As luzes da mansão se acenderam automaticamente assim que o carro atravessou os portões de ferro forjado. A noite parecia mais densa ali dentro, envolta por aquela propriedade silenciosa que, durante anos, fora refúgio e prisão, lar e labirinto.
Donna saiu do carro em silêncio. Não esperou que Rocco abrisse a porta. Estava cansada demais. O cascalho estalou sob seus pés enquanto caminhava com Ellis até a entrada. A mãe lançou um olhar preocupado, mas nada disse. Às vezes, o silêncio era o maior consolo.
Quando entraram, a mansão estava aquecida e iluminada, mas nada daquilo penetrava o frio que se instalara por dentro.
Donna subiu as escadas devagar, como quem carrega um peso que não se vê. Passou pelo longo corredor familiar, parou diante da porta do quarto e entrou sem acender a luz. O quarto cheirava a lavanda e madeira antiga. Era espaçoso, elegante, com detalhes dourados e cortinas pesadas que balançavam levemente com a corrente de ar. Mas ela não o via como um refúgio — não hoje.
Fechou a porta atrás de si e ficou ali por um instante, as costas encostadas na madeira. Só então percebeu como seus ombros doíam. Como seu corpo inteiro parecia exausto.
Começou a tirar o uniforme escuro que usava desde cedo. Primeiro o blazer, depois a blusa branca que já estava amassada, a saia que prendeu com raiva no zíper. Largou tudo sobre a poltrona. Ficou só de lingerie diante do espelho, olhando para si mesma como se quisesse reconhecer alguma coisa — qualquer coisa — que ainda lhe restasse.
Mas havia apenas uma jovem de olhos inchados, com olheiras fundas e o coração despedaçado.
Entrou no banheiro e ligou o chuveiro. O vapor começou a subir quase imediatamente, preenchendo o ambiente com uma névoa reconfortante. Tirou o resto da roupa e entrou sob a água quente. Assim que o jato tocou sua pele, uma nova onda de lágrimas desceu, silenciosa. Não chorava mais como antes, não era desespero — era cansaço. Frustração.
A água escorria pelos seus cabelos, ombros, costas, levando embora a maquiagem borrada, a tensão acumulada, mas não a dor.
"Eles disseram não."
Ela encostou a testa na parede de mármore e fechou os olhos.
"Por que eu achei que seria diferente?"
"Por que eu pensei que podia simplesmente recomeçar, como se nada tivesse acontecido? Como se o meu sobrenome fosse o problema? Como se bastasse ser boa?"
Ficou ali por longos minutos, até a água começar a esfriar. Só então se moveu. Envolveu-se na toalha felpuda e voltou para o quarto. Vestiu um pijama confortável de algodão— uma calça clara e uma camiseta larga, com estampa de uma banda antiga que ela m*l ouvia mais —, o cabelo ainda úmido escorrendo pelas costas. Não teve energia para secá-lo.
Desceu as escadas devagar, com a alma pesada. Os degraus pareciam mais longos que o normal.
Da sala de jantar, já se ouvia o som de talheres e vozes baixas. Quando chegou à porta, viu a cena que tanto conhecia — a mesa grande, o lustre aceso, a comida fumegante nas travessas de porcelana. Ellis estava sentada na ponta, servindo vinho em sua taça. Marco e Jason conversavam baixinho entre si, e Jake, sempre mais observador, olhava em direção à porta — esperando.
Assim que a viu, abriu um sorriso.
— Aí está você. — Jake se endireitou. — E então? Já saiu o resultado?
Donna congelou por um segundo. O coração deu um salto involuntário. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Ellis falou, sem tirar os olhos da taça:
— Ainda não.
Jake franziu o cenho, confuso.
— Mas você não tinha dito que saía hoje?
— Pode ter atrasado — disse Ellis, com uma naturalidade impecável. — Às vezes o sistema da universidade demora a atualizar.
Donna permaneceu em silêncio. Sentou-se devagar entre os irmãos, evitando olhares. Marco serviu-lhe um pouco de massa, e Jason empurrou o cesto de pães em sua direção.
— Você parece cansada — comentou Marco, comendo despreocupadamente.
— É — respondeu ela, sem olhar para ninguém. — O dia foi longo.
Jason a observou de esguelha, como se captasse algo que os outros não viam. Mas preferiu não insistir.
O jantar seguiu, pontuado por conversas triviais. Marco falou sobre o carro que gostaria de ganhar em seu aniversário de 18 anos. Jason comentou sobre os planos que tinha para o verão. Algo sobre a Toscana. Ellis sorria e interagia, mas lançava olhares furtivos para Donna, avaliando a fragilidade da filha como quem cuida de uma porcelana rachada.
Jake era o único que permanecia inquieto. Olhava para Donna de tempos em tempos, claramente sentindo que algo estava fora de lugar.
Quando os pratos começaram a esvaziar e o vinho foi servido pela segunda vez, Donna murmurou:
— Eu acho que vou subir.
— Quer sobremesa? — perguntou Ellis, já se levantando.
— Não... Obrigada.
Atravessou a sala em silêncio. Quando passou pela porta, ouviu Jake comentar com voz baixa:
— Ela não está bem.
Ellis respondeu em um sussurro que só Jake ouviu:
— Dê tempo a ela.
