrenome importante, nem com santo de farda.
Nasci onde o Estado só chega quando quer prender ou enterrar.
E sobrevivi onde a vida vale o preço do carregador cheio.
Desde moleque eu via o caveirão subindo o morro e sentia um negócio dentro do peito.
Não era medo, era curiosidade.
Eu queria entender o que fazia um homem entrar no inferno todo dia e ainda querer voltar.
Aqueles caras de preto, cara fechada, voz de comando… eram o oposto de tudo que eu conhecia.
E eu queria ser um deles.
Nem eu sabia por quê. Talvez fosse raiva. Talvez fosse vontade de provar que eu não ia ser mais um número.
A escola nunca foi refúgio.
Professor olhava torto, vizinho cochichava, e eu aprendi a abaixar a cabeça e guardar as palavras.
Mas guardava também o sonho.
De farda, de respeito, de sair dali e mostrar que dava pra ser diferente.
Aos dezessete, eu fiz o alistamento.
Fui pro quartel com a roupa emprestada e o RG amassado.
Na fila, o sargento olhou pra mim e riu:
— “Esse aí não dura uma semana.”
Durar virou promessa.
Primeiro mês, o corpo quase não aguentou.
Treino de sol a sol, colchão fino, água racionada.
Dormir era luxo, comer era sorte.
Mas eu ficava.
Mesmo quando via os outros desistirem chorando no meio do pátio.
Mesmo quando o instrutor gritava no meu ouvido que eu nunca ia ser nada.
O dia que eu pensei em largar foi o dia que eu descobri que ninguém acreditava que eu podia chegar.
Foi ali que a raiva virou combustível.
E eu decidi que se o inferno existisse, eu ia atravessar andando.
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O curso da PM foi só o começo.
Três anos de farda engomada, rua quente e obediência cega.
Vi colega morrer em serviço, vi mãe chorar no portão, vi parceiro se perder no meio do caminho.
Mas eu segui.
Porque cada vez que alguém dizia “tu não tem perfil pra isso”,
eu lembrava de onde vim e seguia mais forte.
A oportunidade pro BOPE veio como quem não promete nada.
Um papel no mural do quartel:
> “Seleção para Curso de Operações Especiais.”
E embaixo, a frase que muda tudo:
“Poucos entram. Menos ainda saem.”
Eu assinei meu nome sem pensar.
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Primeiro dia do curso, o instrutor já avisou:
> “Aqui vocês não vão aprender a ser polícia.
Aqui vocês vão aprender a morrer.”
E ele não tava brincando.
Sete dias de teste físico só pra começar.
Rastejar em lama, segurar o fuzil com o braço queimando, correr com 30 quilos nas costas e um saco de areia na cabeça.
O corpo grita, mas o orgulho cala.
Tinha soldado que desmaiava e levantava no tapa.
Tinha gente que mijava de dor.
Mas ninguém queria ser o primeiro a pedir pra sair.
Na quarta noite, chovia sem parar.
A gente deitado no barro, com o uniforme encharcado, sem comer direito fazia quase dois dias.
O instrutor passou gritando:
— “Quem quiser ir embora, levanta a mão! A van tá ali fora esperando!”
Ninguém se mexeu.
Ele sorriu, aquele sorriso de quem gosta de ver homem quebrar.
— “Então fica. Amanhã é pior.”
E foi.
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O psicológico é pior que o físico.
Porque eles entram na tua cabeça, te desmontam, te fazem duvidar até do teu nome.
Dizem que tu não presta, que tu é fraco, que tua vida não vale nada.
E tu tem que olhar pra eles com o olho firme e dizer que vale sim.
Que tu vai até o fim.
Eu aprendi a correr no escuro, a respirar no gás, a não piscar quando o disparo vem do lado.
Aprendi a confiar no parceiro e desconfiar de todo o resto.
Aprendi que o medo não some ele só muda de nome.
E no meio disso tudo, aprendi que silêncio é mais forte que grito.
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No último dia, depois de quase dois meses de curso, a gente foi levado pra dentro da mata.
Sem mapa, sem comida, sem sono.
Três dias andando no breu, com o corpo abrindo ferida e a cabeça rodando.
Tinha hora que eu via vulto, hora que eu achava que tava sonhando.
Mas o corpo seguia.
Automático.
Quando o helicóptero apareceu pra buscar a gente, eu já não sentia mais nada.
Nem orgulho, nem dor, nem fome.
Só um vazio calmo.
O comandante desceu, olhou pra gente e disse:
> “A partir de hoje, vocês são caveira.”
E botou a caveira preta na minha mão.
Pequena, fria, pesada.
Aquele peso que muda tudo.
Eu olhei pro símbolo e entendi o que ele significava:
morrer já não era opção.
Recuar, menos ainda.
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O primeiro dia com o brasão no peito foi o mais silencioso da minha vida.
Não teve comemoração.
Não teve grito.
Só o som da farda encostando no corpo e o eco do que eu deixei pra trás.
O moleque do morro morreu ali.
O soldado nasceu.
E desde então, cada operação é uma conversa com Deus.
Ou com o d***o.
Depende de quem chega primeiro.
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Hoje, quando me chamam de Capitão Santana, eu lembro da lama, do frio, da raiva, e da promessa.
De nunca baixar a cabeça.
De nunca pedir pra sair.
E de nunca esquecer que, antes de ser caveira, eu fui só um menino olhando o caveirão passar…
e jurando que um dia, ele ia ser o meu lar.