Capítulo 32 – O Peso de Ser Nome

688 Words
O morro me chamava de Amanda. A cidade… de símbolo. A mídia… de fenômeno. Mas só eu sabia como era carregar tudo isso no corpo. Sozinha. --- Na manhã de sábado, acordei com um áudio no grupo da quadra: > — “E aí, rainha, vai aparecer quando?” — “Tá ficando famosinha e esquecendo quem levantou ela…” — “Aqui na favela tem criança sem aula e ambulância não sobe mais…” Era cobrança. Direta. Dura. Doída. Gabriel ouviu junto comigo. — Cê sabia que isso ia acontecer. — Sabia. Mas não sabia que ia doer tanto. — Você virou o nome que carrega todo mundo… E todo mundo acha que tem direito de te puxar de volta. --- Fui direto pra quadra. Sem avisar. Sem maquiagem. Com o cabelo preso num coque improvisado e o coração apertado. Quando cheguei, os olhares caíram em mim como pedrada. Uns com mágoa. Outros com decepção. Poucos com orgulho. --- Rosa foi a primeira a falar: — Você sumiu. — Tava resolvendo coisa grande. — E a gente aqui com problema pequeno virando avalanche. Respirei fundo. — Eu achei que tava levando o nome do morro comigo. — Mas deixou a alma dele aqui. Sozinha. --- Nando falou: — A energia do centro comunitário foi cortada de novo. — A gente vai resolver. — Vai? — Sim. — E o cursinho? E a farmácia da tia Lu? E a biblioteca que tá caindo aos pedaços? — Eu… — Você subiu, Amanda. Mas esqueceu de deixar rastro pros que vêm atrás. --- As palavras cortavam. Porque eram verdade. Porque eu tinha corrido tanto pra abrir espaço na cidade, que deixei a favela sem tampa. E agora ela fervia. --- — Eu sei que errei. — falei. — E se vocês acham que eu esqueci de onde vim… vocês têm razão. Silêncio. — Mas não foi por desprezo. Foi por cansaço. Foi por guerra. Foi por medo de ser engolida lá fora. — E a gente aqui sendo engolido todo dia — disse Rosa. — Eu sei. Mas eu voltei. — E vai ficar? — Até consertar o que rompi. E construir o que prometi. --- Naquela noite, liguei pra cada projeto que ajudei a levantar. Organizei planilha. Fiz contato com as ONGs sérias. Falei com doadores antigos. E postei no meu perfil: > “A cidade me aplaude. Mas foi o morro que me fez. Eu volto, não como estrela, mas como alicerce.” --- Nos dias seguintes, subi e desci o morro mais de vinte vezes. Caderno na mão. Caneta na orelha. Escutando, anotando, resolvendo. Comi marmita no beco. Dividi pão com a Dona Anésia. Levei gás pra tia Fátima. E mais importante: sentei no chão com as crianças e ouvi. --- Uma delas me perguntou: — Cê tá famosa agora, né? — Tô tentando. — Vai sair da favela? — Não posso. — Por quê? — Porque a favela é minha raiz. E árvore que abandona a raiz… cai na primeira ventania. --- Gabriel me abraçou na volta pra casa. — Nunca vi você tão cansada. — Mas também nunca me senti tão viva. — E agora? — Agora eu escrevo um novo capítulo. Um que mostre que dá pra subir… sem esquecer quem te empurrou. --- O vídeo de tudo que fiz na semana foi postado. Nada de edição. Nada de glamour. Só a favela crua. A Amanda real. Com barro no pé e cicatriz no peito. > “Rainha de verdade volta pro trono. Mas limpa ele antes de sentar.” --- A resposta veio rápido. — A biblioteca recebeu doação. — O cursinho voltou com luz. — A farmácia ganhou remédio novo. E mais importante: os olhos que me viam com raiva… agora me viam com respeito. --- Gabriel deitou do meu lado e falou baixo: — Tá pronta pra próxima guerra? — Desde que seja por eles, eu nunca deixei de estar. — E se a próxima guerra for contra o sistema todo? — Então eles que se preparem. Porque quem aprende a reinar no morro… não teme o trono de lugar nenhum.
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