"Dear Donna Smith,
Thank you for your application to New York University…"
A leitura seguiu com os olhos varrendo rapidamente cada linha. Mas então, em letras quase cruéis, veio a sentença:
“…we regret to inform you that we are unable to offer you admission at this time.”
O mundo parou.
Donna ficou imóvel, encarando a tela.
Negada.
Ela foi negada.
A pressão nos olhos começou como uma ardência discreta. Ela desligou a tela, trancando o celular com um gesto brusco, e saiu sem dizer nada a ninguém.
O céu já escurecia quando ela chegou até o banco próximo ao lago. Sentou-se ali, o frio da madeira atravessando sua calça jeans, o ar cortante de Como queimando os pulmões. As mãos apertaram o celular no colo com força, e uma lágrima teimosa escorreu.
— Que merda — sussurrou.
Todo o esforço, toda a rebeldia, os planos escondidos, os sonhos alimentados às escondidas. Ela trocara de nome, enfrentara o pai, mentido para a família — por isso.
Por uma chance. E nem isso teve.
“Talvez meu pai estivesse certo”, pensou. “Talvez eu não seja feita para fugir desse mundo. Talvez eu só seja… a filha do Don Amorielle.”
Mas era essa a pior parte.
Ela não queria aceitar que só lhe restava isso.
Levantou-se com um suspiro profundo, enxugando as lágrimas com raiva. Andou devagar até a beira do lago, os sapatos afundando levemente na terra úmida. Parou a poucos passos da água, encarando o vazio ondulado à sua frente.
"E se?"
E se tivesse escolhido diferente? E se tivesse ficado em Roma, seguido o caminho que todos esperavam dela? E se nunca tivesse ousado tentar ser outra coisa?
As ondas batiam cada vez com mais força, como se respondessem à sua angústia.
E se…
O toque insistente do celular cortou seu devaneio como uma lâmina. Ela fechou os olhos, respirou fundo e, com uma lentidão exasperada, voltou ao banco, pegando o aparelho sem olhar o nome. Mas, assim que virou a tela, lá estava: “Mãe”. O peito apertou ainda mais. Hesitou por um segundo, mas atendeu.
— Alô? — sua voz saiu mais rouca do que esperava.
— Donna, onde você está? — a voz firme de Ellis do outro lado, mas havia uma nota de preocupação que Donna reconheceu de imediato. — Estou no café, te esperando, mas me disseram que você já tinha saído.
Donna mordeu o lábio inferior, olhando para o lago, como se a resposta estivesse escondida naquelas águas frias.
— Estou... perto do lago — disse, a voz baixa.
Houve um breve silêncio do outro lado, então Ellis respondeu, sem hesitação:
— Estou indo até aí.
O clique seco encerrou a chamada, e Donna ficou parada, imóvel, com o celular ainda próximo à orelha, como se, assim, pudesse atrasar um pouco mais o inevitável confronto. Sentou-se novamente, puxando o casaco mais para perto do corpo, tentando conter o tremor que já não sabia se era causado pelo frio ou pelo desespero.
Minutos depois, ouviu o som familiar dos saltos de Ellis se aproximando sobre a calçada de pedra. Não precisava virar-se para saber que era ela. Conhecia aquele passo, aquela presença, como conhecia a si mesma. Ainda assim, manteve os olhos presos ao lago, incapaz de encará-la.
Ellis parou ao seu lado, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco preto, o rosto parcialmente coberto pelos cabelos revoltos pelo vento.
— O que está fazendo aqui? — perguntou, a voz mais suave do que Donna esperava.
Donna respirou fundo, sem desviar o olhar da água.
— Recebi o e-mail da NYU.
Ellis franziu levemente o cenho, aproximando-se um pouco mais, agora tensa, como se as palavras seguintes pudessem quebrá-la.
— E…? — perguntou, ansiosa.
Donna enfim virou o rosto, encarando a mãe com olhos marejados, mas agora secos pela exaustão de tanto chorar.
— Fui recusada.
O silêncio que se seguiu pareceu durar uma eternidade, embora não tenha passado de alguns segundos. Ellis fechou os olhos por um breve momento, soltando um suspiro contido.
— Oh, Donna…
Foi o suficiente para que as lágrimas voltassem a escapar, dessa vez silenciosas, discretas, mas doídas como nunca. Donna levou as mãos ao rosto, escondendo-se atrás delas como uma criança, enquanto sua voz embargada murmurava:
— Lá se foi o meu plano B…
Ellis se sentou ao lado da filha, passando um braço ao redor dos ombros dela, puxando-a para perto, com aquele gesto protetor e firme que sempre teve.
— Não, claro que não — disse, acariciando levemente os cabelos da filha. — Ainda há outras alternativas.
