capitulo 3

984 Words
— O PESO DO PRETO Narrado por Miguel Santana O som do apito veio rasgando o ar antes do sol nascer. Cinco da manhã. Nem o céu tinha decidido se clareava ou não, e o pátio já fervia. A base do BOPE acorda antes da cidade. Aqui não tem despertador, tem grito. E quem demora pra levantar, aprende rápido que o chão é mais duro quando a farda ainda tá amarrotada. Levantei, puxei o colete, amarrei as botas e saí pro corredor. O cheiro era o mesmo de sempre: café forte, graxa, suor e ferro. O tipo de mistura que marca a pele mais do que qualquer tatuagem. No pátio, a tropa já tava reunida. O céu cinza, o chão ainda úmido da madrugada, e o eco das vozes batendo nas paredes de concreto. — “Forma! Linha!” — gritou o sargento Nogueira, com aquela voz que corta o ar como navalha. A formação aconteceu no reflexo. Homem por homem, fileira por fileira, tudo no compasso. O olhar no horizonte, o corpo firme. A respiração no mesmo ritmo, pesada, ensaiada, treinada pra suportar qualquer inferno. Nogueira andou na frente do grupo, devagar, o apito pendurado no pescoço, as mãos cruzadas nas costas. — “Caveira que reclama, volta pra rua. Aqui não tem folga, não tem desculpa, não tem herói. Aqui tem disciplina. E disciplina, senhores, é o que separa quem vive de quem volta num caixão!” O silêncio que veio depois pesou mais que colete. Ninguém piscou. Ninguém mexeu um músculo. O apito soou de novo. — “Aquecimento! Trinta voltas! Correndo! Bora fazer o chão respeitar o BOPE!” E o pátio virou trovão. Cento e cinquenta botas batendo ao mesmo tempo. O som ritmado, bruto, bonito tipo coração batendo em uníssono. O suor veio rápido. O ar seco raspava a garganta, e o frio da madrugada evaporava na pele quente. Cada passo era uma lembrança do porquê de estar ali. A mente focada, o corpo automático. No BOPE, pensar demais atrapalha o ritmo. Negão passou correndo ao meu lado, ofegante, mas ainda com aquele humor desgraçado dele. — “p***a, Santana, tu corre como se tivesse o d***o atrás!” Sem olhar pra ele, respondi: — “E se tiver, ele que corra mais.” Riram alguns. O riso breve que quebra o peso, mas não o respeito. Na décima volta, o sargento gritou: — “Flexão! No chão!” A tropa inteira desabou no cimento quente. Braço firme, mão suja, respiração no ritmo da ordem. — “Um! Dois! Três!” As vozes se juntavam, ecoando forte. O som de guerra sem tiro. Depois veio abdominal, polichinelo, prancha. A pele ardendo, o músculo tremendo, mas ninguém cede. Quem é caveira aprende a sangrar sem sujar o chão. Quando acabou, o sol já rasgava o céu. O suor brilhando na farda preta, o ar pesado, a respiração curta. O sargento andou entre as fileiras, o olhar duro, mas com aquele respeito escondido nos cantos. — “É por isso que vocês são o que são. Homem do BOPE não se faz com palavra. Se faz com dor. Amanhã, ou daqui a uma hora, o inferno pode chamar e quando chamar, quero ver esse mesmo olhar aqui. Porque caveira não recua. Caveira não cansa. Caveira vence.” A tropa respondeu em uníssono, batendo o punho no peito: — “CAVEIRA!” O som ecoou pelas paredes como trovão. E por um segundo, o mundo inteiro pareceu ouvir. O sargento virou o rosto pra mim e gritou: — “Capitão Santana!” — “Senhor!” — respondi firme. — “Tu puxa o exercício de tiro. Mostra pra esses moleques o que é precisão.” Dei dois passos à frente. O suor escorrendo da testa, a farda colada no corpo. Peguei o fuzil, destravei, e o peso familiar encaixou na mão. — “Linha de fogo!” — gritei. O grupo se posicionou. O estande de tiro cheirava a pólvora velha e ferrugem. Alvo à frente, 50 metros. Silêncio. — “Carregar!” Os carregadores se encaixaram com o mesmo som. Clack. Clack. Clack. — “Fogo!” O pátio virou barulho. O som seco, repetido, exato. Cada disparo uma batida de coração. Cada impacto no alvo, uma resposta. O recuo batendo no ombro, o cheiro da pólvora subindo. Nada no mundo tem o mesmo peso de uma arma respondendo na tua mão. E ali, no meio da fumaça e do barulho, eu tava onde sempre quis estar: entre o controle e o caos. Acabou o treino, e o pátio voltou a respirar devagar. Negão veio até mim, o rosto suado, rindo. — “Um dia eu aprendo a atirar igual o senhor, capitão.” — “Não aprende não, Negão.” — respondi, guardando o fuzil. — “Porque eu não atiro pra treinar. Atirar é o que me mantém vivo.” Ele riu mais alto, mas no olhar dele eu vi o respeito. Aquele respeito que não vem do medo, vem da verdade. O sargento passou por nós, entregando os relatórios do dia. — “Descanso até às dezoito. Às dezenove, reunião no gabinete. Boato de nova operação vindo aí. E dizem que vai ser grande.” Guardei o papel no bolso. Nova operação. O mesmo frio subindo pela espinha. A tropa começou a dispersar. Uns foram pro refeitório, outros pro alojamento. Eu fiquei. Olhei pro pátio vazio, pro chão marcado de bota e suor, e pensei: Cada gota que cai aqui é ensaio pra guerra. E cada guerra, um lembrete de que a farda não é escudo é sentença. O sol batia forte no brasão da minha manga, a caveira brilhando como se sorrisse pra mim. Peguei o fuzil, apoiei no ombro e caminhei de volta pro alojamento. Enquanto o resto descansava, eu só queria uma coisa: silêncio o bastante pra lembrar por que ainda tô aqui.
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