O vídeo do podcast ainda circulava nas redes.
O nome “Amanda Rodrigues” agora aparecia não só nos becos,
mas em salas de universidades, jornais online e debates sociais.
Mas enquanto o mundo lá fora queria “entender” Amanda,
eu só queria sobreviver.
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Na terça-feira, recebi um convite.
Um evento de “Lideranças Jovens da Periferia”, promovido por uma ONG conhecida.
Um e-mail cheio de palavras bonitas:
“inspiração”, “representatividade”, “transformação social”.
Mas eu já aprendi que elogio demais…
esconde armadilha.
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Mostrei pra Gabriel.
— Eles querem me ouvir? Ou querem me expor?
— Parece convite sincero.
— Parece.
Mas quando foi que deram palco pra mulher da favela sem querer algo em troca?
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Rosa achou que eu devia ir.
— Se você ficar se escondendo, eles vão te apagar mais fácil.
— Agora que te ouviram, continue falando.
— Mas falar lá é entrar na toca dos lobos.
Gente engravatada, gente que nunca desceu morro.
— Então desce você com coroa.
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Decidi ir.
Mas do meu jeito.
Sem figurino.
Sem personagem.
Com o peso da favela no ombro e a voz firme.
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Cheguei no auditório com trancinhas novas e rosto limpo.
Fui recebida com sorrisos tensos.
Aquela cara de quem quer tirar foto, mas tem medo de se sujar ao encostar.
O mestre de cerimônias me apresentou com pompa:
> “Ela é conhecida como Rainha do Morro,
mas aqui, é uma líder, uma referência, uma inspiração.”
Aplausos.
Mas o olhar de algumas pessoas era outro:
Curioso.
Crítico.
Cínico.
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Quando me deram o microfone, respirei fundo.
— Eu agradeço o espaço.
Mas eu não vim aqui pra confirmar expectativa de ninguém.
— Eu não sou símbolo de superação.
— Eu sou resultado da sobrevivência forçada.
A sala silenciou.
— Cresci vendo gente morrer do lado e a polícia subir atirando.
Cresci ouvindo que eu ia engravidar cedo ou morrer cedo.
— Não morri.
Mas virei o que muitos de vocês chamam de “perigosa”.
Porque eu não me calei.
Silêncio de novo.
Olhares desviados.
— Se ser liderança é isso aqui…
microfone, luz e cafezinho…
então tem algo errado.
Porque as lideranças reais tão lá fora agora, vendendo bala no sinal,
cuidando de irmão sozinho,
chorando por um pai preso.
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Na saída, uma mulher engravatada me segurou.
— Amanda, sua fala foi… forte.
— Foi a verdade.
— Mas você poderia suavizar.
— Pra caber no conforto de vocês?
Ela não respondeu.
— Eu não vim aqui ser moldada.
Eu sou o que o morro me fez.
E nem a Globo vai mudar isso.
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No caminho de volta, Gabriel dirigia calado.
— Você arrasou.
— Você acha?
— A verdade é sempre barulhenta.
E você grita como ninguém.
— Mas será que eles entenderam?
— Não importa.
O povo que importa… ouviu.
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Rosa mandou mensagem:
> “Você fez a cidade tremer.
E eu me tremi aqui assistindo.”
Sorri sozinha.
Porque por mais que o mundo tentasse me moldar…
ninguém podia domar quem nasceu livre.
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Na semana seguinte, recebi outro convite.
Mas dessa vez… da TV.
— Eles querem você num programa ao vivo — Gabriel disse.
— E o tema?
— “A face feminina do poder nos morros do Brasil.”
Ri.
— Vão querer me pintar de anti-heroína.
— E você vai aceitar?
— Claro.
Mas eles que se preparem.
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No ensaio da entrevista, a produtora perguntou:
— Pode evitar falar de tráfico?
— Não.
Porque eu venho de um lugar onde o tráfico é tão presente quanto o poste da esquina.
— Pode não citar nomes de ex-lideranças?
— Então não cito Darlan. Mas também não vou mentir.
— Evitar confronto é mais elegante.
— Elegância é um luxo que o morro nunca teve.
Eu trago verdade, não verniz.
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Gabriel me esperou do lado de fora do estúdio no dia da gravação.
Luz. Câmera. Plateia.
O apresentador sorriu falso e começou:
— Hoje estamos com Amanda Rodrigues, a chamada “Rainha do Morro”.
Uma figura polêmica, poderosa, e agora… nacional.
— Boa noite.
— Amanda, o que é o poder pra você?
— Poder é quando você acorda sem saber se vai comer,
mas mesmo assim protege os seus.
— Você se considera perigosa?
— Perigosa é a indiferença.
Eu só sou sincera.
— Você acha que inspira?
— Não quero ser inspiração.
Quero ser memória viva de que a favela pensa, sente e reage.
A plateia prendeu o ar.
O apresentador ficou sem reação por dois segundos.
Perfeito.
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Saí do estúdio com a alma leve.
Gabriel me abraçou.
— Cê tá virando nome de livro, de filme…
— De processo também.
— Mas também tá virando espelho.
— Quebrado, mas ainda reflete.
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Naquela noite, sentei na laje de novo.
Olhei o céu.
E pensei:
se o mundo quer me assistir, que assista direito.
Eu não sou novela.
Sou revolução.