O morro me chamava de Amanda.
A cidade… de símbolo.
A mídia… de fenômeno.
Mas só eu sabia como era carregar tudo isso no corpo.
Sozinha.
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Na manhã de sábado, acordei com um áudio no grupo da quadra:
> — “E aí, rainha, vai aparecer quando?”
— “Tá ficando famosinha e esquecendo quem levantou ela…”
— “Aqui na favela tem criança sem aula e ambulância não sobe mais…”
Era cobrança.
Direta.
Dura.
Doída.
Gabriel ouviu junto comigo.
— Cê sabia que isso ia acontecer.
— Sabia.
Mas não sabia que ia doer tanto.
— Você virou o nome que carrega todo mundo…
E todo mundo acha que tem direito de te puxar de volta.
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Fui direto pra quadra.
Sem avisar.
Sem maquiagem.
Com o cabelo preso num coque improvisado e o coração apertado.
Quando cheguei, os olhares caíram em mim como pedrada.
Uns com mágoa.
Outros com decepção.
Poucos com orgulho.
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Rosa foi a primeira a falar:
— Você sumiu.
— Tava resolvendo coisa grande.
— E a gente aqui com problema pequeno virando avalanche.
Respirei fundo.
— Eu achei que tava levando o nome do morro comigo.
— Mas deixou a alma dele aqui.
Sozinha.
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Nando falou:
— A energia do centro comunitário foi cortada de novo.
— A gente vai resolver.
— Vai?
— Sim.
— E o cursinho?
E a farmácia da tia Lu?
E a biblioteca que tá caindo aos pedaços?
— Eu…
— Você subiu, Amanda.
Mas esqueceu de deixar rastro pros que vêm atrás.
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As palavras cortavam.
Porque eram verdade.
Porque eu tinha corrido tanto pra abrir espaço na cidade,
que deixei a favela sem tampa.
E agora ela fervia.
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— Eu sei que errei. — falei.
— E se vocês acham que eu esqueci de onde vim…
vocês têm razão.
Silêncio.
— Mas não foi por desprezo.
Foi por cansaço.
Foi por guerra.
Foi por medo de ser engolida lá fora.
— E a gente aqui sendo engolido todo dia — disse Rosa.
— Eu sei.
Mas eu voltei.
— E vai ficar?
— Até consertar o que rompi.
E construir o que prometi.
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Naquela noite, liguei pra cada projeto que ajudei a levantar.
Organizei planilha.
Fiz contato com as ONGs sérias.
Falei com doadores antigos.
E postei no meu perfil:
> “A cidade me aplaude.
Mas foi o morro que me fez.
Eu volto,
não como estrela,
mas como alicerce.”
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Nos dias seguintes, subi e desci o morro mais de vinte vezes.
Caderno na mão.
Caneta na orelha.
Escutando, anotando, resolvendo.
Comi marmita no beco.
Dividi pão com a Dona Anésia.
Levei gás pra tia Fátima.
E mais importante:
sentei no chão com as crianças e ouvi.
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Uma delas me perguntou:
— Cê tá famosa agora, né?
— Tô tentando.
— Vai sair da favela?
— Não posso.
— Por quê?
— Porque a favela é minha raiz.
E árvore que abandona a raiz…
cai na primeira ventania.
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Gabriel me abraçou na volta pra casa.
— Nunca vi você tão cansada.
— Mas também nunca me senti tão viva.
— E agora?
— Agora eu escrevo um novo capítulo.
Um que mostre que dá pra subir…
sem esquecer quem te empurrou.
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O vídeo de tudo que fiz na semana foi postado.
Nada de edição.
Nada de glamour.
Só a favela crua.
A Amanda real.
Com barro no pé e cicatriz no peito.
> “Rainha de verdade volta pro trono.
Mas limpa ele antes de sentar.”
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A resposta veio rápido.
— A biblioteca recebeu doação.
— O cursinho voltou com luz.
— A farmácia ganhou remédio novo.
E mais importante:
os olhos que me viam com raiva…
agora me viam com respeito.
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Gabriel deitou do meu lado e falou baixo:
— Tá pronta pra próxima guerra?
— Desde que seja por eles,
eu nunca deixei de estar.
— E se a próxima guerra for contra o sistema todo?
— Então eles que se preparem.
Porque quem aprende a reinar no morro…
não teme o trono de lugar nenhum.