Donna subiu as escadas novamente, sentindo o olhar dos irmãos queimando suas costas.
No quarto, fechou a porta com cuidado e encostou a testa na madeira. Respirou fundo.
Então, finalmente, murmurou para si mesma:
— E agora?
***
A noite envolvia a mansão em um manto espesso de silêncio. A lua filtrava-se timidamente pelas cortinas translúcidas do quarto de Donna, desenhando padrões prateados sobre o piso de madeira polida e os lençóis amassados que a cobriam. Ela dormia profundamente, mergulhada num sono espesso e sem sonhos, quando de repente... o cheiro.
Tão sutil no início que parecia um truque da mente adormecida, mas logo foi se tornando mais nítido, mais real. Donna franziu o cenho, mexendo-se sob os lençóis, as narinas dilatando-se automaticamente ao captar aquele aroma familiar, tão familiar que seu peito se contraiu sem que ela soubesse por quê.
Seu corpo despertou antes da mente, puxando-a do torpor. Abriu os olhos devagar, os cílios úmidos piscando algumas vezes, ajustando-se à penumbra do quarto. Virou a cabeça sobre o travesseiro e inspirou fundo.
Aquele cheiro…
O coração acelerou de um jeito estranho, confuso. Era um cheiro de infância. De tardes preguiçosas depois da escola, de risadas abafadas na cozinha, de colo, de proteção. De casa. De amor.
Ela se ergueu lentamente, apoiando as mãos na cama, os músculos ainda pesados de sono. O aroma era inconfundível: carne assada com aquele toque adocicado e salgado da pasta de amendoim, um prato improvável e, ao mesmo tempo, perfeito.
Donna inspirou novamente, quase com urgência, como se temesse que o aroma pudesse desaparecer. Fechou os olhos por um segundo, tentando se lembrar da última vez que o sentira. Quando? Há quanto tempo? Já não conseguia medir. A infância parecia tão distante agora, quase como outra vida.
Mas ela já sabia. Sabia exatamente de onde vinha aquele cheiro, como se uma força invisível a chamasse, conduzindo-a, suave e inevitável.
Deslizou as pernas para fora da cama, sentindo o frio do piso contra a pele quente. Ajustou o pijama de algodão , depois pegou o robe pendurado na poltrona ao lado da cama e o vestiu, atando-o lentamente na cintura.
Saiu do quarto, empurrando a porta com suavidade. O corredor estava silencioso, as luzes discretas embutidas no rodapé criando uma trilha pálida até a escadaria. O aroma era mais forte agora, quase palpável, invadindo seus pulmões e aquecendo suas entranhas.
O estômago reclamou com um ronco surdo, concordando que aquela fome esquecida precisava, sim, ser alimentada.
Desceu as escadas de mármore com passos lentos, as mãos deslizando pelo corrimão frio e liso, enquanto seus pensamentos ziguezagueavam entre a confusão do sono e a certeza silenciosa: só podia ser sua mãe. Só podia ser Ellis.
Quem mais, senão ela, faria meatloaf com pasta de amendoim àquela hora da noite?
O aroma parecia envolvê-la, como braços invisíveis que a conduziam, como uma trilha olfativa até a cozinha. Já conseguia ouvir o leve tilintar de utensílios, o ruído abafado de uma travessa sendo arrastada sobre a bancada de mármore.
Caminhou pelo corredor revestido com boiseries, os quadros familiares pendurados nas paredes, e empurrou a porta basculante da cozinha com suavidade, já preparando-se para encontrar Ellis, talvez de avental, com o cabelo preso em um coque desleixado, cantarolando alguma música francesa.
Mas, assim que cruzou o umbral, o mundo pareceu parar.
Não era Ellis quem estava lá.
Donna ficou estática, os pés cravados no chão de ladrilhos claros. O aroma denso e reconfortante que a guiara até ali ainda preenchia o ambiente, mas, diante de si, o quadro era completamente outro.
Um homem, de costas para ela, movimentava-se com uma naturalidade desconcertante, como se pertencesse àquela cozinha há anos. Vestia um terno escuro impecável, contrastando com o ambiente doméstico e aconchegante. A camisa branca, levemente aberta no colarinho, e as mangas arregaçadas até os antebraços fortes revelavam um homem que, apesar da idade, exibia um físico robusto, sólido, como uma rocha que o tempo se esforçava — mas ainda falhava — em desgastar.
Os cabelos, escuros como carvão, já estavam tomados por fios grisalhos que brilhavam sob a luz amarela das luminárias pendentes. Havia algo inegavelmente imponente naquela figura: a postura reta, o modo preciso com que manejava a travessa quente, os movimentos silenciosos, sem pressa, como quem dominava até o mais trivial dos gestos.
Então ele se virou.
Os olhos, tão familiares e ao mesmo tempo tão distantes, encontraram os dela por um segundo antes que ele abrisse a boca.
— Olá… Michael.
Donna não respondeu. Não conseguiu. Sua respiração falhou, o peito subiu e desceu com dificuldade enquanto o cérebro tentava — em vão — processar o que via.
Vittorio.
Seu pai.
Ali.
Na cozinha.
A menos de três metros de distância dela, segurando a travessa fumegante de meatloaf com pasta de amendoim como se fosse a coisa mais normal do mundo.