Capítulo 06

2314 Words
Rayane narrando Morar no Rio de Janeiro nunca foi um sonho. Nunca esteve nos meus planos. Mas se tornou minha única saída quando a vida que tentaram me empurrar goela abaixo começou a me sufocar de um jeito que eu já não conseguia mais respirar. Eu saí do interior de Goiás com a coragem na mochila e a alma remendada de tantos silêncios engolidos. Foi por mim. Pela mulher que eu sabia que existia aqui dentro e que ninguém nunca tinha deixado florescer. Lá, a vida sempre foi ditada por regras que vinham de antes de eu nascer. Meu pai é um homem bom, de coração justo, mas criado num tempo onde a mulher era criada pra casar, parir e cuidar de casa. Ele queria isso pra mim. Queria me ver casada cedo, com um filho de fazendeiro que ele jurava que era um bom partido só porque tinha dinheiro, terras e o sobrenome certo. Mas eu conhecia esse tal de “bom partido”. Era escroto, mimado, mulherengo. Já tinha visto ele fazer duas meninas se estapearem no meio da praça, e depois sair rindo com a próxima. Eu ia querer isso pra minha vida? Nunca. Meu pai achava que ele tava me protegendo. Que casar com esse cara era me garantir um futuro. Mas ele não via que, ao me prender, tava me matando aos poucos. A minha mãe, coitada, chorava calada. Sempre foi submissa, amorosa, do lar. Pra ela, aquela vida fazia sentido. E talvez ainda faça. Mas pra mim, não. Eu sempre soube que não nasci pra viver à sombra de ninguém. Eu queria estudar. Trabalhar. Me formar. Ter minha própria história. Construir o meu nome. Ser alguém por mim, e não por carregar o sobrenome ou o status de algum homem. A situação ficou insustentável. As discussões aumentaram. O clima em casa, que sempre foi de amor e tranquilidade, virou um campo minado. E quando percebi que o conflito entre eu e meu pai tava afetando até o casamento dos meus pais, eu tomei a decisão mais difícil da minha vida: arrumar minhas coisas e ir embora. Não por orgulho. Não por revolta. Mas por amor. Amor a mim. E por respeito a eles. Peguei a pequena reserva de dinheiro que eu vinha juntando desde a adolescência, escondendo parte do que meu pai me dava de mesada. E com ela, vim pro Rio. Não conhecia ninguém aqui, só tinha ouvido falar do Morro do Turano através de uma conhecida distante. E foi pra cá que eu vim. Aluguei uma salinha apertada, com parede mofada e janela que m*l abria, mas era minha. Meu começo. Comecei a fazer unha. Eu tinha aprendido sozinha, assistindo vídeo no YouTube no quarto, com a tela rachada do celular que era mais calor que imagem. No começo foi difícil. Peguei poucas clientes. A mão tremia, o coração batia acelerado com medo de errar. Mas mesmo com medo, eu ia. Fui investindo em cursos, em materiais melhores, em atendimento de qualidade. Fui sendo indicada de boca em boca. Fui crescendo. Hoje, eu tenho nome. Tenho espaço. Tenho sala VIP, agenda cheia, curso próprio. Cobro mil reais pra cursos individuais. E faço ações sociais pras meninas da favela que querem aprender, mas não têm como pagar. Porque eu sei como é começar do nada. Eu sei o que é não ter ninguém pra dizer “vai, tenta, você consegue”. O que eu conquistei aqui, conquistei com as minhas mãos. Com os meus calos. Com a minha resistência. Com os meus valores. E isso, nem o tempo, nem a dor, nem homem nenhum pode tirar de mim. Meu pai hoje me liga com orgulho na voz. Diz que se emociona toda vez que vê minhas fotos nas redes sociais com as alunas, com os certificados, com as clientes sorrindo. Me chama de guerreira. De exemplo. E mesmo que ele nunca diga com todas as palavras, eu sei que ele reconhece que eu fiz o que ele jamais teria coragem de fazer: rompi o ciclo. Ele e minha mãe já estavam com a viagem marcada pra me visitar antes de tudo isso acontecer. E sim, eu sei que ver a favela vai ser um baque pra ele. O barulho, a confusão, os becos, os fuzis. Mas eu não tenho vergonha daqui. Aqui é difícil, claro. Mas foi aqui que eu construí tudo. Foi daqui que eu tirei meu sustento, comprei minha casa, comprei minha moto, tirei minha habilitação, tô quase comprando meu carro dos sonhos. É aqui que eu realizo os meus planos, que