Capítulo 01
Cobra narrando
Tem dores que não cicatrizam. Não importa o quanto o tempo passe, quantas garrafas de uísque você vire, quantas noites você enterre a cara no travesseiro fingindo que o mundo já não te atinge mais. Tem dores que se instalam como tatuagem feita com faca, gravadas na carne, latejando como ferida aberta, pulsando toda vez que a memória resolve te torturar. A pior noite da minha vida não chegou como nas cenas de filme. Não teve explosão, não teve grito. Foi silenciosa. c***l. Covarde. E devastadora. Ela chegou como um sussurro frio dentro do meu lar, atravessando a porta da minha casa com uma calma maldita que destrói mais do que qualquer tempestade.
Amanda estava comigo naquele dia. Minha irmã. A única que me sobrou de sangue. Estava sentada no sofá da sala, esperando a Larissa chegar com a Manu, como fazia de vez em quando só pra passar um tempo com a minha filha. Eu estava na cozinha, terminando de bolar um baseado, tentando relaxar depois de um dia cheio na favela, quando o meu celular tocou. Ela atendeu sem cerimônia, achando que era a Lari avisando que já estava vindo. Mas bastou três segundos de ligação pra alma dela sumir do rosto.
— É a… é a Lari… Cristian… é a Lari com a Manu…
A voz da Amanda tremeu, falhou, se perdeu. Eu senti o corpo dela estremecer antes mesmo das palavras completarem a frase. Meus dedos congelaram, o baseado escorregou das minhas mãos, caindo sobre a pia. Um silêncio ensurdecedor tomou conta da casa, e o coração começou a disparar de um jeito que eu nunca tinha sentido antes. Era como se meu corpo estivesse tentando avisar que uma tragédia estava prestes a me atropelar.
— Fala logo, p***a. Fala o que aconteceu, c*****o! — gritei, me aproximando com sangue nos olhos.
Amanda virou pra mim com os olhos marejados, pálida como quem viu a morte.
— Sofreram um acidente. Na Dutra. Um caminhão… Cristian… o caminhão passou por cima. Não sobrou nada. Tá tudo no hospital. Minha colega trabalha lá… ela me ligou porque reconheceu o rostinho da Manu e a tatuagem da Lari… A polícia já tá lá…
“Não sobrou nada.”
Essas três palavras ficaram batendo dentro da minha cabeça como martelo em crânio. Foram essas palavras que começaram a me destruir por dentro. “Não sobrou nada.” Como é que uma vida inteira pode ser reduzida a isso? Como é que o amor da minha vida e a minha filha, minha bebê, meu pedaço de sol, se transformaram em “nada”? Foi ali que eu comecei a morrer.
Naquela manhã, eu e Larissa tínhamos discutido. Coisa boba. Eu ia sair pra resolver uma pendência numa favela vizinha e pedi pra ela não sair de casa com a Manu. Falei que não era seguro, que eu voltaria logo. Mas ela nunca soube viver dentro de uma bolha de medo. Ela queria respirar mesmo cercada de fumaça, queria sorrir mesmo quando tudo ao redor sangrava. Teimosa. Cheia de vida. Cheia de amor pela nossa filha. Ela pegou o carro, disse que ia só visitar a mãe e dar uma passada rápida no shopping pra comprar uma roupinha pro aniversário de dois anos da nossa pequena.
— É só uma horinha, Cristian. Qualquer coisa, você me liga — ela disse antes de sair.
E antes de atravessar a porta, ainda me puxou pelo cia da bermuda, me deu um selinho, olhou pra mim e soltou com aquele sorriso torto que ela sempre usava pra me desarmar:
— Te amo, viu, marrento.
Mas eu não respondi. Não falei nada. Só bati a porta. Tava de cabeça quente, orgulho inflado, cheio daquela pose de durão que sempre quis manter. Foi o maior erro da minha vida. Eu dar as costas justo naquele dia. Eu me calar quando devia ter gritado o quanto amava aquelas duas.
No hospital, o caos era palpável, pesado, doía na alma já, mesmo antes de eu abrir a minha boca pedindo por informações, todo o meu corpo já tremia. Delegado na entrada. Policial na recepção. Enfermeira cochichando. Um segurança me observando como se já soubesse do tamanho da bomba que eu estava prestes a receber. Amanda segurava meu braço, tentando me manter de pé, mas eu não escutava nada. Eu estava surdo de medo. Cego de dor. Um zumbi em carne viva. Eu vim na cara dura, porque na época, eu ainda não era procurado, e mesmo se fosse, naquele dia eu não estava ligando pra nada, eu só queria que aquilo tudo fosse uma grande mentira, mas não era.
— É o Cristian Barreto? — perguntou a mulher da recepção.
— Sou eu — respondi, com a voz mais rouca que já saiu da minha garganta.
Ela engoliu seco, desviou os olhos e fez um gesto pra que me levassem pra uma sala reservada. A porta se fechou atrás de mim e, dentro daquele quarto frio, o mundo acabou.
