O sorriso de Vittorio desapareceu. Ele ficou alguns segundos em silêncio, apenas encarando a filha. Então, curvou levemente os lábios, desta vez com admiração.
— Parabéns. — disse ele, com um toque seco — Esse tempo com Don Roberto te fez muito bem. Você está mais… esperta.
— Eu não vou voltar atrás — ela disse, com firmeza.
Vittorio cruzou os braços.
— Por que não?
— Porque não quero — ela respondeu.
Ele ergueu o queixo.
— Isso não é resposta.
— A verdade é que nenhuma resposta seria suficiente para o senhor.
— Tente — ele disse.
Donna respirou fundo.
— Tudo bem. O senhor pode não gostar, mas… trabalhar no escritório de Don Roberto não foi como eu esperava.
— A vida nunca é como esperamos — retrucou Vittorio, já irritado. — Mas isso não justifica você largar o escritório mais prestigiado de Roma do nada. Então vai fazer o que é certo. Vai voltar lá, dizer que se precipitou, que ainda estava mexida com a adrenalina de Andaluzia, e continuar seu trabalho.
— Pois é, Donna — disse Vittorio, começando a andar de um lado para o outro — A vida raramente é como se espera. Isso não justifica você largar o escritório mais prestigiado de Roma assim, do nada. Você vai voltar lá, vai dizer ao Don Roberto que não pensou direito, que estava mexida com a adrenalina de Andaluzia, com tudo o que passou… e vai continuar seu trabalho.
— Por que tem que ser assim?
— Porque sim.
— E se eu quiser outra coisa? Minha felicidade não significa nada pra você?
— Ah… — ele riu com descrença — Agora estamos falando de felicidade?
— Sim — ela respondeu, com os olhos fixos nele.
— Então me diga o que te deixou infeliz no escritório. O que aconteceu lá?
— Nada — respondeu ela rapidamente.
Vittorio se endireitou e se aproximou, o tom da voz assumindo um peso perigoso.
— Alguém assediou você?
— Não.
— Foi Don Roberto? Ele investiu em você? Assediou? Te obrigou a…
Vittorio interrompeu-se no meio da frase e, num rompante, virou-se para o telefone sobre a mesa. Discou com rapidez.
— Se ele ousou tocar em um fio de cabelo seu, juro por Deus que...
— Não! — disse Donna, avançando para tentar tirar o telefone de suas mãos. — Ele não fez nada!
Do outro lado da linha, a voz grave de Rocco surgiu:
— Sim, chefe?
Vittorio olhou para Donna, o dedo pairando sobre o gancho do telefone.
— Tem certeza?
Ela assentiu, engolindo em seco.
— Tenho. Não foi o Roberto. Nem o escritório, exatamente.
— Nada — disse Vittorio a Rocco, ainda encarando a filha — Esquece.
Vittorio desligou o telefone com força.
— Então me explica.
— Não tenho que explicar minhas decisões — disse Donna.
— Tem, sim — respondeu Vittorio, os olhos faiscando. — Sou seu pai. Quero saber qual é o verdadeiro motivo.
Donna hesitou. O silêncio foi cortado apenas pelo leve zumbido do relógio no canto da sala.
— Não tem um motivo específico. Só… só não quero mais aquilo.
Vittorio se aproximou dela, os olhos faiscando.
— Como não tem motivo? Você sempre quis fazer Direito. Tirou as melhores notas. Eu consegui pra você uma vaga na universidade mais difícil do país. Consegui, cobrando favores, que Don Roberto te aceitasse naquele escritório! E agora, do nada, você joga tudo fora?
— Esse é o motivo.
— O quê?
— Você.
O silêncio tomou conta do ambiente. Vittorio piscou lentamente, sem acreditar.
— Eu?
— Sim. O motivo de eu sair de lá… é você. Tudo foi você. A faculdade, o curso, o estágio, o emprego. Não tinha nada meu ali. Eu nem sei mais onde termina a Donna e onde começa o Vittorio Amorielle.
Vittorio se afastou, furioso.
— Que absurdo. Eu fiz o que qualquer pai faria: lutar pelo futuro da filha!
— Mas você não lutou pelo meu futuro! Lutou pelo seu projeto de filha perfeita! Você me empurrou pra um caminho que eu nem sabia se queria. Você moldou tudo, e eu… eu só obedeci.
— Porque é isso que se faz pela família! — rosnou Vittorio.
— Eu não quero fazer pela família! — gritou Donna.
O grito dela ecoou pelas paredes do escritório, rompendo o véu de formalidade que sempre pairava entre os dois. Vittorio ficou imóvel, encarando a filha como se estivesse diante de uma estranha.
— Eu não quero ser a peça de um jogo que eu não escolhi — continuou ela, a voz embargada. — Eu matei três homens em Andaluzia. Eu fiz tudo certo, deixei a cena impecável, voltei e encarei Lorenzo Falco como se eu tivesse nascido pra isso. Mas sabe o que eu senti?
Vittorio não respondeu. Os olhos dele estavam fixos nela, injetados de tensão.
— Nada. Nem orgulho, nem remorso. Só um vazio. E percebi que era isso que o senhor queria de mim. Que eu me tornasse alguém como o senhor. Fria. Calculista. Pronta pra matar e seguir para a próxima reunião. Mas eu não quero ser essa pessoa.
Ela passou as mãos pelos cabelos, frustrada.
— Eu quero escolher. Quero construir alguma coisa que seja minha, não só uma extensão do império da família Amorielle.
Vittorio respirou fundo, então se aproximou devagar. Parou diante dela e disse com voz baixa, porém dura:
— Eu te dei o mundo.
— Não, pai — respondeu Donna, com os olhos marejados. — O senhor me colocou dentro do seu.
Ele balançou a cabeça, virou-se, deu alguns passos até a janela. Por um momento, ficou em silêncio. O sol da manhã batia sobre sua silhueta, recortando a imponência de seu corpo rígido.
— Sabe o que mais me incomoda? — disse ele, enfim. — Que você está dizendo isso como se eu tivesse te impedido de viver. Como se não tivesse feito tudo por você.
Donna cruzou os braços.
— O problema é que o senhor fez tudo. Nunca me deixou fazer nada por mim mesma e eu quero fazer por mim! Pela pessoa que eu sou! — ela continuou, com os olhos marejados. — Eu não aguento mais carregar esse nome como se eu tivesse que ser uma versão menor de você! Eu sou Donna. Não sou você.
Vittorio a encarava, calado. Os olhos brilhavam, mas não de lágrimas. De fúria contida. De frustração. De incredulidade.
— Então… — ele disse por fim, com a voz baixa — Você vai jogar tudo fora? Toda sua trajetória? Vai cuspir na mão que te guiou?
— Eu não estou cuspindo em nada. Só estou… me libertando.
Vittorio virou-se, as mãos apoiadas na mesa, e permaneceu assim por alguns segundos. Quando falou de novo, sua voz era mais baixa, como se tivesse sido esvaziado por dentro.
— Foi por isso, então... — murmurou, sem se virar — que você se inscreveu na NYU School of Law com o nome de Donna Smith?