eu ajudo outras mulheres a realizarem os delas. Já chorei muito. Já pensei em desistir. Já tive dias em que achei que nada valia a pena. Que eu nunca ia sair do mesmo lugar. Mas eu continuei. Um dia depois do outro. Um cliente depois do outro. Um curso depois do outro. E hoje eu posso dizer com orgulho que eu venci. Ainda tô vencendo. Com dignidade, com coragem, com garra. Sem precisar me esconder atrás de ninguém. Sou Rayane. Filha de interior. Neta de dona de casa e vaqueiro. Mas também sou professora, empresária, referência no que faço. E não importa de onde eu vim ou onde eu esteja, ninguém apaga minha trajetória. Porque o que eu conquistei, foi no suor. E o que eu sou… foi com coragem. Eu lembro como se fosse ontem o dia em que comprei a minha casa. Ainda é recente — tem só alguns meses — mas parece que vivi uma vida inteira desde então. Até aquele momento, eu morava numa kitnet alugada, bem simples, mas que me serviu com dignidade. Era em cima da minha própria loja, ali mesmo onde comecei a construir tudo que sou hoje. Era apertado, mas era o que eu podia pagar na época. E cada degrau que subi até chegar aqui foi com esforço. Cada perrengue teve seu propósito. Cada noite m*l dormida teve seu porquê. Tudo me trouxe até aqui. Foi a Amanda, irmã do Cobra, quem me encorajou a dar esse passo. Amanda é minha cliente de longa data. Costumo brincar com ela dizendo que ela me pegou “na época das vacas magras”, quando eu ainda estava começando e nem maleta de manicure eu tinha. Ela sempre me tratou com carinho, respeito e reconhecimento, coisa rara quando se começa do nada. Quando viu o quanto eu tava me virando, que eu já tinha comprado minha moto, que tava prestes a comprar meu carrinho, ela me deu o empurrão que eu precisava pra dar mais um passo: a casa. Ela disse pra eu ir na boca, conversar com o irmão dela ou com o Matheus, que é sub do cobra. Que eu dava a entrada que tinha, e parcelava o resto. Disse que eu merecia morar bem. Que o tanto que eu me esforçava, o tanto que eu batalhava, não podia se resumir a viver espremida num barraco alugado. Que agora era hora de buscar uma casa com garagem, uma área de lazer, uma estrutura de verdade. E, sinceramente? Ela tinha razão. No dia em que fui até a boca, o Cobra não estava. Quem me atendeu foi o Matheus. A gente já se conhecia de vista, de baile, não era nada muito próximo, mas já tínhamos um contato. Porque por eu ser amiga da Amanda, eu sempre que ia ao baile arrastada por ela, eu ficava no camarote, então eu já tinha um pouco de contato tanto com ele quanto com o cobra. E por eu ser amiga da Amanda, ele sempre foi tranquilo comigo. Mas aquele dia foi diferente. Ele me recebeu, me escutou com atenção e me mostrou uma casa que… parecia que tinha sido desenhada pra mim. Era ali, pertinho da praça, mas não tão perto a ponto de cair na bagunça. Subia uma escadinha, e a casa ficava no andar de cima, com uma varanda espaçosa e uma laje dividida — uma parte coberta, outra aberta, com churrasqueira, tudo ajeitadinho. Só não tinha piscina. Mas tinha garagem, com entrada pelos fundos, espaçosa o suficiente pra minha moto e pro carro que tô prestes a comprar. Era tudo o que eu precisava. Dei a entrada com o dinheiro que eu tinha guardado, e a Amanda me ajudou em tudo. Desde escolher os móveis até pensar nas cores das paredes. A casa ainda não tá 100% pronta, mas é minha. Eu tô pagando, sim, prestação por prestação, mas é minha. É o meu lar. O meu canto. A minha conquista. E toda vez que eu chego ali e olho ao redor, lembro de tudo que enfrentei até aqui. Lembro da primeira vez que vi uma invasão. Da primeira morte que presenciei de perto. Do primeiro bandido que precisei esconder dentro da minha sala, no reflexo, pra ele não morrer ali mesmo na frente da minha loja. E não por envolvimento, mas porque na favela é assim: quem ajuda, morre; quem n**a ajuda, morre também. A gente vive entre as balas e as escolhas que não tem alternativa. E mesmo com todo esse caos ao redor, eu sigo. Mas o dia da mudança… esse ficou gravado em mim. No exato dia em que me mudei pra casa nova, teve invasão na favela. O barulho