CAPITULO 26

1534 Words
O choque foi tão absoluto que Donna m*l percebeu quando deu um passo para trás, as costas encontrando a moldura fria da porta. Seu corpo estremeceu inteiro, como se de repente estivesse exposta ao ar da noite, nua, vulnerável. O coração batia frenético, espalhando pelo corpo uma onda quente de incredulidade e confusão. Ele a olhou, um franzir leve no cenho, um resquício de preocupação contido por décadas de controle emocional. Apenas colocou a travessa sobre a bancada com um cuidado mecânico, como se aquele gesto fosse mais seguro do que qualquer palavra precipitada. Em seguida, sem olhar diretamente para ela, abriu o armário, pegou dois pratos e dois talheres, enquanto Donna, num misto de hesitação e magnetismo, se aproximava um passo de cada vez. — Garfo ou colher? — perguntou ele, com a voz baixa, grave, e surpreendentemente serena. Donna se sentou na banqueta diante da bancada, as mãos apertando com força o tecido do robe, e respondeu, quase num sussurro: — Colher. Vittorio colocou um prato diante dela, com a colher, e logo depois a pasta de amendoim, como se aquela fosse uma refeição cotidiana, como se o abismo que os separava pudesse ser preenchido por um simples gesto familiar. — Quando… quando o senhor chegou? — a voz de Donna soou mais firme do que ela esperava. Vittorio, já se servindo do bolo de carne, respondeu casualmente: — Umas duas horas atrás. Estava esperando você acordar. Ela abriu a pasta de amendoim, sentindo o aroma agridoce invadir suas narinas, e por um breve segundo tudo nela queria mergulhar naquela memória reconfortante, mas as palavras que carregava no peito eram espinhos que precisava cravar. — Então o senhor já sabe… — disse, cortando um pedaço da fatia — que eu não fui aprovada. Vittorio serviu-se de uma fatia para ele também, sem pressa, e então afirmou com a mesma tranquilidade que podia usar para comentar a previsão da bolsa de valores: — Sempre sei de tudo. Donna respirou fundo, como quem prepara os pulmões para um mergulho profundo, e soltou, sem conseguir conter o amargor: — A mamãe me contou… que o senhor informou que eu não poderia voltar pra família. Vittorio mastigou lentamente um pedaço do bolo, como se cada fibra da carne fosse um fio do passado sendo tragado, e então, sem sombra de hesitação, confirmou: — É verdade. Ela apoiou os cotovelos na bancada, a colher pairando no ar, como se a resposta tivesse suspendido a sua capacidade de agir. — Permanentemente? Vittorio ergueu os olhos para ela, firmes e sem hesitação. — Sim. Houve um silêncio denso, quebrado apenas pelo som do metal da colher tocando a cerâmica do prato. — O que foi? — perguntou Vittorio, inclinando-se levemente. — Não era isso que você queria? Donna mordeu o lábio inferior, comprimindo as emoções que ameaçavam explodir, e finalmente, com uma honestidade crua, respondeu: — Não. Ele ergueu uma sobrancelha, sem surpresa, apenas constatando o óbvio. — Uma pena — murmurou, pegando outro pedaço de bolo — mas você não pode ter o melhor dos dois mundos. Donna soltou um suspiro, a voz quebrando enquanto confessava: — Agora eu não tenho nenhum. Nada. Estou arruinada! Aposto que está feliz com isso. Vittorio sorriu, quase paternal, mastigando mais um pedaço antes de responder, com a tranquilidade de quem está seguro do que diz: — Não estou feliz com a sua ruína, Donna. Ela inclinou-se, encarando-o com uma raiva contida. — Claro que está! — acusou, a voz embargando — Está feliz, me vendo… assim, fracassada. Vittorio colocou calmamente a colher sobre o prato e a encarou, os olhos escuros fixos nela. — Não diga besteira. Você não está arruinada. Donna soltou uma risada amarga. — Caso não tenha notado, eu não tenho emprego, fui recusada na universidade, e não tenho qualquer perspectiva de futuro. Ele inclinou-se para frente, apoiando os antebraços na bancada, e então, com um sorriso quase imperceptível, respondeu: — Você tem emprego. É garçonete. Ela revirou os olhos, bufando: — O senhor entendeu o que eu quis dizer. Vittorio sorriu mais abertamente, o que fez Donna bufar ainda mais alto. — Tá vendo? Tá rindo de mim. De novo. Por quê? Ele não respondeu de imediato, apenas a observou com um olhar que parecia atravessá-la até a infância, até aquele tempo em que o mundo dela girava em torno de perguntas muito mais simples. — Só estou me lembrando… — murmurou, inclinando-se para pegar mais um pedaço de