Capítulo 02

1800 Words
Luna narrando — eu não vou carregar essa culpa, você não pode colocar uma culpa em mim de algo que eu não fiz, isso não vai ficar assim, você pode ter certeza disso. Eu vou voltar, e quando eu voltar você se prepare — eu gritei no orelhão do posto e bati com força e sai correndo Já havia conseguido uma carona com um caminhoneiro, e meu destino era o único que eu poderia chegar, o Rio de Janeiro. Eu fui incriminada, e impedida de me despedir dos meus próprios pais. Essa dor eu nunca vou perdoar. Eu nunca vou superar. Meu irmão foi covarde, foi sujo, foi baixo. Mas os meus pais sabem do meu coração, eles sabem quem eu sou, eles sabem que eu os amava, e eles sabem o quanto eu me dedicava a eles. Um único dia longe, um único dia que eu precisei me afastar deles, meu irmão fez isso comigo. Aliás, aquilo não é um irmão. O que ele fez foi imperdoável, e tudo por dinheiro, tudo por herança, ele foi capaz de quase me colocar atrás das grades a troco de nada. Eu não vou deixar isso passar assim. Eu vou provar a minha inocência, eu vou provar o meu lado da história, eu vou provar, nao porque eu precise, mas porque meus pais devem estar se remoendo por estarem me vendo passar por isso, injustamente A noite já caía quando entrei naquele caminhão. O céu alaranjado refletia no retrovisor, enquanto a poeira da estrada parecia engolir tudo o que eu deixava pra trás. Minhas mãos ainda tremiam depois do telefonema no orelhão do posto. Eu tinha gritado até minha garganta arranhar, mas ainda assim parecia pouco. Aquilo não ia sair de mim tão cedo. O caminhoneiro me olhava muito preocupado. Ele era um senhor de cabelos grisalhos e olhos fundos, com um boné surrado cobrindo parte da testa marcada de sol. Vestia uma camisa de malha clara, suada, mas limpa, e usava uma corrente com um pingente pequeno de cruz. Me olhou pelo canto dos olhos enquanto girava o volante com firmeza. — Quer uma água? Tá gelada. — ofereceu, puxando uma garrafinha do suporte ao lado. — Não, obrigada. — respondi seca, me encolhendo mais no banco. A boca estava seca, mas eu não podia confiar. Não mais. Ele percebeu meu receio. E em vez de se ofender, deu um suspiro cansado, como quem já tinha visto demais no mundo. — Cê me lembra minha filha… — murmurou, enquanto fazia uma curva fechada, saindo da cidade e pegando a BR em direção ao sudeste. — Ela se foi, faz uns anos. Era teimosa igual você. Coração bom, mas arredia. Nunca gostava de aceitar ajuda de ninguém. Engoli em seco. O cheiro de diesel, o balanço da cabine e o tom calmo dele começaram a me desmontar por dentro. Mas eu resistia. — Se quiser, eu ligo pra minha esposa. — continuou. — Coloco no viva-voz, só pra você ouvir. Ela adora saber das minhas paradas. Só pra você se sentir mais segura, tá? Aquela gentileza inesperada doía mais do que qualquer crueldade que eu tivesse vivido. Porque eu não sabia mais como reagir a isso. Eu não sabia mais como me sentir segura. — O mundo anda tão estranho, né, menina? — ele falou, quase num sussurro. — Tem gente que machuca, mesmo tendo o mesmo sangue. E tem gente que acolhe, mesmo sem conhecer. Foi aí que eu não aguentei mais. Quando a estrada começou a sumir atrás dos retrovisores e os postes ficaram pra trás, eu me vi desabando. As lágrimas que ardiam nos meus olhos desde o enterro que me foi negado, desde o momento em que vi meu rosto nos jornais com palavras que eu nunca disse, desde que fui tratada como uma assassina pelos vizinhos, começaram a cair. — Eu não fiz nada… — murmurei, tentando conter o choro, mas era inútil. — Eles eram tudo pra mim… e eu nem pude me despedir. Ele não respondeu. Só dirigiu em silêncio, respeitando o meu luto, o meu desespero, o meu caos. — Meu irmão… — continuei, soluçando. — Ele armou tudo… ele fez parecer que eu… — respirei fundo. — Que eu matei eles. Mas eu juro… eu juro que não… eles eram tudo o que eu tinha. A garrafinha de água ainda estava ao meu lado. Peguei. Tentei abrir, mas minhas mãos tremiam tanto que precisei da ajuda dele. — Toma com calma, menina. Respira. — ele disse, entregando a tampa aberta. Bebi com sede. Mas era mais sede de alívio do que de água. — Eu me chamo Ernani. — ele disse, olhando a estrada à frente. — E da pra ver o seu amor por eles nos seus olhos, mas olhe, Deus não nos dá um fardo que não possamos carregar. Porque eu tô vendo aqui… você tem mais força do que imagina. Chorei ainda mais. A estrada à frente parecia infinita, mas pela primeira vez, em muito tempo, eu não sentia medo do que vinha depois. Talvez porque, naquele caminhão velho e enferrujado, com aquele senhor que falava com a calma de quem já tinha perdido muito, eu tivesse encontrado um pedaço de humanidade que o mundo inteiro me negou desde aquele dia. E pela primeira vez, eu consegui dormir. De verdade. Sem correr. Sem me esconder. Só dormir… chorando baixo, com a cabeça encostada no vidro, enquanto a estrada