CAPITULO 1

1148 Words
NARRADO POR MIGUEL SANTANA O relógio marcava 05h12. Ainda escuro. O tipo de madrugada que parece segurar o ar antes do caos. O pátio do batalhão tava vivo. Homem andando pra todo lado, colete sendo ajustado, fuzil conferido, capacete travando no queixo. A respiração era calma, mas o clima… tenso, como sempre é antes de descer. — “Senhores, atenção!” — a voz do comandante cortou o ar, seca, firme. Todo mundo parou. O mapa do Complexo do Castelar tava aberto em cima da mesa metálica, com marcação vermelha em três becos. Ponto Alfa, Bravo e Charlie. Informante tinha passado o recado: o tráfico tava estocando armamento pesado dentro da escola abandonada no alto do morro. Fuzil importado, granada, até lança-foguete. Se o caveirão não subisse hoje, amanhã ia ser guerra de verdade. — “Santana, tu puxa a linha de frente. Touro e n***o contigo. Entrada pelo Bravo. Sem margem pra erro.” Assenti com a cabeça. Sem palavra. Caveira não promete. Cumpre. Cada um sabe o que tem que fazer. A tropa não conversa se entende no olhar. Verifiquei o fuzil. Carregador cheio, travado, conferi a mira. Colete ajustado. No bolso, só o básico: carregador extra, lanterna tática, granada de luz e o Santo Antônio no bolso esquerdo presente da minha mãe. O caveirão já roncava lá fora. Motor diesel, cheiro de ferro queimando e chuva fina caindo. Entrei, sentei na frente. Touro do lado, n***o atrás. O comandante passou o rádio: — “Equipe Alfa em movimento. Mantenham o rádio limpo. Comunicação só se for pra salvar vida.” O barulho do motor engoliu o resto. Ninguém fala no caveirão. Todo mundo pensa. Cada um conversa com o próprio medo do jeito que dá. Touro puxou o cigarro, olhou pra mim e soltou: — “Mais um dia no paraíso, capitão.” — “O paraíso é o que vem depois da missão, irmão.” Ele riu. Riso seco, sem alegria. Aquele tipo de riso que homem aprende quando já viu sangue demais. O caveirão parou no sopé do morro. Ponto Bravo. — “Desembarca!” — gritei. Porta abriu com tranco. O barulho ecoou. O chão ainda molhado da chuva, cheiro de barro e diesel. Avançamos. Em silêncio. Formação tática. Um atrás do outro, fuzil empunhado, olho vivo. No beco, só o som das goteiras. Luz fraca piscando no poste. Cachorro latiu lá em cima sinal r**m. Negão fez sinal de “dois” com os dedos. Duas sombras, movimento lateral. — “Contato.” — sussurrei no rádio. A tropa se dividiu. Touro seguiu pela esquerda, eu pela direita. O primeiro tiro veio seco, rasgando o ar. Reflexo. Abaixei, mirei, respondi. Três disparos curtos. Um corpo caiu no barro. O outro correu pro beco. — “Avança!” Subi correndo, o fuzil quente na mão. Beco estreito, parede de tijolo, o barulho do coração misturado ao do rádio. — “Um ferido confirmado. Homem armado fugindo pelo telhado.” — voz do n***o no rádio. — “Sobe, sobe, sobe!” — gritei, e o time respondeu. O morro virou labirinto. Porta batendo, gente gritando, cortina abrindo. O cheiro de café fresco misturado com pólvora. No alto, o som dos passos. Peguei impulso, subi o muro, encostei o joelho no telhado. O homem corria com o fuzil nas costas. Camisa rasgada, olhar de desespero. — “Larga a arma! Polícia!” — gritei. Ele virou o rosto devia ter uns vinte anos. O tipo que nunca teve escolha. Mas escolha ou não, apontou o fuzil. Era ele ou eu. Não pensei. Treinei pra não pensar. Dois tiros. Secos. Certeiros. Silêncio. O corpo caiu no telhado, o fuzil escorregou pro chão. Desci devagar. O coração batendo no mesmo ritmo do rádio. Olhei o rosto do moleque. Parecia cansado. Só isso. Fechei os olhos por um segundo. Respirei fundo. A missão não acaba quando o tiro para. Acaba quando tu consegue respirar de novo. — “Área segura.” — falei pro rádio. — “Material apreendido. Um neutralizado.” O comandante respondeu: — “Positivo, Capitão. Retorna com a equipe.” Desci os degraus devagar, com o sol começando a nascer por trás do morro. Lá de cima, dava pra ver o caveirão esperando, preto, imponente, cercado de fumaça e vapor. A cidade acordava lá embaixo. E eu… Eu só pensava que cada missão deixava um pedaço de mim pra trás. O rádio chiou de novo. Outra operação. Outro nome. Outro endereço. O mesmo inferno. Abaixei a cabeça e subi no caveirão. Pra quem é do BOPE, descanso é só o intervalo entre dois tiros. ..... Meu nome é Miguel Santana, tenho vinte anos e carrego no peito o brasão do BOPE. O mesmo peso que muitos homens mais velhos que eu não aguentam nem por um mês. E sim, esse “Santana” é o mesmo que o morro aprendeu a respeitar e temer. Filho do Reinaldo Santana. O Rey do Cruzeiro. O homem que transformou caos em ordem e botou o nome da nossa família no alto à força, no sangue e na dor. Mas eu não nasci pra continuar o trono. Nasci pra provar que dá pra carregar o nome sem o peso do crime. E é isso que eu faço, todo santo dia. Deitado na cama da base, o fuzil do lado, o corpo ainda latejando da última operação, eu penso em tudo que precisei ser pra chegar aqui. O BOPE não é quartel, é inferno controlado. E pra entrar, tem que ser mais que forte tem que ser frio. A cabeça no lugar, o coração blindado. Tenho cicatriz no ombro esquerdo lembrança da primeira troca de tiro. Tenho tatuagem no antebraço, escrita que carrego desde os 17: “Sem medo, sem volta.” E tenho o sangue do meu pai correndo quente nas veias. Só que o meu campo de guerra é outro. Quando o caveirão desce o asfalto, o corpo inteiro se prepara. O barulho do motor é batimento. A mão vai pro gatilho sem pensar, mas a mente tá lá na frente, calculando. É assim que a gente sobrevive. Tem cara aqui dentro que acha que ser do BOPE é glória. Eu sei que é dívida. Dívida com o meu passado, com o nome que carrego, e com o morro que viu o filho do Rei vestir farda. E eu não fujo disso, não. Nunca perguntaram a profissão do meu pai e talvez seja melhor assim. Mas se um dia perguntarem, eu não vou mentir. E se alguém achar problema nisso, eu não penso duas vezes. Porque eu sei quem eu sou. Sou o moleque que aprendeu a mirar com o olhar do pai e a sentir com o coração da mãe. Sou o homem que entra na guerra e volta limpo. Sou Miguel Santana filho do morro, homem da farda, e dono do próprio destino.
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