A cidade respirava um ar pesado sob as luzes dos postes quando Lily saiu do hospital. David se ferira ao protegê-la e, por mais cortantes que fossem suas palavras, ela não podia ignorar o fardo de culpa que carregavam.
Primeiro, Lily rumou para o lado leste da cidade para buscar um raro caldo de cogumelos silvestres. m*l efetuara o pagamento, Marina ligou novamente.
"Lily, esqueci de avisar que o David agora prefere sopas de ervas ao vapor. Tem um lugar novo no lado oeste. Pode trazer essa também?" A voz de Marina era melíflua ao telefone, mas transparecia uma firmeza de aço.
Lily hesitou, observando as sacolas já pesadas em suas mãos. "Eu já estou a caminho..."
"Não se esqueça de que você é a secretária dele. Isto está dentro de suas atribuições," Marina a interrompeu, gelada.
Lily cerrou os dentes. "Está bem."
Ao retornar ao hospital, suas roupas colavam-se ao corpo como uma segunda pele, seus braços latejavam com o peso da comida, e o suor escoria sua testa.
Mas nada a preparou para o que seus olhos testemunharam pela fresta da porta entreaberta.
David, reclinado na cama com descontração, ria baixamente enquanto Marina lhe oferecia uma colherada de algo de uma tigela. Sua expressão estava serena, quase terna — um lado dele que Lily não via há eras.
Seu peito apertou-se num só golpe. "Já comeram?" perguntou, rompendo a cena.
David ergueu o olhar, surpreso. Os olhos de Marina arregalaram-se, não de culpa, mas de triunfo.
"Não imaginei que você demoraria tanto," ela disse, fria. Lily arremessou as sacolas sobre a mesa com um baque seco. "Está brincando? Você me mandou para o leste, depois me chamou a meio caminho e me fez ir para o oeste. Fiquei rodando pela cidade inteira enquanto vocês dois... se deliciavam com comida de delivery?"
Marina compôs sua melhor expressão de 'arrependida'. "Sinto muito, Lily. Eu não fazia ideia de que os gostos dele tinham mudado na minha ausência. Achei que ele ainda preferia as receitas de antes."
Lily soltou um bufado de desdém. "Poupe-me da encenação."
"Lily," o tom de David tornou-se cortante, "chega."
"Por favor, não fique zangada," Marina soluçou, lágrimas brotando em seus olhos. "Não deixarei seu esforço ser em vão. Se você puder me perdoar, eu como tudo sozinha—cada migalha." Dramaticamente, ela pegou o recipiente do caldo de cogumelos e começou a destampar.
Lily a observava, incrédula. Será que essa mulher falava sério? Todo aquele teatro, as lágrimas de crocodilo—era ridículo. Mas não havia graça alguma no modo como David a fitava, como se ela fosse a desarrazoada.
"Você não precisa se humilhar," Lily retrucou, glacial. "Não me importa o que faça com isso."
Ela se virou para partir, a garganta cerrada pela fúria e humilhação.
Atrás dela, ouviu o ruído do plástico e o tilintar dos hashis.
"Falo sério," Marina insistiu. "Eu vou comer tudo... está vendo?"
Lily olhou por sobre o ombro justo a tempo de ver Marina enfiar a comida na boca de forma exagerada e teatral. Naquele instante, parecia mais uma pantomima do que um gesto genuíno. Lily franziu os olhos, perguntando-se o que ela estaria tramando.
Mas então, Marina paralisou.
Seus olhos arregalaram-se de pavor. A cor drenou de seu rosto. Uma mão agarrou a própria garganta.
"Marina?" A voz de David elevou-se, pontuada de alarme.
Marina ergueu-se trôpega, ofegante.
"Não consigo... respirar..." ela engasgou, o rosto inchando rapidamente, manchas vermelhas irrompendo na pele.
"Chamem um médico!" David gritou, já se levantando da cama.
O coração de Lily desabou.
"Meu Deus..." ela sussurrou, atordoada.
Uma enfermeira irrompeu na sala com um carrinho de emergência, vociferando ordens. David colocou Marina nos braços e correu pelo corredor em direção à emergência, bradando por socorro.
Lily seguiu-os, as pernas movendo-se por instinto.
Mas, já no limiar da ala de emergência, David voltou-se para ela.
Sua expressão era de puro veneno.
"Foi você que deu aquilo a ela," ele sibilou. "Você sabia que ela é alérgica a cogumelos."
"O quê? Não... Eu não sabia!" Lily gaguejou, a garganta contraída. "Juro que não sabia!"
"Ela quase morreu!" ele disparou. Aproximou-se mais, invadindo seu espaço. "Se algo lhe acontecer... qualquer coisa... entrarei com uma queixa. Entenda isso claramente."
As palavras a atingiram como um soco no estômago.
Lily deu um passo para trás, as mãos trêmulas. "Você acha que eu a envenenei?"
Ele não respondeu. Não precisava.
A acusação, nua e crua em seus olhos, dizia tudo.
O silêncio entre eles esticou-se, tenso, até ser rompido pelo burburinho das enfermeiras e médicos entrando e saindo do quarto de Marina.
Lily prendeu a respiração. Suas mãos tremiam incontrolavelmente.
David já se virara, desaparecendo na sala de emergência com um rosto fechado pela fúria.
Ela não fizera nada.
Ela sequer sabia que Marina era alérgica a cogumelos. Não fora ela quem dissera para Marina comer aquilo.
Lily fechou os olhos e recordou a última frase de Marina antes do gesto teatral:
"Contanto que você possa me perdoar, eu como tudo isso."
Que tipo de pessoa diz algo assim?
E quem come algo sabendo que é alérgico?
A menos que...
A menos que desejasse que algo acontecesse.
Uma cena. Uma arma.
Um plano.
A ideia gelou-lhe o sangue mais que o vento noturno.
Uma coisa tornou-se cristalina.
Marina armara tudo aquilo para voltar David contra ela, e conseguira.
Lily permaneceu imóvel no corredor enquanto a porta se fechava atrás dele. Seu peito doía, mas desta vez não era pelo cansaço.
Era pela percepção crua de que, não importasse o que fizesse... ela sempre seria a vilã na narrativa de David.