dos tiros m*l deixou eu descarregar o caminhão com as coisas. E no meio daquele inferno, vi o Matheus ser baleado. Ele caiu no meu portão, sangrando. Eu nem pensei. Saí correndo, puxei ele pra dentro. Tranquei a casa e fiz o que podia. Cuidei dele. Fiz curativo. Tentei estancar o sangue. A adrenalina falava mais alto que o medo. Passei horas ali, atenta a cada barulho do lado de fora, vigiando a respiração dele, esperando que a invasão acabasse pra poder levá-lo até alguém que ajudasse. Só que, no meio da madrugada, eu acordei. Ele tava me abraçando. Eu tava aninhada nos braços dele, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Ele ainda tava com o corpo febril, fraco, mas consciente. Levantei, fui buscar outro pano limpo, outro remédio. E, quando percebi, a gente tava se beijando. Foi assim. No susto. No instinto. E não me arrependo. Até hoje eu não sei explicar direito o que aconteceu naquele dia, parecia que era simplesmente destino, não tem outra explicação. Desde então, a gente tem ficado. Não é nada oficial. A gente não rotula. Mas parece até casamento, porque quando ele não tá resolvendo as coisas dele da rua ele tá aqui em casa, até mesmo se eu estiver lá na minha loja trabalhando ele fica aqui jogando, dormindo, como se tivéssemos algum compromisso. Ele faz compras, manda mistura pra minha casa, compra as coisas que ele gosta e manda também. Semana passada, ele mandou uma caixa cheia de frutas, uma cesta cheia de biscoito, chocolate, um monte de besteiras, porque se deixar ele come só besteira todo dia, pior que criança. E eu gosto disso. Gosto da presença, da preocupação, da forma com que ele me acolhe mesmo na ausência. Só que essa semana ele não tá aqui na favela. Foi pra uma das favelas do Cobra, resolver uma treta séria lá. O Cobra não pode sair daqui porque é procurado. E o Matheus é quem desce por ele. A gente já brigou por isso. Já surtamos um com o outro. Ele sabe que eu odeio quando ele some e não dá satisfação. E agora ele tá bloqueado no meu w******p faz três dias. Porque me mandaram uma foto dele no baile. Com uma p*****a. No maior rolo. Eu não sei quem tirou, mas me mandaram. E ali, minha cabeça virou. Eu sei que não tenho direito de cobrar. Ele também não tem direito de me cobrar. Mas ele ainda quis justificar porque eu estava no pagode com a Amanda e cheio de mavambo por perto. E ele sabe que eu só fico no camarote mas isso nunca influenciou na minha postura, ele quis fazer foi cena porque sabe que fez merda. A gente não é nada… pelo menos na teoria. Mas na prática, é outra história. Porque o sentimento não entende essas regras. Porque quando você dorme e acorda com alguém, quando a pessoa invade seu espaço, sua rotina, sua vida, você começa a se importar. Mesmo sem querer. Mesmo sem admitir. E falar que não dói é mentira. Dói sim. Dói ver ele no baile com outra. Dói, e eu tô p**a. Porque falar que não tem direito é fácil. Mas mandar no coração… é outra guerra. A verdade é que eu sou mulher de sangue quente. Que fala mesmo. Que sente mesmo. Que cobra, que explode, que ama também. Eu não vim do interior pra viver meia vida. Se for pra viver, que seja por inteiro. E se o Matheus quiser continuar ao meu lado, ele vai ter que entender que comigo é assim. Eu sou intensidade. Sou verdade. Sou tudo… ou sou nada. Essa foi a nossa primeira briga, foi o primeiro vacilo, e eu não sei nem como vai ser quando ele voltar pra favela — atende o teu bofe ou eu mato ele, eu não aguento mais ele pedindo notícias tua — a Amanda se joga na mesa onde estávamos eu e a luna — satisfação, Amanda — ela estica a mão pra minha prima e eu engulo seco — satisfação Maya — minha prima se apresenta e eu já fico com dor de cabeça Toda essa confusão com a minha prima, minha família toda rachada, a merda que meu primo fez, o cobra que já não para de encarar a minha prima e eu não sei se é por ela ser carne nova ou não, a confusão da minha vida pessoal… olha, sinceramente, onde pede pra sair ? Porque até agora eu não acredito em tudo o que a minha prima tá passando por ganância do próprio irmão.
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