A casa de Tia Naná ficava na parte alta do Beira Mar, onde o vento insistia em bater nas janelas como se quisesse arrancar pedaços da noite. Era simples, de paredes azul-claro e móveis antigos, mas havia algo ali que Samantha não encontrava nem na própria casa: calor humano.
Naná abriu a porta, acendeu a luz da sala e pegou um rolo de papel na cozinha.
— Limpa esse rosto. Parece que andou lutando com o mundo.
Samantha sentou-se no sofá e respirou fundo. O choro vinha em intervalos curtos, mas cada vez mais dolorosos, como se agora o corpo entendesse que podia desabar.
A tia colocou uma xícara de chá de camomila quente nas mãos dela.
— Bebe devagar — disse Naná. — Aqui no morro ninguém fica sozinho. Nem quem acha que não merece companhia.
A frase bateu fundo.
Era conforto demais para alguém que, até poucas horas antes, tinha ouvido que não era digna nem de amor.
— Eu não sei por onde começar… — Samantha murmurou.
— Começa pelo que tá doendo. O resto a gente ajeita depois.
Ela respirou fundo, tentando organizar o caos dentro de si.
— Eu fui traída, tia. Pelo Rafael… e pela Carla.
Naná fechou os olhos por um instante, como quem segurava a própria indignação.
— Eu sempre senti que esse tal de Rafael não prestava. Tinha olhar de quem só ama a si mesmo.
Samantha continuou:
— Eu cheguei em casa com o bolo que ele gostava. Achei que ele ia ficar feliz. Mas… eles estavam na minha cama. Ele e ela.
O silêncio que seguiu foi pesado, mas não vazio. Era o tipo de silêncio que prepara terreno para verdades importantes.
— Filha… — Naná disse, aproximando-se — isso não tem a ver com você. Tem a ver com eles. Com a covardia dos dois.
Samantha mexeu os dedos, inquieta.
— Ele disse que tinha vergonha de mim. Que… não queria ser “o cara da gorda”.
A tia cerrou os dentes.
— Eu vou te dizer uma coisa que talvez você não saiba, Sami. Quem tem vergonha do amor, tem vergonha de existir. Gente assim vai arrastar desgraça pra onde passar.
O choro subiu de novo, mais forte. Mas dessa vez vinha acompanhado de algo que ela não tinha sentido antes: indignação. Um fio fino, quase imperceptível, mas que começava a existir.
— A Carla ainda disse… — a voz tremeu — que eu devia agradecer por alguém me querer.
Naná ergueu o queixo, indignada.
— Essa menina sempre foi espelho quebrado. Vive refletindo frustração nos outros.
A tia segurou as mãos de Samantha.
— Você é mulher de valor. As curvas que você tem são vida, não defeito. Quem não enxerga isso é cego de alma.
Aquelas palavras caíram dentro dela com força, quebrando espaços que antes eram só silêncio e dor.
— Eu não posso voltar para casa, tia. Eles me culpam por tudo. Até pela traição.
— Eu já imaginava. — Naná suspirou. — Fica aqui o tempo que precisar. Mas… você tem que saber de uma coisa.
Samantha levantou o olhar, confusa.
— O quê?
— Aqui em cima, neste morro… a vida não é tranquila. Tem regra, tem respeito, tem perigo. Se você ficar, tem que aprender a andar com firmeza, mesmo tremendo por dentro.
Samantha concordou com um aceno ainda inseguro.
— Eu aprendo.
— Aprende, sim. E, por falar em aprender, hoje você chamou atenção de uma pessoa que sabe ver além dos olhos.
Samantha franziu a testa.
— Quem?
Naná hesitou, pesando as palavras.
— O Lobo.
O nome fez Samantha estremecer, mesmo sem saber por quê.
— Quem é ele?
— O dono daqui. Quem comanda o Beira Mar. Tudo passa por ele. Tudo para nele.
Samantha soltou o ar devagar, tentando entender.
— E ele me viu chegando?
— Viu. E olhou com interesse. O que isso significa? Nada ainda. Ou tudo, dependendo de como a vida se mover. — Naná sorriu de lado. — Mas não precisa ter medo. Ele não encosta em ninguém sem querer. E não permite que encostem também.
O coração de Samantha bateu rápido.
Não era medo.
Era uma sensação nova, estranha, como se o destino ganhasse cor — uma cor profunda, escura, mas curiosamente bonita.
— Tia, eu não quero envolver ninguém nos meus problemas — disse Samantha.
— Não se preocupe com o que não chegou. Uma coisa de cada vez. Você vai tomar banho, comer, dormir. Amanhã, a gente conversa sobre futuro. Hoje você só respira.
Samantha sorriu pela primeira vez desde a tragédia.
Era um sorriso frágil, cansado, mas real.
— Obrigada por me acolher — ela murmurou.
— Acolher você é fácil, minha filha. Difícil é não querer proteger.
Depois do banho quente — o primeiro momento desde a tarde em que ela realmente relaxou —, Samantha colocou uma camiseta larga emprestada por Naná e deitou-se na cama do quarto pequeno de hóspedes. A janela dava vista para o morro iluminado por luzes amarelas, os becos parecendo rios de fogo cortando a noite.
