O desaparecimento da Cíntia virou assunto no morro.
Uns diziam que ela foi embora com um ex.
Outros que sumiu por medo.
Mas ninguém ousava falar a verdade em voz alta.
Porque todo mundo sabia quem mandava agora.
E quem dormia do lado do poder.
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Gabriel se manteve mais calado nos dias seguintes.
Calculista. Presente, mas distante.
Era como se ele estivesse preparando algo grande.
E estava.
— Vou reunir todos os chefes na sexta — ele disse.
— Reunião grande?
— A maior dos últimos tempos.
— Essa guerra com a Bruna não é mais só ameaça.
— É divisão.
— E você vai reunir pra quê?
— Pra avisar que quem ficar do lado dela… vai cair com ela.
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Eu fiquei tensa.
Sabia que aquilo podia virar uma guerra aberta.
Mas também sabia que Gabriel não fazia ameaças em vão.
— Posso ir com você?
— Não.
— Nessa, não.
— Vai ser feia.
— E eu preciso manter você viva.
— Eu já tô dentro disso, Gabriel. Já provei que aguento.
— E é por isso que eu quero te proteger ainda mais.
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Quinta-feira à noite, ele passou horas na laje.
Fumava em silêncio, sem música, sem rádio.
Só ele e os próprios pensamentos.
Fui até lá.
— Você tem certeza do que vai fazer?
— Tenho.
— Amanhã eu escolho quem fica vivo.
— E se eles escolherem o lado errado?
— A maioria só quer sobreviver.
— Vão seguir quem parece mais forte.
— E você é esse cara?
— Eu sou o único que pode ser.
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Na sexta, acordei sozinha.
Gabriel já tinha saído. A reunião ia acontecer longe, em local neutro.
Passei o dia em alerta.
Comida no fogão, rádio ligado, dois seguranças na porta.
Mas o tempo parecia arrastar.
Como se o mundo estivesse prendendo a respiração… esperando a bomba.
E ela caiu.
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Por volta das 17h, Nando chegou.
Suado. Sangue seco na camisa.
— O que aconteceu?
— A reunião foi um sucesso.
— Mas esse sangue…?
— Um dos chefes tentou puxar arma pro Gabriel.
— E…?
— Morreu antes de levantar o braço.
Senti um arrepio.
— E os outros?
— Ficaram. Todos.
— E a Bruna?
— Vai se esconder mais ainda agora.
— Porque o morro escolheu um lado.
— O dele.
— O seu.
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Quando Gabriel voltou, eu vi nos olhos dele:
O peso do que é vencer.
Porque vencer no morro… nunca vem sem custo.
— Tô sujo, né? — ele disse.
— Tá.
— Mas venceu.
— Por enquanto.
— Mas agora… não tem mais volta.
— Nunca teve.
Ele se aproximou, me segurou pela cintura e encostou a testa na minha.
— Você tem noção de que agora, se te tocarem, o morro vira?
— Tenho.
— E isso te assusta?
— Me dá medo. Mas também me dá força.
— Eu te amo, Amanda.
— E eu mataria mil vezes por você.
— Eu sei.
— E é isso que me assusta… e me prende.
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Naquela noite, dormimos colados.
Sem fala.
Sem promessas.
Só pele, calor e respiração.
Porque quando tudo ao redor é guerra, o silêncio se torna abrigo.
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No dia seguinte, recebi um presente.
Uma caixa de veludo, deixada na varanda.
Dentro, uma corrente grossa, com uma placa escrita:
> “Rainha do Norte.
Amanda do Morro.”
— Foi você que mandou fazer isso? — perguntei.
Gabriel sorriu.
— Não.
— Foram os meninos da contenção.
— Por quê?
— Porque agora eles falam seu nome com respeito.
— E quem te chamar baixo… vai aprender alto.
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Mas com o respeito… vinha o peso.
Fui até a vendinha da Zuleide. Ela me olhou diferente.
— Agora ninguém mexe com você, né?
— Nem deve.
— Mas toma cuidado, minha filha.
— Quando o povo para de te odiar… às vezes é porque começou a te temer.
— E temer é pior?
— É mais perigoso.
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Voltei pra casa com isso na cabeça.
Eu queria respeito.
Conquistei.
Mas será que estava me tornando tão fria quanto o mundo ao meu redor?
Perguntei isso pro Gabriel naquela noite.
— Eu tô ficando igual a você?
— Igual? Não.
— Você ainda tem coração.
— Mas eu…
— Tá aprendendo a usar ele como arma.
— E isso não é r**m.
— É necessário.
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Eu já não era a menina assustada que chegou ali.
Agora, os olhos me reconheciam.
Os becos se abriam.
E os sorrisos… vinham com cuidado.
Porque meu nome já não era só o que me deram ao nascer.
Era o nome da guerra.
Era o nome da mulher do chefe.
Era o nome da Amanda do Morro.
E ninguém mais ousava esquecer.