Uma enfermeira entrou carregando uma caixa pequena. Transparente. Dentro havia um sapatinho branco, com um laço rosa na frente. Era da Manu. Era o primeiro presente que eu dei pra ela, assim que descobri a gravidez. Eu reconheci na hora. Era nosso. Era parte da nossa história. E agora tava ali, manchado de sangue seco, como um atestado c***l daquilo que não deveria ter acontecido.
— Era da sua filha? — ela perguntou, com a voz embargada, como quem não queria me destruir, mas precisava.
Eu não consegui falar. Só balancei a cabeça. A garganta fechada, o peito esmagado, a alma implorando pra fugir daquele lugar.
Em seguida, ela abriu uma pasta. Dentro, havia fotos, laudos, fragmentos. Uma parte de pele onde estava a tatuagem que fizemos juntos. O sol e a lua. Nosso símbolo. A primeira tatuagem que fiz com a Lari, quando completamos um ano. Ela dizia que éramos isso luz e escuridão. Que mesmo quando tudo ao redor apagasse, a gente ainda se completaria.
— Foi a única parte que deu pra identificar. A carreta esmagou por cima. Os corpos… estão irreconhecíveis. A identificação foi confirmada pela tatuagem e pela cadeirinha. O cinto, os restos do carro… tudo bate. Sobrou pouco. Quase nada.
Eu desabei no chão. Me joguei com força, sem sentir os joelhos baterem. Tudo ao redor escureceu. Era como se eu estivesse morrendo de novo e de novo, sem parar. Eu queria gritar, queria quebrar tudo, mas a dor era tão grande que nem força pra gritar eu tive. Era como ter a carne arrancada com a unha, a alma dilacerada a cada palavra.
Dois dias depois, o velório. Um caixão grande, de madeira escura. E um pequenininho, branco. A cena mais desumana que já existiu. O morro inteiro veio. Coroas de flores. Gente chorando. Gente tentando me consolar. Mas eu não via nada, não ouvia ninguém. Eu estava sentado no primeiro banco da capela, com os olhos grudados naquele caixão menor, como se esperasse ver ele se abrir e a minha filha correr pro meu colo de novo.
Mas aquilo era real. Era o fim. E não existia força no mundo capaz de me arrancar dali.
Larissa era minha desde o tempo em que eu vendia bala no sinal. Me esperava na esquina com dois pirulitos no bolso. Foi comigo em tudo. No crime, na dor, na vitória. Dormiu comigo nas lajes, correu comigo da polícia, me curou no primeiro tiro, me ensinou o que era ser amado de verdade. Era minha mulher. Minha parceira. Minha única certeza.
E a Manu… ah, minha Manu. Ela era o sol que iluminava até os cantos mais escuros do meu inferno. Aquele jeitinho de me chamar de “papai”, os passinhos tortos correndo pela casa, os abraços apertados que me desmontavam. Ela era minha alegria. Minha vida. Minha esperança de que tudo podia dar certo.
Lembro de uma noite antes do acidente. A Manu teve febre. A gente ficou deitado, os três juntos, ela no meio, abraçadinha em nós dois. A Lari encostou a testa na minha e disse baixinho:
— Você é um bom pai, sabia?
Eu não soube o que responder. Só abracei elas, com a certeza de que nunca deixaria nada de r**m acontecer. Mas aconteceu. E eu não estava lá pra impedir.
Depois daquilo, tudo perdeu o sentido. O Cristian morreu. Só restou o Cobra. O homem que comanda, que mete medo, que carrega o morro nas costas. Mas ninguém vê o que tem por trás. Ninguém sabe do peso que eu carrego.
Meu quarto virou cela. Meu copo virou alívio. Meu travesseiro, um túmulo de lembranças. Todas as noites eu escuto buzina de caminhão nos sonhos, vejo a Lari gritando, a Manu chorando. Eu invadi o sistema de câmeras da cidade. Queria saber como tinha sido. E me arrependi de ter visto. Era ela, certinha, na faixa certa, dirigindo devagar. O caminhão cruzou do nada. Sem freio. Sem lógica. Sem piedade. E passou por cima de tudo. Passou por cima da minha vida.
Hoje eu mando em tudo. Favela, crime, sistema. Mas isso não significa nada. Porque o que me fazia humano, o que me dava cor, cheiro, luz… ficou naquele asfalto.
O mais c***l é acordar todos os dias achando que vou escutar a risada da minha filha ecoando pela casa. Ou ver a Lari saindo do banheiro, reclamando do cigarro. Mas tudo que resta é esse silêncio ensurdecedor, esse vazio que nunca fecha, esse buraco fundo que carrego no peito.
As vezes eu ainda acordo ouvindo a Manu me chamando, sentindo seus beijos no meu rosto, mas isso tudo não passa de um pesadelo, um pesadelo que eu nunca vou me livrar, e que vai sangrar para sempre.
Dizem que o tempo cura.
Mentira.
O tempo apenas ensina a conviver com a dor.
E é por isso que hoje, todos me chamam de Cobra. Porque o Cristian… morreu no dia em que o caminhão esmagou o mundo dele na Dutra.