O despertador do meu celular toca com aquele chiado irritante que parece vir de dentro da cabeça, não da tela. Ainda é escuro, cinco e pouco da manhã e o barulho do morro já começa a nascer junto comigo. O som das motos subindo, o funk baixo vindo de alguma casa que não dormiu, e o grito de alguém chamando o filho pra escola lá do outro lado.
Me viro devagar, tentando não acordar o Ítalo. Ele dorme espalhado no colchão fino, a boquinha entreaberta, o cabelo em caracóis grudado na testa suada. Aquele sono pesado de criança que não tem culpa de nada. Fico olhando por uns segundos, com o peito apertando do jeito que sempre aperta. Ele é bonito demais pra esse lugar. Pra essa vida.
Levanto, lavo o rosto com a água gelada que desce da torneira torta, amarro o cabelo e visto a calça jeans que já perdeu a cor. A camisa da escola tem um furo pequeno na barra, mas ainda serve. Pego a mochila dele, a minha, e o resto do dinheiro que sobrou do último bico que fiz, m*l dá pra um pão e um suco.
— Vamo, meu amor — sussurro, cutucando ele com cuidado.
— Tá cedo, mãe... — ele resmunga, enfiando o rosto no travesseiro.
— Eu sei. Mas se a gente se atrasar, a creche fecha o portão.
Ele levanta com aquele humor azedo de criança sonolenta e me olha como se eu fosse o problema do mundo. Rio baixinho, tentando fingir que tá tudo bem. A gente sai de casa com o sol ainda nascendo, e o ar fresco carrega cheiro de fumaça, pão e barro molhado.
A rua é um ziguezague de casas coladas, roupa pendurada, cachorro latindo e gente com pressa. A mulher do bar me dá um bom dia sem levantar o rosto do copo de café, o rapaz do depósito já tá descarregando cerveja. Cada um na sua correria.
Deixo o Ítalo na creche. Ele entra correndo, já gritando o nome de um amiguinho. Fica fácil quando ele sorri, mas o vazio que sobra depois que fecho o portão é o que me quebra.
Pego o caminho pra escola. É uma caminhada longa, com o sol esquentando rápido demais e o estômago vazio fazendo barulho. A mochila pesa, o corpo reclama, mas é o que me resta: estudar, tentar, insistir.
(…)
Na hora do intervalo na escola, o cheiro da comida invade o corredor. Aquele feijão com arroz que parece luxo, e a maçã que vem de sobremesa. Eu como devagar, saboreando mais o descanso do que o gosto. A maçã é vermelha, lisa, bonita demais. Mas eu não poderia comer sabendo que meu filho ama maça, e não tem nada em casa pra comer. Enrolo num guardanapo e guardo na bolsa.
— Vai guardar pra quê, Manu? — pergunta a Amanda, minha colega, rindo.
— Pro Ítalo. Ele gosta. — dou um sorriso rápido, mas não explico que é porque às vezes ele dorme sem jantar.
O resto da manhã passa arrastado. As palavras do professor entram e saem como vento, e tudo que eu penso é no que falta em casa: gás, leite, sabão, tempo. Às vezes me pergunto como eu aguentei tanto. Como ainda aguento.
Saí de casa aos treze, fugindo da minha mãe que achava que grito era conversa. Achei que a rua fosse liberdade. Mas liberdade virou medo rápido, e medo virou sobrevivência. O cara que me ajudou a "sair de casa" foi o mesmo que me fez voltar pra dentro de um cativeiro sem parede. O pai do Ítalo.
Tinha vinte e poucos, era do movimento. Bonito, envolvente, e cheio de promessa vazia. E eu... eu só queria ser vista. Quando percebi, já tava grávida, morando num barraco emprestado e rezando pra polícia não subir. Ele morreu quando o menino ainda mamava, e eu fiquei com um bebê e nenhuma moeda no bolso.
Agora vivo entre b***s: às vezes faxina, às vezes unha. O dinheiro é curto, mas é limpo. Ou pelo menos tento que seja.
Quando o sinal da escola toca, pego minhas coisas e subo o morro de volta pra creche. O sol já tá caindo, dourando o mar lá embaixo. O Vidigal é bonito nessa hora, parece até que o mundo tem perdão.
Ítalo corre até mim, pulando no meu colo.
— Mãe! Hoje teve bolo! — ele grita, e eu rio, apertando ele forte.
— Que sorte a tua, hein? — beijo a testa suada e ajeito a mochila dele nas costas.
A gente segue pra casa da mulher do chefe. Ela mora numa parte boa, já quase no asfalto. Um apartamento bonito, com cheiro de perfume caro e chão que brilha. Ela me recebe com um sorriso de quem sabe o poder que tem.
— Faz as unhas caprichadas hoje, viu, Manu? Meu marido vai levar uns convidados lá em casa amanhã.
— Pode deixar, dona Patrícia.
Ela fala do marido, do carro novo, da bolsa importada. Eu só escuto e aceno. Penso no gás acabando, na luz que pode cortar se eu atrasar de novo. E na maçã que ainda tá dentro da bolsa, esperando o Ítalo.
Enquanto passo o esmalte vermelho nas unhas dela, sinto o peso do mundo em silêncio. Todo mundo tem um preço, ela diz, e eu penso se é verdade.
O meu, talvez, seja a paz.
Mas ninguém paga por isso aqui no morro.