Donna riu, amarga, afastando-se um pouco do abraço para encará-la com os olhos brilhando de frustração.
— Quais, mãe? Voltar pra família? Fingir que esses meses não existiram? Que eu não tentei ser mais do que aquilo que esperam de mim?
Ellis respirou fundo, desviando o olhar por um segundo, como se buscasse as palavras certas.
— Não — disse, enfim, com firmeza. — Na verdade, essa não pode mais ser cogitada.
Donna franziu o cenho, confusa.
— Como assim?
Ellis a fitou com um olhar pesado, cheio de coisas que não dizia há meses.
— Quando estive em Milão… conversei com Vittorio.
O nome do pai fez Donna estremecer, como sempre fazia. Apertou ainda mais os braços ao redor do corpo, como se quisesse se proteger.
— E…?
— Ele deixou bem claro — continuou Ellis, com a voz firme, mas com o olhar embaciado pela tristeza — que a sua saída da família é… permanente.
As palavras atingiram Donna como um soco no estômago. Ela se levantou de repente, andando até a beira do lago novamente, como se o movimento pudesse afastar a realidade que acabara de ouvir. Depois, virou-se, atordoada.
— O que quer dizer com isso? Que… que não posso mais voltar? Nem se eu quiser?
Ellis assentiu, com um movimento quase imperceptível de cabeça.
— Não, Donna. Não pode.
Donna se sentou bruscamente na beirada do banco, o olhar perdido, os braços pendendo ao lado do corpo, completamente desamparada.
— E agora? — perguntou, num fio de voz. — O que eu vou fazer?
Ellis se aproximou, ajoelhando-se à frente dela, segurando suas mãos geladas entre as próprias, tentando transmitir alguma segurança.
— Você vai encontrar outra alternativa. Sempre há outra alternativa.
Donna soltou uma risada incrédula, afastando-se das mãos da mãe e se levantando de novo, começando a andar de um lado para o outro, nervosa.
— Você não entende! Eu larguei tudo por essa oportunidade! Eu joguei fora meu futuro como advogada em Roma, meu lugar na família… e pra quê? Pra ser rejeitada. Pra descobrir que não sou suficiente nem para entrar numa faculdade!
Ellis se levantou também, caminhando até ela e segurando-a pelos ombros, firme, fazendo com que parasse e a encarasse.
— Não diga isso! Você é capaz, Donna. Só que, infelizmente, havia muita concorrência. Isso não é um reflexo do seu valor. É só… a vida.
Donna respirou fundo, os olhos brilhando de raiva e frustração.
— E se eu não encontrar outra alternativa? E se… se for isso? O fim?
Ellis negou com a cabeça, decidida.
— Não será. Você pode abrir um escritório de advocacia, começar por conta própria.
Donna soltou um riso irônico, passando as mãos pelo rosto.
— Em Pedesina? Quem me contrataria? Ainda mais agora… quando todos souberem que eu não faço mais parte da família.
Ellis ergueu o queixo da filha suavemente com uma das mãos, forçando-a a olhá-la nos olhos.
— Em qualquer lugar. Você pode ir a qualquer lugar, recomeçar.
Donna fechou os olhos com força, como se quisesse apagar o mundo ao seu redor.
— Em qualquer lugar vai ser assim, mãe. — As lágrimas voltaram. — Eles vão saber. Sempre sabem. E não vai ter nada que eu possa fazer.
Ellis a puxou para um abraço apertado, envolvendo-a completamente, como fazia quando Donna era pequena e acordava de um pesadelo.
— Chega… — murmurou, com carinho, mas firmeza. — Você não é assim, Donna. Não se entrega. Nós vamos encontrar um jeito. Eu estou com você. Vai dar tudo certo.
Donna deixou-se ficar ali, nos braços da mãe, sentindo pela primeira vez em dias que talvez não estivesse sozinha. Mas mesmo assim, murmurou, hesitante:
— Mas…
— Mas nada.
Ellis se afastou só o suficiente para olhar nos olhos da filha.
— Agora nós vamos voltar pra casa. Você vai tomar um banho bem quente. Vamos jantar. Depois você vai descansar. Amanhã, aí sim, a gente se preocupa com o futuro. Combinado?
Donna respirou fundo, assentindo, sem ter forças para discutir mais.
— Tá… — respondeu, num fio de voz.
As duas se afastaram do lago em silêncio, passo a passo, a terra úmida rangendo sob os sapatos. O carro de Ellis estava estacionado próximo, e Rocco as esperava, de pé, segurando a porta aberta.
Donna parou por um instante e olhou para trás, para o lago escuro que começava a se acalmar com a brisa mais leve da noite. Entrou no carro ao lado da mãe, e Rocco fechou a porta com cuidado. O veículo deslizou de volta pela estrada, deixando o lago e as lágrimas para trás — por enquanto.