Capítulo 2AMORZINHO

1506 Words
Capítulo 2 UMA SEMANA SE PASSOU. DEPOIS MAIS UMA. Os dias avançavam como um réptil descuidado, que se arrisca ao cruzar uma rodovia movimentada numa tarde de verão, sem pressa e sem se dar conta dos perigos que corre. Na terceira semana após a morte do velho Agenor, numa manhã sem graça de quinta-feira, mãe e filho foram surpreendidos pela visita de uma garota que também se dizia esposa do falecido. A moça levou menos de cinco minutos para desenrolar a sua história triste e explicar, de uma maneira bem convincente, que tivera um envolvimento amoroso com Agenor. É, eles se amavam. A viúva oficial duvidava disso, mas não pôde evitar ficar boquiaberta com a trama, e quando seus olhos procuraram o olhar do filho, o garoto podia jurar ter visto no rosto da mãe o d****o de que o tinhoso estivesse sorridente e de braços abertos quando seu pai chegasse ao inferno. oficialtinhosoFicaram observando aquela figura estranhamente sedutora estacionada na porta da casa. A garota falava do falecido com tanto entusiasmo, que mãe e filho duvidavam de que estivessem falando da mesma pessoa. Não, aquele não era o Agenor que eles conheciam. De qualquer forma, agora o garoto já não prestava mais atenção no que a moça dizia. Seus olhos acompanhavam os movimentos dos s***s da moça enquanto ela gesticulava. Aquilo sim era realmente incrível. Quando a mãe percebeu aonde tinha ido parar a concentração do filho, torceu ainda mais a cara para a visitante. — Isso não é justo — a garota disse. Afinal, do que ela estava falando, pensou a mãe, no exato momento em que Anderson, o vizinho da casa da frente, dava marcha a ré em seu Citroën C3, como faz todas as manhãs antes de sair para o trabalho. Os chinelos de dedo e a calça de moletom — com os fundilhos lá em baixo — só não eram piores que a camiseta toda amarrotada e com a gola deformada. Claro que ninguém precisa estar na moda ao acordar de manhã, mas aquilo era deprimente. Do jeito que o sujeito acordava, saía para tirar o carro da garagem. Afinal, do que ela estava falando,O vizinho olhou na direção em que os três conversavam e sinalizou com um breve aceno de cabeça. Ninguém retribuiu. A viúva estava mais interessada em saber o que aquela garota — que devia ter menos da metade da idade do falecido — tinha a dizer sobre o velho Agenor. Calculou que a moça devia ter no máximo uns vinte anos, e isso lhe parecia absurdo. O vizinho manobrou o carro com um cuidado exagerado. Foi para frente e para trás, como quem embala uma criança de colo, até finalmente alinhar o veículo ao meio-fio. Desceu e — com sua calça de moletom — foi para frente do carro, avaliar se tinha feito um bom trabalho. — Três anos — a garota disse —, já faz três anos que a gente tá junto. E continuou discorrendo sobre como a coisa toda tinha acontecido, como se conheceram, como ele era um homem maravilhoso, como se amavam, como o amor era lindo e tal. coisaTrês anos juntos — a mãe repetiu. As três palavras soaram tão baixas, que ficou claro que ela falava mais para si mesma do que para os presentes; e de algum modo ela sempre soube que isso aconteceria. Só não imaginava que fosse conhecer a figura. E de onde aquela moça era mesmo?... Não se lembrava de ter feito essa pergunta. Do Conjunto Libra ela não era. Se fosse, já teriam se cruzado na padaria ou no supermercado. Talvez ela fosse lá das bandas da Vila Borges, ou quem sabe do Jardim São Rafael I, mas com certeza não era do Libra. Não seria muito inteligente — da parte do velho — arranjar uma amante do mesmo bairro. figuraE de onde aquela moça era mesmo?