A casa estava silenciosa. Não o silêncio da noite — mas aquele outro, mais espesso, feito de pensamentos represados e horas longas demais. Lá fora, o céu sobre Pedesina tingia-se de um azul quase metálico. As nuvens repousavam preguiçosas sobre os Alpes, como se o tempo também tivesse decidido parar.
Donna estava sentada na varanda lateral da mansão, com os pés descalços apoiados na pedra fria e o cabelo preso em um coque desalinhado. Sobre o colo, um caderno de anotações abertas em folhas rabiscadas com letras em inglês — algumas, apagadas com força demais.
Ela relia uma frase que havia escrito e reescrito nas últimas três noites:
“Do we choose justice, or does justice choose us?”
Fechou o caderno. Jogou a caneta sobre a mesa com um suspiro seco.
Na bandeja ao lado, o celular estava mudo. Sem e-mails da NYU. Nenhum "status update" no portal de aplicação. Nenhuma confirmação, nenhuma rejeição. Apenas… nada.
Desde que enviara sua candidatura como Donna Smith, usando a certidão de nascimento original, ela vinha controlando cada movimento como se estivesse num julgamento sem defesa. Cada escolha meticulosamente calculada. Cada ação, uma tentativa de provar algo — para si mesma, para o mundo, para a mãe. Para o pai, talvez.
Ela fizera tudo o que Ellis exigira. Começara pela documentação. Com a certidão original de Seattle em mãos, passou semanas enfrentando repartições públicas e consulados. Conseguiu passaporte, identidade, seguro de saúde e, com alguma persistência, até o visto americano — ainda que pendente da aprovação universitária. Abrira conta em banco americano com o nome Smith, sem qualquer transação associada aos Amorielle. Só isso já teria sido um feito considerável para alguém com sua origem. Mas Donna foi além.
Continuou trabalhando no Vecchio Fico, como garçonete, sob o olhar gentil do dono, Paolo, que nunca perguntou sobre seu sobrenome. E, nos intervalos, ela estudava. Lia To Kill a Mockingbird com um lápis na mão, sublinhando trechos com olhos ardendo de sono. Ouvia podcasts jurídicos enquanto lavava pratos ou limpava mesas. Assistia séries como The Good Wife, Suits, Law & Order, não como entretenimento, mas como estudo. Aprendera jargões, entendera procedimentos, ensaiara possíveis entrevistas.
Mas aquela pergunta insistia em desafiá-la:
Do we choose justice, or does justice choose us?
A resposta fugia entre os dedos como poeira. Nem como Donna Smith, nem como Donna Amorielle, ela conseguia encontrar a resposta.
Fechou os olhos, respirou fundo e, por um instante, sentiu-se flutuar naquele silêncio denso. Até que escutou passos vindo do interior da casa. Ela não abriu os olhos. Sabia quem era. O som dos saltos baixos, do ritmo contido, da leve hesitação antes de cada pisada… era sua mãe.
Abriu os olhos lentamente e viu Ellis se aproximar com uma garrafa de vinho nas mãos. Depositou-a sobre a mesa com delicadeza, acompanhada de duas taças. Sem dizer uma palavra, sentou-se na cadeira ao lado.
Donna pegou a garrafa, examinou o rótulo e soltou uma risada baixa.
— Você pegou das boas — comentou, surpresa.
— É uma ocasião especial — disse Ellis, olhando para o céu. — O silêncio está quase poético hoje.
Donna serviu as taças. Entregou uma à mãe e segurou a outra, os dedos firmes na haste.
— Obrigada — disse Ellis.
Beberam em silêncio por um tempo.
— E então? — perguntou Ellis, sem rodeios.
Donna balançou a cabeça.
— Nada ainda.
Ellis bebeu mais um gole.
— É assim mesmo — respondeu Ellis, com um suspiro.
— Será?
— As universidades americanas adoram torturar seus candidatos. É parte do processo, uma iniciação. Eles tiram toda a esperança primeiro, depois, talvez, recompensem. Ou então te jogam direto na realidade.
