Luna narrando (Maya)
Eu não entendi nada quando aquela menina se aproximou da nossa mesa e, sem cerimônia, puxou uma cadeira e sentou. Era a mesma que estava com o Cobra mais cedo, na hora em que ele me liberou na barricada.
Agora ela tava ali, na minha frente, com a cara de quem não pedia licença pra nada, cheia de liberdade, falando com a minha prima como se fossem melhores amigas de infância.
Rayane a cumprimentou com um sorriso meio contido, mas ainda assim amigável. E eu? Fiquei dura. Fingindo uma calma que não existia. Segurei firme o copo de refrigerante e não dei um passo pra me apresentar. Porque uma coisa eu já tinha deixado bem clara pra mim mesma desde o momento em que botei os pés no Turano: a Luna morreu. A partir de agora, eu sou a Maya.
E a minha prima já sabia. Já tínhamos conversado sobre isso. Pedi, quase implorei, pra que ela não me chamasse pelo nome de batismo de jeito nenhum. Nada de escorregar. Nada de vacilar. Eu tô escondida. Fugitiva. E qualquer erro mínimo pode colocar tudo a perder. Eu preciso de tempo. Eu preciso de estratégia. Eu preciso sair daqui limpa, com a minha inocência provada, e não carregada por um camburão ou morta num beco qualquer.
A Amanda se ajeitou na cadeira, cruzou as pernas bronzeadas e me lançou um olhar que me atravessou. Me analisava. Era óbvio. Me olhava de cima a baixo com um ar curioso, desconfiado, talvez até intrigado. E do jeito que eu tô, desconfiada de tudo e de todos, isso só me deixou mais em alerta.
— E vocês são o quê? Primas de sangue mesmo? — ela perguntou, olhando diretamente pra mim, como quem quer cutucar e medir até o tom da resposta.
Eu a encarei de volta, sustentando o olhar, sem desviar.
— Sim. Somos primas de sangue. — falei com firmeza, sem desviar os olhos dos dela.
Vi quando os lábios dela arquearam num meio sorriso. Não sei se de aprovação ou de deboche. Mas ficou claro que ela tava me estudando.
— Prima… ela é irmã do Cobra — a Rayane falou, inclinando um pouco o corpo na minha direção, como quem explica algo importante. — Aquele que te liberou na favela. O dono daqui.
Assenti com um leve movimento de cabeça, mas por dentro senti um estranho alívio. Eu sei que é absurdo, mas… por um instante, achei que ela fosse mulher dele. Não que eu queira alguma coisa com ele, até porque a minha cabeça tá uma confusão completa, um redemoinho sem fim. Mas eu sei como funciona esse tipo de ambiente. Mulher tem faro pra mulher. E quando a outra chega encarando, se impondo, puxando cadeira sem pedir licença… o instinto acende o alerta. E o último problema que eu preciso agora é arrumar rolo com mulher de dono de morro.
Mas sendo irmã… é outra coisa.
Apesar disso, a minha desconfiança não diminuiu. Eu não tenho paz. Eu não tenho sossego. Desde o dia em que acordei com meu rosto estampado em noticiário como uma criminosa, eu não consigo relaxar. Não durmo em paz, não respiro fundo sem sentir o peso no peito. Qualquer olhar já me parece ameaça. Qualquer pessoa se aproxima e meu corpo inteiro reage.
O samba tocava alto, alegre, lá no fundo. Batucada firme, pagode bom, cheiro de churrasco e cerveja no ar. As mesas estavam lotadas. Gente rindo, gente dançando, gente se agarrando nos cantos. O morro inteiro parecia vibrar com aquele pagode. Mas mesmo com a música, com o movimento, com a fumaça de carne assada e o calor humano típico desse tipo de rolê, o olhar do Cobra ali na frente parecia congelar tudo ao redor.
Ele estava sentado numa mesa grande, rodeado de gente, e principalmente cheio de p**a ao redor dele. Ele, por sua vez, tinha o corpo levemente inclinado pra trás, a mão no copo, o fuzil encostado ao lado da cadeira como se fosse um adereço qualquer. O boné ainda abaixado, os olhos meio escondidos, mas não o suficiente pra eu não perceber que ele me olhava.
Ele me olhava.
E não era como quem olha alguém qualquer. Era como quem quer descobrir. Como quem já viu alguma coisa e quer ver mais.
Foi nesse clima estranho que a Amanda virou o celular na direção da minha prima, bufando alto:
— Amiga, olha só… de novo o Matheus me ligando.
Rayane rolou os olhos, pegou o celular das mãos da Amanda, analisou a tela e soltou um suspiro pesado.
— Quem é esse Matheus? — perguntei sem nem pensar, apertando os dedos no copo. Já em estado de alerta.
— Ai, amiga… — ela virou pra mim com um olhar cansado — é o braço direito do Cobra. Eu tô ficando com ele tem alguns meses, mas a gente se estranhou no fim de semana, eu bloqueei ele, ele saiu da favela numa missão aí é como não consegue acesso direto a mim, resolveu infernizar a Amanda.
Ela nem terminou de falar direito e já se levantou, dizendo que ia resolver isso agora. Me deixou ali. Sozinha. Frente a frente com a irmã do homem mais perigoso daquele lugar.
Eu sorri sem graça. Ela também. Mas o clima entre nós era seco.
— Então vocês parecem se dar bem né ? — a tal Amanda puxa assunto e eu respiro fundo concordando
— sim, nos damos muito bem, aquele tipo de prima que parece irmã, sabe ?— eu tento parecer leve e reparo nas tatuagens dela — linda suas tatuagens — eu comento e ela me mostra uma
— essa aqui eu preciso cobrir, acredita que eu fiz a burrada de fazer a inicial de um ficante meu quando estava bebada ? — ela comenta rindo e parecendo mais leve — cobra quase arrancou na faca — ela fala e eu n**o dando risada também e vejo a Rayane lá fora alterada no telefone — eu aposto 10 que da casamento — ela fala e eu n**o
— eu não aposto nada, tô dura — eu falo rindo com ela tentando me esquecer um pouco da merda que é a minha vida — inclusive, tu conhece algum Studio pelo morro ? Quero trabalhar e vai que arrumo um emprego no Studio de tatuagem e aí eu cubro essa burrice aí — eu comento com ela que abre a boca chocada
— mentira que tu faz tatuagem ?— ela pergunta toda boba
— a maioria das tatuagens da Rayane fui eu que fiz — eu comento e começamos a bater papo até que eu sinto uma mão no meu ombro e logo ele ocupa o lugar que antes era da Rayane
— e aí boa hora pra tu me falar de onde veio, o que faz, e o que veio fazer na minha favela, ne ?— o cobra fala seco e toma um gole da sua cerveja me encarando bolado e eu travo na mesma hora e meu sorriso murcha instantaneamente