bolo — da primeira vez em que comemos meatloaf com pasta de amendoim juntos. Donna arqueou uma sobrancelha, a colher parada no ar. — Eu me lembro… — respondeu lentamente — A gente comeu aqui mesmo, nessa cozinha. Eu tinha uns oito anos… tinha acabado de assistir O Poderoso Chefão, mesmo você tendo proibido. Vittorio sorriu, negando com a cabeça. — Não. Aquela não foi a primeira vez. Ela o encarou, confusa. — Não? Ele balançou a cabeça. — Não. Você tinha uns seis anos. Sua mãe tinha acabado de se separar de John Smith. Vocês duas foram pro meu apartamento… Donna ficou pensativa, os olhos fixos no vazio, tentando resgatar imagens daquela época, mas, por algum motivo, muita coisa parecia apagada. — Sinto muito… eu não me lembro. Vittorio deu de ombros, com a mesma serenidade. — Tudo bem. Eu me lembro pelos dois. Donna ergueu o olhar lentamente, encontrando o dele. — Então…? Ele sorriu, nostálgico. — Foi a primeira vez que fiz esse prato pra você… e a primeira vez em que olhei pra você… como minha filha. A filha por quem eu rezei muito… antes de poder chamar de filha. As palavras atingiram Donna com força, como uma onda quebrando contra as rochas do orgulho. Ela apertou a colher com mais força, e, com a voz abafada pela emoção, murmurou: — Se vai fazer aquele discurso sobre como um Amorielle não desiste… por favor, não. Vittorio soltou uma risada baixa, sacudindo a cabeça. — Não estou falando sobre ser Amorielle. Estou falando de você. Da minha filha. De como, desde a primeira vez, se mostrou determinada… sabia o que queria. Corajosa. Donna o encarou, absorvendo cada palavra. — Você… acha mesmo isso? Ele assentiu, com convicção. — Claro. E isso — continuou ele — você não puxou de mim. Puxou da sua mãe. Donna arqueou as sobrancelhas, surpresa. — Sério? Vittorio sorriu. — Todos dizem, até sua mãe, que você é igual a mim. Mas a verdade é que você tem muito mais da Ellis do que as pessoas imaginam. E tem coisas que são só suas. Exclusivas. E quando te vi ali, com seis anos, comendo aquele prato, vi minha vida inteira fazer sentido. Donna apertou os lábios, lutando contra o choro. — Então por que não me deixa voltar pra família? Por que não me deixa provar meu valor? — Porque se eu aceitasse... — Vittorio fez uma pausa, os olhos duros suavizados por um peso que parecia maior que ele. — Eu nunca me perdoaria por te empurrar para esse mundo. Nunca. — Mas eu gosto de fazer parte. — Eu sei. Você é o Michael Corleone. Mas não pode ser. Não na Cosa Nostra. A não ser que se casasse com alguém de outra família. Camorra, por exemplo. — Eu jamais faria isso. — Eu sei. E agradeço por você ser assim. Por ter escolhido outro caminho. Donna esfregou o rosto, contendo a raiva, a dor, a saudade. — Não pareceu… meses atrás. Quando você ficou irado… e me expulsou. Vittorio suspirou, baixando o olhar. — Eu sei. Fui c***l. Mas esses meses me fizeram entender. Você tirou um fardo de mim quando escolheu mudar de nome, tentar a faculdade. Agora... agora eu posso só te amar. Como pai. E isso é tudo que eu quero. Donna respirou fundo, o peito doendo. — Então… é isso? Eu não posso voltar? Vittorio negou com a cabeça. — Não. Ela sorriu, amarga. — E também não posso ir pros Estados Unidos… fazer a faculdade. Ele a encarou, erguendo uma sobrancelha. — Quem disse que não? — A NYU. Fui recusada. Vittorio sorriu de canto. — Sim… mas pro Juris Doctor. Donna o encarou, surpresa. — Sim… Ele inclinou-se um pouco mais. — Você sabe que eles têm o Master of Laws… um programa de LL.M. em Direito Internacional? Donna assentiu, confusa. — Eu sei… até pensei em me inscrever… mas… Vittorio se levantou, foi até o forno e abriu lentamente. De dentro, retirou um envelope grosso, timbrado, com o brasão da NYU. Papel de alta gramatura, adornado com uma fita roxa e um selo dourado. Voltou até a bancada e colocou diante de Donna. Ela ficou imóvel, em estado de choque. — É tradição nos Estados Unidos enviarem o Acceptance Packet físico — explicou ele. Donna olhou para o envelope endereçado a ela. O nome “Donna Smith” escrito com letras elegantes. Um selo internacional. Ela passou os dedos trêmulos sobre a superfície lisa. Vittorio se apoiou na bancada e, com um sorriso contido, disse apenas: — Abre. E, por um instante, o tempo congelou naquela cozinha, entre o aroma quente do meatloaf e o futuro embalado em papel timbrado.
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