Capítulo 05

1945 Words
Luna narrando (Maya) Quando a gente virou a primeira viela, já um pouco afastadas da barricada, que não aguentei mais. Segurei o braço da Rayane e parei no meio do caminho. As lágrimas vieram como uma enxurrada. Caí no choro, ali mesmo, sem conseguir mais segurar. — prima, me explica direito o que aconteceu, eu ainda tô sem acreditar em tudo o que me disse, parece absurdo demais pra mim — ela pede e realmente era Uma história monstruosa que é quase impossível de se acreditar, mas era real. É real. — Prima… meu irmão… — as palavras saíam entre soluços. — Ele acabou com a minha vida… você acredita nisso? Meu irmão… — eu falava com um nó na garganta sem querer aceitar tudo o que tinha acontecido — meu próprio irmão matou os nossos pais, Ray… matou… por dinheiro… e botou a culpa em mim! — eu falei, batendo no próprio peito, a voz rasgando na garganta. — Ele fez isso… ele destruiu tudo… e eu não posso nem me despedir deles… nem isso, Ray… nem isso! Ele fez tudo pela casa, pela empresa, tudo porque meu pai colocou limites nele, e ele não aceitou. A Rayane me puxou pra um canto, encostou na parede de uma casa e me abraçou forte. Eu me agarrei nela como se fosse minha última âncora. — Calma, prima… calma… respira, pelo amor de Deus… — ela tentava me acalmar, passando a mão nas minhas costas. — Eu sei, eu sei que tá doendo, mas você é forte, você sempre foi… olha pra mim. Eu levantei o rosto, os olhos cheios de lágrimas, trêmula. — Eu não consigo acreditar que ele foi capaz… Ray… como que alguém mata os próprios pais? Como que alguém é capaz de fazer isso e ainda tentar me destruir desse jeito? — minha voz falhava, a dor era tanta que parecia me rasgar por dentro. — Ele me tirou tudo… tudo, Rayane… você viu, passou nos noticiários, as fotos vazaram dos corpos dos meus pais, foi brutal o que ele fez, e ainda colocou a culpa em mim, quando eu faria aquilo com as duas pessoas que eu mais dediquei a minha vida, que eu fazia tudo por eles. Ela segurou meu rosto com as duas mãos e olhou firme nos meus olhos. — Prima… teu irmão nunca prestou, você sabe disso. Sempre foi um verme. E agora ainda se juntou com aquela mulher… que presta menos que ele! — cuspiu as palavras com desprezo. — Infelizmente, é isso. Tem gente que nasce podre, prima. Mas olha aqui, ó… você não tá sozinha, tá me ouvindo? — a voz dela amoleceu. — Eu vou te ajudar. A gente vai sair dessa juntas. Não vai ser fácil, mas você tem a mim. Você tem essa casa. Você tem essa favela, que pode ser difícil no começo pra você se acostumar, mas aqui ninguém vai te entregar. Respira, confia em mim. Você é forte. Mais do que imagina. Eu só conseguia chorar. Mas no fundo… as palavras dela entravam como um fio de esperança. Por mais difícil que fosse, por mais que a culpa me esmagasse, eu sabia que precisava de um lugar pra recomeçar. E ali, naquele abraço, pela primeira vez em muito tempo, eu senti que talvez… só talvez… ainda tivesse um pouco de chão pra pisar. A gente continuou subindo o morro. Eu com a cabeça baixa, as lágrimas ainda escorrendo, e a Rayane me puxando com cuidado, me mostrando o caminho. As ruas eram estreitas, cheias de curvas e degraus irregulares. Crianças brincavam na beira das vielas, enquanto algumas mulheres olhavam curiosas pra gente. Os olhares pesavam, mas a Rayane nem se abalava. Seguia firme, me guiando como se já soubesse o que esperar. Eu não posso negar que ver aquele tanto de homem armado me assustou, me assustou muito, é uma realidade completamente diferente de tudo o que eu já vi, e