— Muito bem, moça — a viúva disse. E imediatamente percebeu que nem ela mesma sabia o que queria dizer com aquela frase. “Muito bem” significava o quê, afinal? O vizinho se convenceu de que foi um aluno dedicado nas aulas práticas de direção da autoescola e voltou orgulhoso para dentro do quintal. Sem se virar, acionou o alarme do carro e o controle remoto do portão, que começou a fechar lentamente. Se havia uma coisa que não se podia negar era que, além de bonita, a garota tinha personalidade. Despejou sua bomba atômica na cara da mulher, sem rodeios. E o que a viúva podia fazer?... Espancá-la?... Acontece que isso não mudaria nada. O garoto continuava admirando a exuberância da moça. Esforçava-se para recusar qualquer pensamento que o acusasse de ser um filho desnaturado, um traidor de uma figa. Fazer o quê? A namorada do pai era uma gostosa. Essa era a sua opinião, e ele não podia fazer nada a esse respeito, embora concordasse que a mãe não merecia nem a s*******m do marido nem a admiração pornográfica que o filho começava a nutrir pela amante do velho. exuberânciaFazer o quê? AgostosaO portão eletrônico do vizinho foi acionado novamente, e dessa vez ele apareceu vestindo um terno preto e uma gravata cor de vinho — parecia até outra pessoa. Entrou no carro, deu a partida e se mandou. A cena, embora rápida, fez a viúva se lembrar do episódio envolvendo um vendedor de consórcio que batera à sua porta dois meses antes. O sujeito levou quase meia hora tentando explicar que taxa de manutenção não tinha nada a ver com taxa de juros. Ela, sinceramente, não via nenhuma diferença, mas interpretou bem o papel de quem se deixou convencer. vinhoSem nenhum constrangimento a garota não hesitou em exaltar o seu amor pelo velho e disse bem alto — para quem quisesse ouvir — que o Agenor era o homem da sua vida. Afinal eles estavam juntos, não estavam? Então era natural que ela se sentisse confortável e no direito de reclamar parte dos bens deixados pelo falecido. Só tinha um problema: toda a fortuna deixada para mãe e filho se resumia basicamente àquela casa simples na rua Piquiri, no Conjunto Lira — onde moravam — e a um Ford Belina 1991, que (embora tivesse sido todo reformado e o velho Agenor o considerasse uma relíquia) não servia para nada. fortunaEla seguiu falando de dentro de sua blusinha preta com detalhes góticos. Sua pele branca contrastava com o batom vermelho-sangue, que fazia seus lábios parecerem duas fatias de uma maçã do amor. Uma maquiagem escura contornava seus olhos azuis, e seu corpo se ajustava perfeitamente bem a uma calça legging com estampa imitando pele de onça — dessas que grudam no corpo como doença contagiosa. vermelho-sanguemaçã do amorlegging― Não me chame de moça ― ela disse num tom levemente hostil, enquanto mascava algo que só podia ser um chiclete, produzindo um som irritante —, meu nome é Andreia. Mãe e filho se entreolharam. O garoto não tinha certeza, mas acreditava que se a mãe tivesse uma oportunidade, consideraria a possibilidade de torcer o pescoço da moça. A essa altura, outros vizinhos também começavam a sair de suas casas, manobravam seus carros e partiam para mais um dia de luta. O sol ganhava espaço no céu e o ar fresco da manhã logo se transformaria em mormaço. luta― Tudo bem, Andreia — a viúva se aproximava da garota enquanto falava. — É melhor a gente encerrar essa conversa; e se eu fosse você não apareceria mais por aqui, acho que me entendeu, né? — ela finalizou a frase num tom bem diferente do que começou. Inicialmente Andreia pensou em relutar, e chegou mesmo a abrir a boca para retrucar, mas desistiu quando percebeu que levar uma surra não era uma possibilidade tão remota assim. Chegava a ser comovente a maneira como a moça sustentava seu amor pelo falecido. Mas o garoto duvidava que ela o conhecesse a fundo. Não, aquele a quem ela entregara seu coração, nada tinha a ver com o Agenor que ele e a mãe conheciam. — A gente se amava, sabia? — ela insistiu, como se quisesse convencer a todos ali, inclusive a si mesma. — Puxa vida, não me diga! — a viúva respondeu, chacoalhando a cabeça de maneira exagerada. Seu tom debochado surpreendeu até o próprio filho, que sempre acreditou ser a submissão a melhor amiga da mãe. A garota pareceu entender o recado e recuou alguns passos. Só que, por alguma razão, antes de ir embora acreditou que seria uma boa ideia lançar uma última provocação. — Aí... só pra você saber — ela disse, encarando a viúva —, ele sempre me chamou de amorzinho. amorzinhoA viúva sustentou aquele olhar debochado, mas não se deu ao trabalho de responder ao insulto. Não precisava. A expressão em seu rosto deixava claro de que se não fosse pela presença do filho, um “f**a-SE” encerraria a questão.
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