— O PESO DO PRETO
Narrado por Miguel Santana
O som do apito veio rasgando o ar antes do sol nascer.
Cinco da manhã.
Nem o céu tinha decidido se clareava ou não, e o pátio já fervia.
A base do BOPE acorda antes da cidade.
Aqui não tem despertador, tem grito.
E quem demora pra levantar, aprende rápido que o chão é mais duro quando a farda ainda tá amarrotada.
Levantei, puxei o colete, amarrei as botas e saí pro corredor.
O cheiro era o mesmo de sempre: café forte, graxa, suor e ferro.
O tipo de mistura que marca a pele mais do que qualquer tatuagem.
No pátio, a tropa já tava reunida.
O céu cinza, o chão ainda úmido da madrugada, e o eco das vozes batendo nas paredes de concreto.
— “Forma! Linha!” — gritou o sargento Nogueira, com aquela voz que corta o ar como navalha.
A formação aconteceu no reflexo.
Homem por homem, fileira por fileira, tudo no compasso.
O olhar no horizonte, o corpo firme.
A respiração no mesmo ritmo, pesada, ensaiada, treinada pra suportar qualquer inferno.
Nogueira andou na frente do grupo, devagar, o apito pendurado no pescoço, as mãos cruzadas nas costas.
— “Caveira que reclama, volta pra rua. Aqui não tem folga, não tem desculpa, não tem herói. Aqui tem disciplina. E disciplina, senhores, é o que separa quem vive de quem volta num caixão!”
O silêncio que veio depois pesou mais que colete.
Ninguém piscou.
Ninguém mexeu um músculo.
O apito soou de novo.
— “Aquecimento! Trinta voltas! Correndo! Bora fazer o chão respeitar o BOPE!”
E o pátio virou trovão.
Cento e cinquenta botas batendo ao mesmo tempo.
O som ritmado, bruto, bonito tipo coração batendo em uníssono.
O suor veio rápido.
O ar seco raspava a garganta, e o frio da madrugada evaporava na pele quente.
Cada passo era uma lembrança do porquê de estar ali.
A mente focada, o corpo automático.
No BOPE, pensar demais atrapalha o ritmo.
Negão passou correndo ao meu lado, ofegante, mas ainda com aquele humor desgraçado dele.
— “p***a, Santana, tu corre como se tivesse o d***o atrás!”
Sem olhar pra ele, respondi:
— “E se tiver, ele que corra mais.”
Riram alguns.
O riso breve que quebra o peso, mas não o respeito.
Na décima volta, o sargento gritou:
— “Flexão! No chão!”
A tropa inteira desabou no cimento quente.
Braço firme, mão suja, respiração no ritmo da ordem.
— “Um! Dois! Três!”
As vozes se juntavam, ecoando forte.
O som de guerra sem tiro.
Depois veio abdominal, polichinelo, prancha.
A pele ardendo, o músculo tremendo, mas ninguém cede.
Quem é caveira aprende a sangrar sem sujar o chão.
Quando acabou, o sol já rasgava o céu.
O suor brilhando na farda preta, o ar pesado, a respiração curta.
O sargento andou entre as fileiras, o olhar duro, mas com aquele respeito escondido nos cantos.
— “É por isso que vocês são o que são.
Homem do BOPE não se faz com palavra. Se faz com dor.
Amanhã, ou daqui a uma hora, o inferno pode chamar e quando chamar, quero ver esse mesmo olhar aqui.
Porque caveira não recua.
Caveira não cansa.
Caveira vence.”
A tropa respondeu em uníssono, batendo o punho no peito:
— “CAVEIRA!”
O som ecoou pelas paredes como trovão.
E por um segundo, o mundo inteiro pareceu ouvir.
O sargento virou o rosto pra mim e gritou:
— “Capitão Santana!”
— “Senhor!” — respondi firme.
— “Tu puxa o exercício de tiro. Mostra pra esses moleques o que é precisão.”
Dei dois passos à frente.
O suor escorrendo da testa, a farda colada no corpo.
Peguei o fuzil, destravei, e o peso familiar encaixou na mão.
— “Linha de fogo!” — gritei.
O grupo se posicionou.
O estande de tiro cheirava a pólvora velha e ferrugem.
Alvo à frente, 50 metros.
Silêncio.
— “Carregar!”
Os carregadores se encaixaram com o mesmo som.
Clack.
Clack.
Clack.
— “Fogo!”
O pátio virou barulho.
O som seco, repetido, exato.
Cada disparo uma batida de coração.
Cada impacto no alvo, uma resposta.
O recuo batendo no ombro, o cheiro da pólvora subindo.
Nada no mundo tem o mesmo peso de uma arma respondendo na tua mão.
E ali, no meio da fumaça e do barulho, eu tava onde sempre quis estar:
entre o controle e o caos.
Acabou o treino, e o pátio voltou a respirar devagar.
Negão veio até mim, o rosto suado, rindo.
— “Um dia eu aprendo a atirar igual o senhor, capitão.”
— “Não aprende não, Negão.” — respondi, guardando o fuzil. — “Porque eu não atiro pra treinar. Atirar é o que me mantém vivo.”
Ele riu mais alto, mas no olhar dele eu vi o respeito.
Aquele respeito que não vem do medo, vem da verdade.
O sargento passou por nós, entregando os relatórios do dia.
— “Descanso até às dezoito. Às dezenove, reunião no gabinete.
Boato de nova operação vindo aí.
E dizem que vai ser grande.”
Guardei o papel no bolso.
Nova operação.
O mesmo frio subindo pela espinha.
A tropa começou a dispersar.
Uns foram pro refeitório, outros pro alojamento.
Eu fiquei.
Olhei pro pátio vazio, pro chão marcado de bota e suor, e pensei:
Cada gota que cai aqui é ensaio pra guerra.
E cada guerra, um lembrete de que a farda não é escudo é sentença.
O sol batia forte no brasão da minha manga, a caveira brilhando como se sorrisse pra mim.
Peguei o fuzil, apoiei no ombro e caminhei de volta pro alojamento.
Enquanto o resto descansava, eu só queria uma coisa:
silêncio o bastante pra lembrar por que ainda tô aqui.