eu até sabia pelo o que a minha prima já tinha me falado, mas ver assim, pessoalmente era muito diferente de fato. Depois de algumas voltas, paramos diante de uma porta azul, meio descascada, com um varal improvisado estendido na frente. — É aqui. — ela disse, abrindo o portãozinho de ferro. — Aqui você tá segura. Aqui ninguém mexe com você, pode ter certeza disso. Eu entrei devagar, ainda com o corpo mole de tanto chorar. O lugar era simples, mas aconchegante. Uma sala pequena com um sofá enorme, uma mesinha com fotos e um quadro de São Jorge na parede. A cozinha dava pra ver dali mesmo, tudo arrumadinho. E um cheiro bom de café ainda pairava no ar. A Rayane largou a bolsa no canto e veio até mim. — Senta aqui, vem. — ela me puxou pro sofá e foi buscar um copo d’água. — Bebe. Vai te fazer bem. Tomei a água em goles pequenos, tentando controlar a respiração. — Eu não sei o que fazer, Ray… eu tô tão perdida… — a voz saiu fraca. — Eu só quero provar que eu não fiz aquilo… que eu não sou o que dizem que eu sou… eu só queria meus pais de volta… A Rayane sentou do meu lado, me puxou de novo pro abraço e falou baixinho: — Você vai provar, prima. A gente vai dar um jeito. Eu tô com você, tá me ouvindo? Mas por agora… descansa um pouco. Você precisa de força. Aqui, você tá segura. Respira… um dia de cada vez. Fechei os olhos, encostada no ombro dela. O choro já vinha mais baixo, mais contido, mas a dor ainda queimava. Eu não sabia como ia conseguir seguir. Não sabia como ia me erguer no meio daquele pesadelo. Mas ali, naquele sofá de uma casa simples no meio de um morro desconhecido… pela primeira vez desde que tudo aconteceu, eu senti um pequeno fio de esperança. Era pouco. Mas era tudo o que eu tinha. Eu deitei ali me aconchegando e apaguei de tão cansada. Cansaço mental e físico. Acordei com o corpo ainda pesado, como se o sono tivesse me puxado pro fundo de um poço e agora eu lutasse pra subir. A cabeça latejava, os olhos ardiam. Olhei ao redor, meio perdida. Por um segundo, esqueci onde estava. Fechei os olhos de novo, tentando conter o nó que já subia pela garganta. Mas antes que eu pudesse mergulhar outra vez no choro, ouvi passos leves e a voz da Rayane. — Tá acordada? — ela perguntou baixinho, entrando com um sorriso cansado, mas carinhoso. Assenti com um movimento quase imperceptível. Ela veio até mim, se sentou na beirada do sofá e passou a mão no meu cabelo. — Olha só, prima… eu sei que tá tudo pesado demais. Sei que parece que o mundo acabou. Mas você precisa reagir, pelo menos um pouquinho. Você precisa comer, precisa se cuidar. Senão essa tristeza te engole e você não vai nem conseguir pensar em como se defender e como provar a sua inocência. Respirei fundo, sem conseguir responder. Ela apertou minha mão. — Faz assim… vai tomar um banho. Lava esse rosto, tira esse peso do corpo. Depois bota uma roupa qualquer e vamos ali no canto comer um hambúrguer. Vai te fazer bem. Confia em mim. Hesitei por um instante. Parte de mim só queria se encolher naquele sofá e desaparecer. Mas a outra parte… a que ainda tinha um pingo de força… sabia que a Rayane tinha razão. Assenti devagar. — Tá bom… — murmurei, a voz ainda fraca. Ela sorriu, se levantou e foi buscar uma toalha. — Isso aí. Vai lá, eu te espero. E sem pressa, tá? Se precisar de roupa, pode pegar minha gaveta. Levantando devagar, fui até o banheiro. A água quente escorrendo pelo meu corpo foi como um alívio momentâneo. Enquanto a água caía, chorei mais um pouco baixinho, misturando lágrimas com o vapor. Mas ali, sozinha, me permiti