A VERDADE QUE RASGA

1658 Words
A casa de Tia Naná ficava na parte alta do Beira Mar, onde o vento insistia em bater nas janelas como se quisesse arrancar pedaços da noite. Era simples, de paredes azul-claro e móveis antigos, mas havia algo ali que Samantha não encontrava nem na própria casa: calor humano. Naná abriu a porta, acendeu a luz da sala e pegou um rolo de papel na cozinha. — Limpa esse rosto. Parece que andou lutando com o mundo. Samantha sentou-se no sofá e respirou fundo. O choro vinha em intervalos curtos, mas cada vez mais dolorosos, como se agora o corpo entendesse que podia desabar. A tia colocou uma xícara de chá de camomila quente nas mãos dela. — Bebe devagar — disse Naná. — Aqui no morro ninguém fica sozinho. Nem quem acha que não merece companhia. A frase bateu fundo. Era conforto demais para alguém que, até poucas horas antes, tinha ouvido que não era digna nem de amor. — Eu não sei por onde começar… — Samantha murmurou. — Começa pelo que tá doendo. O resto a gente ajeita depois. Ela respirou fundo, tentando organizar o caos dentro de si. — Eu fui traída, tia. Pelo Rafael… e pela Carla. Naná fechou os olhos por um instante, como quem segurava a própria indignação. — Eu sempre senti que esse tal de Rafael não prestava. Tinha olhar de quem só ama a si mesmo. Samantha continuou: — Eu cheguei em casa com o bolo que ele gostava. Achei que ele ia ficar feliz. Mas… eles estavam na minha cama. Ele e ela. O silêncio que seguiu foi pesado, mas não vazio. Era o tipo de silêncio que prepara terreno para verdades importantes. — Filha… — Naná disse, aproximando-se — isso não tem a ver com você. Tem a ver com eles. Com a covardia dos dois. Samantha mexeu os dedos, inquieta. — Ele disse que tinha vergonha de mim. Que… não queria ser “o cara da gorda”. A tia cerrou os dentes. — Eu vou te dizer uma coisa que talvez você não saiba, Sami. Quem tem vergonha do amor, tem vergonha de existir. Gente assim vai arrastar desgraça pra onde passar. O choro subiu de novo, mais forte. Mas dessa vez vinha acompanhado de algo que ela não tinha sentido antes: indignação. Um fio fino, quase imperceptível, mas que começava a existir. — A Carla ainda disse… — a voz tremeu — que eu devia agradecer por alguém me querer. Naná ergueu o queixo, indignada. — Essa menina sempre foi espelho quebrado. Vive refletindo frustração nos outros. A tia segurou as mãos de Samantha. — Você é mulher de valor. As curvas que você tem são vida, não defeito. Quem não enxerga isso é cego de alma. Aquelas palavras caíram dentro dela com força, quebrando espaços que antes eram só silêncio e dor. — Eu não posso voltar para casa, tia. Eles me culpam por tudo. Até pela traição. — Eu já imaginava. — Naná suspirou. — Fica aqui o tempo que precisar. Mas… você tem que saber de uma coisa. Samantha levantou o olhar, confusa. — O quê? — Aqui em cima, neste morro… a vida não é tranquila. Tem regra, tem respeito, tem perigo. Se você ficar, tem que aprender a andar com firmeza, mesmo tremendo por dentro. Samantha concordou com um aceno ainda inseguro. — Eu aprendo. — Aprende, sim. E, por falar em aprender, hoje você chamou atenção de uma pessoa que sabe ver além dos olhos. Samantha franziu a testa. — Quem? Naná hesitou, pesando as palavras. — O Lobo. O nome fez Samantha estremecer, mesmo sem saber por quê. — Quem é ele? — O dono daqui. Quem comanda o Beira Mar. Tudo passa por ele. Tudo para nele. Samantha soltou o ar devagar, tentando entender. — E ele me viu chegando? — Viu. E olhou com interesse. O que isso significa? Nada ainda. Ou tudo, dependendo de como a vida se mover. — Naná sorriu de lado. — Mas não precisa ter medo. Ele não encosta em ninguém sem querer. E não permite que encostem também. O coração de Samantha bateu rápido. Não era medo. Era uma sensação nova, estranha, como se o destino ganhasse cor — uma cor profunda, escura, mas curiosamente bonita. — Tia, eu não quero envolver ninguém nos meus problemas — disse Samantha. — Não se preocupe com o que não chegou. Uma coisa de cada vez. Você vai tomar banho, comer, dormir. Amanhã, a gente conversa sobre futuro. Hoje você só respira. Samantha sorriu pela primeira vez desde a tragédia. Era um sorriso frágil, cansado, mas real. — Obrigada por me acolher — ela murmurou. — Acolher você é fácil, minha filha. Difícil é não querer proteger. Depois do banho quente — o primeiro momento desde a tarde em que ela realmente relaxou —, Samantha colocou uma camiseta larga emprestada por Naná e deitou-se na cama do quarto pequeno de hóspedes. A janela dava vista para o morro iluminado por luzes amarelas, os