O som da favela não era como o da cidade.
Ele pulsava.
Risos, motos, música distante, vozes misturadas…
Tudo parecia vivo de um jeito bruto e honesto.
Ela passou a mão pelo lençol limpo e respirou fundo.
Estava longe de casa.
Longe do que conhecia.
Longe de quem a machucou.
E, pela primeira vez, aquilo parecia certo.
Quando começou a fechar os olhos, ouviu batidas na porta.
— Sami? — era Naná. — É só pra avisar que vou trancar o portão. Dorme tranquila, viu?
— Vou tentar — Samantha respondeu, com um sorriso cansado.
— E outra coisa… — a tia disse, com a voz mais baixa. — Se ouvir motos perto da viela, não se assusta. O Lobo faz ronda de madrugada.
O estômago dela deu um nó.
— Ele patrulha o próprio morro?
— Ele mantém tudo funcionando. Não é santo, mas também não é bicho-papão. Aqui, o que ele diz é lei. Por isso o povo o respeita. E porque, apesar do jeito dele, ele protege os nossos.
Samantha concordou em silêncio.
Era muita informação para um dia só.
A porta fechou e o quarto ficou novamente quieto.
Samantha deitou-se, puxou o cobertor e deixou a mente vagar — o que não era exatamente uma boa ideia.
As cenas voltaram com nitidez c***l:
Carla sorrindo.
Rafael vestindo a calça com indiferença.
A mãe falando que ela tinha “dificultado as coisas”.
A dor veio tão forte que ela sentiu o maxilar tremer.
Um tremor pequeno, mas profundo.
Ela se virou para o lado, abraçando o travesseiro.
Tentou respirar.
Tentou pensar em outra coisa.
Tentou se convencer de que iria superar.
Mas o corpo falhou.
E o pranto voltou.
Foi ali, no quarto simples da casa da tia, que Samantha entendeu que algumas quedas não são silenciosas — elas continuam dentro da gente, ecoando.
E, quando finalmente adormeceu, já era madrugada.
No meio da noite, o som de uma moto a despertou.
Não era um barulho comum — era firme, constante, como se o motorista soubesse exatamente onde queria ir. Samantha levantou a cabeça e olhou pela fresta da janela.
Lá fora, a rua estreita estava iluminada por um único poste. A moto parou não muito longe, e um homem desceu. A silhueta era alta, forte, de ombros largos. Ele tirou o capacete devagar, revelando cabelos negros cortados curtos e um rosto sério, concentrado.
Mesmo de longe, Samantha sentiu algo estranho correr pela espinha.
Como se o ar mudasse ao redor dele.
Um grupo de rapazes apareceu na esquina, conversando baixinho. Ao verem o homem, se endireitaram imediatamente.
— Boa noite, Lobo — um deles disse.
— Boa noite — ele respondeu, voz grave, firme, sem pressa.
Não parecia arrogante.
Parecia alguém acostumado a ser obedecido sem levantar a voz.
O homem olhou para a viela que levava à casa de Naná.
Por um instante, seus olhos percorreram o caminho até a janela onde Samantha estava — embora ele não pudesse vê-la no escuro. Era como se percebesse a presença dela mesmo assim.
Samantha se afastou da cortina instintivamente, com o coração acelerado.
Não de medo.
Mas de algo que não conseguia nomear.
Na manhã seguinte, o cheiro de café fresco acordou Samantha.
O cansaço ainda pesava, mas a dor parecia menos afiada, como se o sono tivesse suavizado parte da ferida.
Naná estava na cozinha, mexendo uma panela de ovo mexido.
— Dormiu? — perguntou ela, virando-se.
— Um pouco — Samantha respondeu.
— Um pouco já é vitória pra quem teve o dia que você teve.
A tia colocou o café na mesa e se sentou em frente dela.
— Hoje vamos fazer o seguinte: você vai se alimentar. Depois vai tomar um ar. Caminhar pelo morro comigo. Conhecer o lugar. Se sentir firme. E, se tiver coragem, vamos juntas buscar suas coisas na casa dos seus pais.
Samantha sentiu a respiração travar.
— Eu não quero ver ninguém de lá.
— Você não vai. Eu vou falar. Você só pega o que é seu. Eles que lidem com a própria consciência — Naná disse, sem espaço para discussão.
Antes que Samantha pudesse responder, alguém bateu no portão com três toques secos.
Naná ergueu uma sobrancelha.
— Quem é tão cedo assim?
Ela foi até a janela e olhou discretamente.
Samantha se levantou devagar, ansiosa.
— Tia… quem é?
— É ele — Naná respondeu.
— Ele quem?
Mas Samantha já sabia.
Sentiu.
Reconheceu o nome antes mesmo que a tia completasse.
— O Lobo.
A respiração dela falhou por um segundo.
Por que ele estaria ali?
Naná abriu o portão.
A voz grave atravessou a casa.
— Ouvi dizer que chegou visita nova ontem. Só vim saber se está tudo tranquilo.
Samantha sentiu o corpo inteiro estremecer.
Era isso.
O destino começava agora.
E nada do que viria depois seria simples.