Donna deu um gole mais longo.
— Acho que estão escolhendo a segunda opção pra mim.
— Não joga a toalha antes do resultado, Donna.
— Às vezes a falta de resposta já é uma resposta.
— Eles sempre respondem. Seja pra aprovar, seja pra recusar. E se não responderam ainda, é porque ainda não decidiram. Ou porque você está na lista de espera, o que, convenhamos, já é muito.
Mais silêncio. Um gole. Outro.
— Ainda assim — continuou Ellis — é bom pensar em um plano B.
Donna virou-se para a mãe com uma expressão cansada.
— Esse era o plano B, mãe.
— Então pensa num plano C.
— O plano C é voltar pro papai, implorar perdão e reassumir o nome Amorielle.
Ellis fez uma careta e balançou a cabeça.
— Não. Isso é plano Z. O último da lista.
— Alguma sugestão?
— Por que você não tenta outras universidades com rolling admissions? Tipo Pace, Fordham, St. John's. Ou então faz um associate degree de dois anos e depois se transfere pra NYU. Muita gente faz isso.
Donna riu, amarga.
— Caramba. Tá mesmo feia a coisa pro meu lado, hein?
Ellis sorriu, mas era um sorriso cansado.
— Não pro seu. Pro meu.
Donna a encarou, desconfiada.
— Papai deu notícias?
Ellis terminou a taça de uma só vez, fazendo a filha arregalar os olhos.
— Nenhuma — respondeu.
Donna serviu mais vinho para a mãe.
— Mãe… você tentou falar com ele?
— Nem morta.
— Mãe...
Ellis a encarou.
— O que foi? Estou defendendo o seu futuro, Donna. E pra isso, não posso correr atrás do seu pai. Ele que entenda, no meu silêncio, que errou. Que você tem um bom argumento. E que está determinada.
— Ele não vai entender nada disso. E você sabe.
Ellis deu um meio sorriso.
— Eu conheço o seu pai. Uma hora ele vai ceder.
— Isso é loucura. Já faz meses que vocês não se falam!
Ellis deu de ombros.
— O que são alguns meses pra quem já ficou sete anos sem se falar? Eu aguento.
Donna apoiou os cotovelos nos joelhos.
— Mas naquela época vocês estavam separados. Eu não quero ser a responsável por isso agora. Não quero ser o motivo...
— Você não é responsável por nada. A responsabilidade é dele.
Donna suspirou. Depois, a encarou e disse:
— Dona Ellis Amorielle — disse Donna, com teatralidade. — Por favor, fale com Don Vittorio. Por mim. Vocês são endgame.
Ellis franziu a testa.
— End o quê?
— Endgame. Termo de série. É quando um casal é pra vida toda. Alma gêmea. E vocês dois são isso. Não estraguem isso por minha causa.
Ellis sorriu, com os olhos distantes, como se algo tivesse se aquecido dentro dela.
— Endgame, hein?
— Exatamente.
Donna se espreguiçou, pegando suas coisas.
— Eu vou me deitar. Amanhã tenho turno cedo no Vecchio Fico.
Ellis beijou o rosto da filha.
— Boa noite, minha endgame girl.
Donna sorriu ao sair, mas antes olhou para a garrafa ainda quase cheia e a taça vazia da mãe.
— Vai com calma aí, hein?
— Relaxa. Não sou italiana o suficiente pra terminar essa garrafa sozinha.
Donna riu e entrou. Ellis ficou.
Ficou ali, sozinha, encarando o céu. A taça girando levemente entre os dedos. O vinho escorrendo em espirais lentas. Pensou em Vittorio. Nos olhos dele. No jeito com que ele dizia o nome dela, Ellis, como se fosse uma promessa.
Talvez Donna tivesse razão. Talvez... talvez fossem mesmo endgame.
Ou talvez fosse tarde demais.
Mas não essa noite.
Essa noite, ela permitiu a si mesma acreditar, e sussurrou para si:
— Endgame…
Virou a taça. E ficou ali, saboreando o silêncio — e um nome.
Vittorio.