esvaziar um pouco da dor. Era inevitável. Depois, vesti um short jeans simples, uma blusa de alcinha preta da Rayane e arrumei o cabelo, ajeitei meus cachos. No espelho, meus olhos ainda estavam inchados, mas pelo menos agora eu conseguia encarar meu próprio reflexo. Voltei pra sala. Rayane já me esperava de short e camiseta, o cabelo preso num coque despretensioso. — Bora? — perguntou, pegando as chaves e um casaquinho. — Só pra você sair um pouco, ver gente, eu te apresentar a favela, e você tentar esquecer nem que seja por uns minutos. Assenti outra vez. O ar fresco da noite bateu no meu rosto assim que saímos da casa. O morro tinha outra cara à noite: mais calmo, mais silencioso, mas ainda assim cheio de vida. Vozes ecoavam de algumas janelas, risadas vinham de lajes distantes, e a música baixa de algum bar próximo preenchia o ar. Caminhamos por algumas ruas até uma hamburgueria pequena, com luzes de neon azuis e vermelhas piscando na fachada. Mesas de plástico ocupavam a calçada. Um cheiro bom de carne grelhada já impregnava o ar. Nos sentamos numa das mesas do canto. Rayane puxou o cardápio. — Vamos pedir um combo. Você come pouco, eu como o resto. — ela brincou, tentando aliviar meu rosto ainda tenso. Forçei um sorriso. — Pode ser… obrigada, Ray… Ela segurou minha mão por cima da mesa. — Prima… uma coisa você precisa entender: você não tá sozinha aqui. A partir de agora, tudo que você precisar, você me fala. E por mais que doa, a gente vai achar um jeito. Confia. Assenti, com os olhos marejados de novo, mas segurei. Não podia desabar ali. Enquanto ela fazia o pedido com o garçom, olhei ao redor, tentando absorver o lugar. Gente rindo, casais conversando, alguns rapazes jogando sinuca mais ao fundo. Um lugar simples, mas com vida. Mas a maioria dos meninos que estavam ali, todos portavam fuzil, rádio e tudo mais, e eu precisava me acostumar com essa minha nova realidade. Foi quando ouvi o ronco grave de uma moto se aproximando. O som cortou o burburinho da noite. Meu olhar foi puxado automaticamente pra rua. E lá estava ele. O homem da barricada. O olhar que tinha me atravessado horas antes. Ele veio descendo a rua devagar, montado numa moto preta fosca, com o fuzil pendurado no ombro como se fosse parte dele. O rosto sério, duro, os olhos escondidos por um boné aba curva. Meu coração disparou na hora. Não consegui disfarçar. Fiquei olhando. Olhando sem conseguir piscar. Sem entender por que aquele homem me causava aquilo. Ele parou a moto em frente à hamburgueria. Desceu com calma. Ajeitou o fuzil no ombro. E então… me viu. Nossos olhos se cruzaram. Meu corpo inteiro travou. Foi como se o tempo tivesse parado. Eu não sabia se respirava, se desviava o olhar, se me escondia. Mas não consegui fazer nada. Só fiquei ali, encarando ele, como se algo muito maior que eu me puxasse pra aquele momento. E ele… ele continuou olhando. Sem nem disfarçar, encarnado mesmo Depois, com aquele mesmo jeito bruto e imponente, caminhou em direção à porta da hamburgueria. — c*****o… o que foi isso ? Cobra nem disfarçou, carne nova e f**a — ouvi a Rayane murmurar ao meu lado, percebendo quem estava entrando. Tinha um batalhão acompanhando dele, e logo uma manada de p**a indo atrás. Porque me desculpa, mas p**a e p**a em qualquer canto do mundo, e as da favela nem disfarçam, pois foi só ele chegar que faltaram quase ficar nuas na sua frente e todas irem na direção da mesa que ele sentou. Que por coincidência ou não, era bem de frente pra minha.
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