becos parecendo rios de fogo cortando a noite. O som da favela não era como o da cidade. Ele pulsava. Risos, motos, música distante, vozes misturadas… Tudo parecia vivo de um jeito bruto e honesto. Ela passou a mão pelo lençol limpo e respirou fundo. Estava longe de casa. Longe do que conhecia. Longe de quem a machucou. E, pela primeira vez, aquilo parecia certo. Quando começou a fechar os olhos, ouviu batidas na porta. — Sami? — era Naná. — É só pra avisar que vou trancar o portão. Dorme tranquila, viu? — Vou tentar — Samantha respondeu, com um sorriso cansado. — E outra coisa… — a tia disse, com a voz mais baixa. — Se ouvir motos perto da viela, não se assusta. O Lobo faz ronda de madrugada. O estômago dela deu um nó. — Ele patrulha o próprio morro? — Ele mantém tudo funcionando. Não é santo, mas também não é bicho-papão. Aqui, o que ele diz é lei. Por isso o povo o respeita. E porque, apesar do jeito dele, ele protege os nossos. Samantha concordou em silêncio. Era muita informação para um dia só. A porta fechou e o quarto ficou novamente quieto. Samantha deitou-se, puxou o cobertor e deixou a mente vagar — o que não era exatamente uma boa ideia. As cenas voltaram com nitidez c***l: Carla sorrindo. Rafael vestindo a calça com indiferença. A mãe falando que ela tinha “dificultado as coisas”. A dor veio tão forte que ela sentiu o maxilar tremer. Um tremor pequeno, mas profundo. Ela se virou para o lado, abraçando o travesseiro. Tentou respirar. Tentou pensar em outra coisa. Tentou se convencer de que iria superar. Mas o corpo falhou. E o pranto voltou. Foi ali, no quarto simples da casa da tia, que Samantha entendeu que algumas quedas não são silenciosas — elas continuam dentro da gente, ecoando. E, quando finalmente adormeceu, já era madrugada. No meio da noite, o som de uma moto a despertou. Não era um barulho comum — era firme, constante, como se o motorista soubesse exatamente onde queria ir. Samantha levantou a cabeça e olhou pela fresta da janela. Lá fora, a rua estreita estava iluminada por um único poste. A moto parou não muito longe, e um homem desceu. A silhueta era alta, forte, de ombros largos. Ele tirou o capacete devagar, revelando cabelos negros cortados curtos e um rosto sério, concentrado. Mesmo de longe, Samantha sentiu algo estranho correr pela espinha. Como se o ar mudasse ao redor dele. Um grupo de rapazes apareceu na esquina, conversando baixinho. Ao verem o homem, se endireitaram imediatamente. — Boa noite, Lobo — um deles disse. — Boa noite — ele respondeu, voz grave, firme, sem pressa. Não parecia arrogante. Parecia alguém acostumado a ser obedecido sem levantar a voz. O homem olhou para a viela que levava à casa de Naná. Por um instante, seus olhos percorreram o caminho até a janela onde Samantha estava — embora ele não pudesse vê-la no escuro. Era como se percebesse a presença dela mesmo assim. Samantha se afastou da cortina instintivamente, com o coração acelerado. Não de medo. Mas de algo que não conseguia nomear. Na manhã seguinte, o cheiro de café fresco acordou Samantha. O cansaço ainda pesava, mas a dor parecia menos afiada, como se o sono tivesse suavizado parte da ferida. Naná estava na cozinha, mexendo uma panela de ovo mexido. — Dormiu? — perguntou ela, virando-se. — Um pouco — Samantha respondeu. — Um pouco já é vitória pra quem teve o dia que você teve. A tia colocou o café na mesa e se sentou em frente dela. — Hoje vamos fazer o seguinte: você vai se alimentar. Depois vai tomar um ar. Caminhar pelo morro comigo. Conhecer o lugar. Se sentir firme. E, se tiver coragem, vamos juntas buscar suas coisas na casa dos seus pais. Samantha sentiu a respiração travar. — Eu não quero ver ninguém de lá. — Você não vai. Eu vou falar. Você só pega o que é seu. Eles que lidem com a própria consciência — Naná disse, sem espaço para discussão. Antes que Samantha pudesse responder, alguém bateu no portão com três toques secos. Naná ergueu uma sobrancelha. — Quem é tão cedo assim? Ela foi até a janela e olhou discretamente. Samantha se levantou devagar, ansiosa. — Tia… quem é? — É ele — Naná respondeu. — Ele quem? Mas Samantha já sabia. Sentiu. Reconheceu o nome antes mesmo que a tia completasse. — O Lobo. A respiração dela falhou por um segundo. Por que ele estaria ali? Naná abriu o portão. A voz grave atravessou a casa. — Ouvi dizer que chegou visita nova ontem. Só vim saber se está tudo tranquilo. Samantha sentiu o corpo inteiro estremecer. Era isso. O destino começava agora. E nada do que viria depois seria simples.
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