Capítulo 31 – Convidada ou Isca

837 Words
O vídeo do podcast ainda circulava nas redes. O nome “Amanda Rodrigues” agora aparecia não só nos becos, mas em salas de universidades, jornais online e debates sociais. Mas enquanto o mundo lá fora queria “entender” Amanda, eu só queria sobreviver. --- Na terça-feira, recebi um convite. Um evento de “Lideranças Jovens da Periferia”, promovido por uma ONG conhecida. Um e-mail cheio de palavras bonitas: “inspiração”, “representatividade”, “transformação social”. Mas eu já aprendi que elogio demais… esconde armadilha. --- Mostrei pra Gabriel. — Eles querem me ouvir? Ou querem me expor? — Parece convite sincero. — Parece. Mas quando foi que deram palco pra mulher da favela sem querer algo em troca? --- Rosa achou que eu devia ir. — Se você ficar se escondendo, eles vão te apagar mais fácil. — Agora que te ouviram, continue falando. — Mas falar lá é entrar na toca dos lobos. Gente engravatada, gente que nunca desceu morro. — Então desce você com coroa. --- Decidi ir. Mas do meu jeito. Sem figurino. Sem personagem. Com o peso da favela no ombro e a voz firme. --- Cheguei no auditório com trancinhas novas e rosto limpo. Fui recebida com sorrisos tensos. Aquela cara de quem quer tirar foto, mas tem medo de se sujar ao encostar. O mestre de cerimônias me apresentou com pompa: > “Ela é conhecida como Rainha do Morro, mas aqui, é uma líder, uma referência, uma inspiração.” Aplausos. Mas o olhar de algumas pessoas era outro: Curioso. Crítico. Cínico. --- Quando me deram o microfone, respirei fundo. — Eu agradeço o espaço. Mas eu não vim aqui pra confirmar expectativa de ninguém. — Eu não sou símbolo de superação. — Eu sou resultado da sobrevivência forçada. A sala silenciou. — Cresci vendo gente morrer do lado e a polícia subir atirando. Cresci ouvindo que eu ia engravidar cedo ou morrer cedo. — Não morri. Mas virei o que muitos de vocês chamam de “perigosa”. Porque eu não me calei. Silêncio de novo. Olhares desviados. — Se ser liderança é isso aqui… microfone, luz e cafezinho… então tem algo errado. Porque as lideranças reais tão lá fora agora, vendendo bala no sinal, cuidando de irmão sozinho, chorando por um pai preso. --- Na saída, uma mulher engravatada me segurou. — Amanda, sua fala foi… forte. — Foi a verdade. — Mas você poderia suavizar. — Pra caber no conforto de vocês? Ela não respondeu. — Eu não vim aqui ser moldada. Eu sou o que o morro me fez. E nem a Globo vai mudar isso. --- No caminho de volta, Gabriel dirigia calado. — Você arrasou. — Você acha? — A verdade é sempre barulhenta. E você grita como ninguém. — Mas será que eles entenderam? — Não importa. O povo que importa… ouviu. --- Rosa mandou mensagem: > “Você fez a cidade tremer. E eu me tremi aqui assistindo.” Sorri sozinha. Porque por mais que o mundo tentasse me moldar… ninguém podia domar quem nasceu livre. --- Na semana seguinte, recebi outro convite. Mas dessa vez… da TV. — Eles querem você num programa ao vivo — Gabriel disse. — E o tema? — “A face feminina do poder nos morros do Brasil.” Ri. — Vão querer me pintar de anti-heroína. — E você vai aceitar? — Claro. Mas eles que se preparem. --- No ensaio da entrevista, a produtora perguntou: — Pode evitar falar de tráfico? — Não. Porque eu venho de um lugar onde o tráfico é tão presente quanto o poste da esquina. — Pode não citar nomes de ex-lideranças? — Então não cito Darlan. Mas também não vou mentir. — Evitar confronto é mais elegante. — Elegância é um luxo que o morro nunca teve. Eu trago verdade, não verniz. --- Gabriel me esperou do lado de fora do estúdio no dia da gravação. Luz. Câmera. Plateia. O apresentador sorriu falso e começou: — Hoje estamos com Amanda Rodrigues, a chamada “Rainha do Morro”. Uma figura polêmica, poderosa, e agora… nacional. — Boa noite. — Amanda, o que é o poder pra você? — Poder é quando você acorda sem saber se vai comer, mas mesmo assim protege os seus. — Você se considera perigosa? — Perigosa é a indiferença. Eu só sou sincera. — Você acha que inspira? — Não quero ser inspiração. Quero ser memória viva de que a favela pensa, sente e reage. A plateia prendeu o ar. O apresentador ficou sem reação por dois segundos. Perfeito. --- Saí do estúdio com a alma leve. Gabriel me abraçou. — Cê tá virando nome de livro, de filme… — De processo também. — Mas também tá virando espelho. — Quebrado, mas ainda reflete. --- Naquela noite, sentei na laje de novo. Olhei o céu. E pensei: se o mundo quer me assistir, que assista direito. Eu não sou novela. Sou revolução.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD