CAPITULO 23

1151 Words
O céu ainda estava tingido de um azul profundo quando Donna se postou diante do espelho de seu quarto. O sol ainda não havia nascido por completo, e uma penumbra azulada tomava conta do ambiente. As mãos prenderam com precisão os cabelos em seu r**o de cavalo usual. Um gesto rotineiro, quase mecânico. Ela ajeitou o avental do Vecchio Fico, passou um pouco de batom nos lábios e respirou fundo. Mais um dia. Mais um turno. Mais um silêncio vindo da NYU. A tela do celular, abandonada na mesa de canto ao lado da cama, não exibia notificações. Nenhum e-mail. Nenhuma resposta. Nada. Donna engoliu seco, apoiando as mãos na beirada da cômoda enquanto sustentava o próprio reflexo com o olhar. Talvez fosse hora de aceitar o que negava há semanas. Talvez fosse hora de voltar para família. Fingir que aqueles meses não tinham existido. Apenas um lapso de rebeldia tardia. Um surto de liberdade que ela poderia enterrar sob o peso do sobrenome Amorielle. Ela sabia como seria. Voltar, encarar o olhar inquisidor de Vittorio, o desapontamento contido de Ellis — mesmo que a mãe fingisse neutralidade. Bastaria ela dizer que entendeu o recado, que o mundo fora da família era duro demais, e que queria fazer parte daquilo de novo. Que aceitava, até mesmo, se casar com algum filho de um dos chefes da Cosa Nostra. Criar filhos. Ser uma boa esposa. Uma matriarca como sua mãe. Mas, por mais que aquilo fosse seguro… por mais que fosse familiar, ela não queria. Pelo menos não agora. Ela fechou os olhos, balançou a cabeça e pegou a bolsa. Desceu as escadas da mansão com pressa. Precisava estar pronta, ou ouviria sermão de Ellis. E mesmo tendo escolhido seguir outro caminho, ainda respeitava demais a mãe para deixá-la esperando. Do lado de fora, o ar da manhã era frio e úmido. Ela enfiou as mãos nos bolsos do casaco, os ombros tensos. Ficou parada à frente da mansão, observando os minutos passarem no relógio. Quinze minutos. Vinte. Meia hora. Estranho. Ellis era pontual. Rigorosamente. Quase obsessiva. Do tipo que chegava antes para ter certeza de que o relógio não a enganaria. Algo estava fora do lugar. Donna olhou novamente para o relógio, franzindo a testa. Foi então que os portões da mansão se abriram, e o carro preto da família deslizou até o meio-fio. Rocco desceu do banco do motorista e abriu a porta traseira. Ellis saiu, e Donna precisou de um segundo olhar para acreditar no que via. A mãe estava... diferente. O sobretudo escuro m*l escondia o vestido amassado por baixo, os cabelos, geralmente presos ou perfeitamente alinhados, estavam soltos, rebeldes e ondulados, como se tivesse passado a noite inteira acordada. Havia um leve cheiro de bebida misturado ao perfume forte que Ellis sempre usava, uma fragrância imponente, mas naquela manhã parecia ligeiramente descomposta, como ela. — Mamma... você tá bem? — Donna perguntou, cruzando os braços e inclinando a cabeça, avaliando cada detalhe. Ellis soltou um suspiro e, com aquele sorriso que usava quando não queria dar explicações, respondeu seca: — Ótima. Donna arqueou a sobrancelha ainda mais, quase se divertindo com o ineditismo da situação. — Foi pra balada, é? — provocou, com um meio sorriso malicioso. Ellis revirou os olhos, endireitando o casaco como quem tentava recobrar a dignidade. — Me respeita, Donna! Onde já se viu... balada? Donna riu baixo, balançando a cabeça. — Tá bom, tá bom... mas que você veio de algum lugar, veio. O cheiro de bebida, cabelo bagunçado, roupa amassada... tá tudo te entregando, mãe. Ellis passou por ela sem dar muita atenção, parando apenas para lançar um olhar afiado. — Bom trabalho, Donna. Vai logo antes de se atrasar. Donna riu, levantando as mãos em rendição. — Não vai me levar? Ellis parou um segundo, hesitou e então fez um gesto para Rocco. — É melhor ele te levar hoje. Donna ergueu novamente a sobrancelha, surpresa pela quebra na rotina. — Tudo bem... — respondeu, um pouco desconfiada, enquanto se virava para entrar no carro. Enquanto se acomodava no banco traseiro, viu a mãe subindo as escadas da mansão, o sobretudo esvoaçando atrás dela como uma capa. Assim que Rocco assumiu o volante, Donna não resistiu: — Sabe onde a minha mãe passou a noite? Rocco, sempre discreto, manteve os olhos na estrada. — Só posso te dizer que ela foi ao Park Hyatt Milano. Donna arregalou os olhos, a boca se abrindo num "O" perfeito. — Park Hyatt Milano? — repetiu, incrédula, mas já começando a ligar os pontos. — Sim — respondeu Rocco, impassível, como se estivesse comentando sobre o clima. Donna deixou um sorriso malicioso escapar, se recostando no banco, cruzando as pernas. — Park Hyatt… em Milão? Rocco assentiu, discreto. — O hotel onde Don Vittorio está hospedado... Donna não precisou de mais pistas. Abriu um sorriso largo, encostou no banco e soltou um suspiro satisfeito. — Eles são tão endgames… Rocco, franzindo a testa, lançou um olhar pelo retrovisor. — End o quê? Donna sorriu ainda mais, fazendo um gesto despreocupado com a mão. — Deixa pra lá... O que importa é que é bom saber que os meus pais estão... juntos. O carro seguiu pelas ruas silenciosas até pegar a estrada em direção a Como. Donna deixou a cabeça recostar no vidro frio, vendo a paisagem se transformar à medida que se afastavam da cidade. Não pensava mais na família, nos arranjos matrimoniais, na ideia sufocante de voltar para a segurança opressiva daquele mundo. Naquele momento, o pensamento flutuava entre a imagem rebelde e encantadora de sua mãe, saindo pela manhã daquele hotel de luxo, e a ideia quase romântica de que talvez, no final, o amor deles fosse mesmo uma força invencível. *** Donna passou o dia mergulhada no trabalho. As bandejas cheias, os pedidos gritando da cozinha, os clientes exigentes — tudo a mantinha ocupada, focada, viva. Era uma garçonete eficiente, discreta, mas os colegas de trabalho gostavam dela. Ela sorria o suficiente para parecer acessível, mas mantinha aquela reserva de quem tem um mundo inteiro escondido atrás dos olhos. O tempo passou e, quando finalmente o turno terminou, o sol já começava a desaparecer atrás das montanhas que emolduravam o lago. Donna se despediu do pessoal com acenos rápidos, pegou a bolsa e, enquanto caminhava pela rua tranquila, ouviu o apito característico do celular. Parou, puxou o aparelho e viu, na tela, uma notificação que fez seu coração parar por um segundo: [1 nova mensagem] — Subject: LL.M. Program Admission Decision Ficou imóvel, ali, no meio da calçada, com o lago ao fundo e as luzes douradas do entardecer se refletindo nas águas calmas. O barulho distante de risadas de turistas se misturava ao som da notificação que ainda ecoava na sua cabeça. Engoliu seco, o polegar hesitante sobre a tela. Inspirou fundo, uma, duas vezes, e então... abriu o e-mail.
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