me levava até o Turano. Até o meu destino. Acordei com um leve toque no ombro, seguido de uma voz suave que parecia vir de outro mundo. — Minha filha… chegamos. Abri os olhos devagar, ainda tonta entre o sono e a dor acumulada dos últimos dias. A luz do sol invadia a boleia pelas frestas da cortina improvisada, e do lado de fora, o cenário era completamente diferente do que eu conhecia. Casas espremidas, becos estreitos, muros rabiscados com nomes e siglas que eu não reconhecia, e uma tensão no ar que dava pra sentir mesmo com os vidros fechados. Era o Rio. Era o Turano. — Eu não posso me aproximar muito daqui, porque esse lugar é perigoso. — disse o senhor Ernani, virando-se um pouco no banco, com aquele mesmo olhar sereno que me acompanhou durante toda a viagem. — Você tem certeza de que é aqui que você quer ficar? Pisquei algumas vezes, tentando ajustar a visão e controlar o enjoo que o nervosismo me causava. Levei a mão até a maçaneta da porta, mas fiquei ali parada por um instante. O coração pesava, as pernas fraquejavam, mas minha voz saiu firme: — Sim. Eu tenho certeza. Minha prima já está me esperando. Ele assentiu em silêncio, tirou o boné, passou a mão pelos cabelos já ralos e respirou fundo, como se aquela despedida também doesse nele. — Muito obrigada, Sr. Ernani. — falei, com a voz embargada. Ele me olhou com carinho. — De nada, minha filha… — disse ele, estendendo a mão calejada e segurando a minha com cuidado. — Que Deus te abençoe. Que a justiça divina seja feita. Confie naquele que tudo pode, tudo vê… e que é Ele quem faz acontecer tudo isso. Você não está sozinha, mesmo que pareça. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ele levantou a mão trêmula e traçou o sinal da cruz na minha testa, com o mesmo cuidado que um pai tem com a filha doente. Meus olhos se encheram novamente, e dessa vez eu não contive as lágrimas. — Qual o seu nome, minha filha? — ele perguntou, com a voz baixa, quase num sussurro. — Posso fazer uma oração por você? Hesitei. Por um segundo, me vi abrindo a boca pra dizer “Luna”. Pra contar quem eu realmente era, pra confiar nele com tudo o que eu escondia. Mas a verdade era que, a partir daquele momento, Luna tinha morrido com os meus pais. Luna foi enterrada com a última lembrança boa que eu tinha da minha família. Suspirei, engolindo seco, e com os olhos fixos nos barracos do alto do morro, respondi com firmeza: — Meu nome é Maya, Sr. Ernani. Ele assentiu, como se já soubesse que havia uma mentira ali, mas não quis contestar. Segurou minhas mãos entre as dele com mais força, fechou os olhos e começou a oração. — “São Jorge, guerreiro invencível, que em nome de Deus abre os caminhos, derruba as muralhas, quebra as correntes… protege essa filha, livra-a de todo m*l, guia os passos dela mesmo nas sombras da injustiça…” A voz dele era carregada de fé. Era a mesma oração que meu pai fazia toda vez que eu saía sozinha de casa. Toda vez que a gente viajava. Toda vez que algo parecia incerto. E agora, ali, na porta de uma favela desconhecida, um estranho que parecia ter sido enviado por Deus repetia aquelas palavras, como se estivesse chamando meu pai de volta por alguns segundos. Desabei. Chorei como uma criança perdida. Me encolhi ali mesmo, sentada na beirada do banco, enquanto ele ainda terminava a oração. E quando ele disse o “Amém”, eu levantei os olhos molhados, sentindo que, pela primeira vez em dias, alguém tinha orado por mim… e não contra mim. — Você vai vencer, Maya. — ele disse, com convicção. — Deus não dorme. E eu vou lembrar de você em todas as minhas orações. Assenti, sem conseguir dizer nada. Peguei minha mochila surrada, com as poucas roupas que consegui enfiar nela às pressas no dia em que invadi a casa dos meus pais sem ser vista. Ali dentro, além das roupas, só havia uma foto amassada da minha família e uma correntinha da minha mãe que escapou do caos. Desci do caminhão e fechei a porta devagar. Ernani acenou com a mão e foi embora devagar, sumindo no horizonte da mesma estrada por onde me trouxe. Fiquei ali parada por alguns segundos, até que o barulho da cidade me puxou de volta. Respirei fundo e comecei a andar. As pessoas me olhavam com desconfiança, os olhares curiosos seguiam cada passo meu. Um menino de chinelo gritou algo lá do alto da laje. Um cachorro latiu. Uma mulher estendia roupas no varal improvisado. Cada canto daquela favela me dizia que eu estava fora do meu mundo. Mas eu também sabia que, se quisesse sobreviver, se quisesse justiça, se quisesse recomeçar… era ali que tudo começaria. E foi com os olhos ainda inchados, o coração estilhaçado e a alma em frangalhos que eu dei os primeiros passos em direção à entrada do Turano. Sem olhar pra trás. Sem ninguém por mim. Só com a fé do seu Ernani me empurrando pra frente. E o nome Maya… ecoando dentro de mim como escudo e sentença.
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