As vozes no morro nunca param.
Mesmo quando tudo parece calmo, os becos ainda sussurram.
E naquele dia, depois de tudo o que aconteceu, eu comecei a ouvir as vozes de outro jeito.
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Desde que Gabriel me assumiu como “dele”, o clima ao meu redor mudou.
Os olhares deixaram de ser apenas curiosos…
E passaram a ser atentos.
De respeito.
De inveja.
Ou de julgamento.
— Tá preparada pra isso? — ele perguntou enquanto ajeitava o relógio, sentado à mesa.
— Pra quê?
— Ser minha mulher. Mesmo.
— Isso vem com muito mais do que beijos e proteção.
— Vem com o quê?
Ele me olhou nos olhos, sério.
— Vem com peso.
— Todo mundo vai saber quem você é.
— Vai te olhar esperando que você caia.
— Vai te testar.
— Vai te odiar só por andar ao meu lado.
— Eu não tenho medo deles.
— Então só promete que não vai desistir de mim na primeira turbulência.
— Prometo.
Ele respirou fundo. Como se isso fosse mais importante do que qualquer tiro que já levou.
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Durante os dias seguintes, Gabriel não me deixou sozinha um minuto.
E mesmo com o ombro ainda se recuperando do tiro, ele fazia questão de mostrar pra todos que tava de pé — e no controle.
Aos poucos, ele começou a me inserir no universo dele.
Mas devagar.
Passo por passo.
No primeiro dia, me mostrou o bar que “lavava” parte do dinheiro.
No segundo, o ponto de observação dos olheiros.
No terceiro, me ensinou os sinais que os meninos usavam no rádio.
— Você não precisa saber de tudo.
— Mas precisa saber sobreviver se eu não estiver por perto.
E, pela primeira vez, eu entendi o quanto ser a mulher dele me colocava no centro do perigo.
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Mas nem todo mundo gostava da ideia.
— Essa menina não é daqui — ouvi uma voz sussurrar num dos becos.
— Só chegou e já quer sentar na janela…
— O chefe tá cego de amor. Isso não vai acabar bem.
Fingi que não ouvi.
Mas doeu.
Porque eu sabia que, ali, respeito se conquista com sangue.
E eu ainda era só uma garota tentando se encaixar.
À noite, contei isso pro Gabriel.
— Eu sabia que ia rolar.
— Mas dói.
— Eu não quero que pensem que tô aqui por status.
— Amanda, você tá aqui porque é minha.
— Eles que aprendam a respeitar.
— E se não aprenderem?
Ele me puxou pro colo.
— Aí eu ensino. Um por um.
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Naquela noite, não rolou nada além de carinho.
Deitamos juntos, mas ele só me abraçou.
Ficou com a cabeça no meu colo, em silêncio.
— O que foi? — perguntei.
— Tô cansado.
— Mas quando eu tô contigo, meu corpo descansa mais rápido.
Fiquei passando a mão no cabelo dele, devagar.
— Quando você dorme aqui, eu sinto paz.
— Quando você dorme aqui, eu durmo com as armas guardadas.
Nos olhamos.
E naquele olhar silencioso, eu vi o quanto ele confiava em mim.
E o quanto isso, naquele mundo, era raro.
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No dia seguinte, acordei antes dele.
Olhei ele dormindo, respirando pesado, com o rosto mais tranquilo do que de costume.
Pela primeira vez, ele não parecia o homem que mete medo no morro.
Parecia só um menino que cresceu demais, rápido demais.
A camisa dele tava jogada no chão.
Peguei e vesti, me sentindo protegida.
Saí da casa em silêncio, só pra tomar um pouco de ar.
Mas fui surpreendida logo na esquina.
— Você é a Amanda, né?
Era uma mulher. Moreno clara, cabelos lisos presos num coque alto.
Deve ter uns trinta e poucos anos. Olhar afiado.
— Sou, sim.
— Eu sou a Vanessa. Mãe do filho do Gabriel.
Meu coração travou.
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Ela cruzou os braços e me encarou.
Tinha uma firmeza ali que me deixou desconfortável.
— A gente nunca teve nada sério, se é isso que tá pensando.
— Mas eu conheço ele bem.
— Por que tá me dizendo isso?
— Porque eu já vi esse filme.
— Você acha que tá segura. Mas com o Gabriel, ninguém nunca tá.
— Eu não tenho medo dele.
— Não precisa ter dele. Precisa ter do mundo que gira em torno dele.
— E se você fraquejar… ele não vai parar o mundo pra te proteger.
Ela me olhou por mais um segundo e foi embora.
Fiquei parada, engolindo aquela conversa.
Mas não consegui tirar a frase da cabeça:
> "Precisa ter medo do mundo que gira em torno dele."
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Quando voltei, Gabriel já estava de pé.
Mexia no celular com cara fechada.
— Onde você foi?
— Só tomar um ar.
— Sozinha?
— Sim.
— Amanda, eu te deixei dois minutos e você desaparece?
— Calma. Não aconteceu nada.
Ele se aproximou e pegou meu queixo com firmeza.
— Você pode não ter medo.
— Mas eu tenho.
— Porque perder você agora… seria o meu fim.
— Gabriel… eu encontrei com a Vanessa.
Ele ficou tenso. Soltou meu rosto.
— O que ela te disse?
— Que você tem um filho. E que ela já viu esse filme.
— E o que você achou disso?
— Que talvez eu precise entender mais do seu passado pra ficar no seu presente.
Ele suspirou e se sentou.
— Eu não n**o nada. Tenho filho sim. Mas nunca fui pai.
— Porque o meu mundo nunca foi limpo o bastante pra criar alguém.
— E comigo? Você conseguiria?
Ele me olhou, sério.
— Se fosse com você… eu parava tudo.
— E construía um mundo novo.
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Ficamos em silêncio depois disso.
Mas era um silêncio diferente.
Carregado de promessas.
De possibilidades.
E de medo.
Porque o futuro ainda era um campo minado.
Mas, mesmo assim…
eu tava disposta a caminhar com ele.
Mesmo que fosse com o coração na mão.