Lorena Narrando
Acordei com o estômago roncando alto, parecia até que tinha um bicho dentro de mim pedindo comida. A fome era tanta que já tava doendo. Antes mesmo de abrir os olhos, me mexi na cama e senti aquela superfície gostosa, macia, uma coberta leve, quentinha. Nada a ver com o meu edredom cheio de bolinhas, e a minha cama que dava uma leve balançada junto comigo. Abri os olhos devagar e, no mesmo instante, a lembrança caiu como um balde de água gelada: eu tava na casa do meu comprador.
Sentei na cama, pronta pra começar a xingar mentalmente o Clóvis por ter me colocado nessa roubada, mas nem tive tempo. A porta do quarto se abriu de repente, tão brusca que cheguei a dar um pequeno pulo. Levantei a cabeça devagar e encarei ele.
Esse homem, só de olhar, meu corpo inteiro se arrepia. Na aula de Filosofia, o professor sempre falava sobre o poder da mente, de como certas pessoas manipulam e controlam o psicológico dos outros sem precisar levantar um dedo. Pois bem, eu tenho certeza que esse cara gosta exatamente disso, mexer com a cabeça da gente, oprimir sem precisar abrir a boca. E era exatamente isso que ele tava fazendo comigo naquele momento.
Ele ficou ali, me olhando como se pudesse ler cada pensamento meu, como se quisesse me desmontar só com o olhar. colocou uma sacola em cima de um puff perto da cama, tivemos um breve diálogo, Onde ele manda e eu obedeço. Mas não sem antes discutir, porque sou dessas, Claro que eu fiquei com medo, meu corpo tremia por dentro. Mas por fora eu nem piscava, depois de dar a última Ordem ele saiu, fechando a porta com a mesma frieza com que entrou.
Olhei pra sacola desconfiada, mas a fome falou mais alto. Levantei e fui ver. Lá dentro tinha uma calça jeans simples, uma camiseta branca e um par de tênis.
— Ótimo — murmurei sozinha — pelo menos não vou precisar ficar andando com a mesma roupa de ontem.
Peguei as peças e fui pro banheiro. Liguei o chuveiro e deixei a água quente cair nas minhas costas, tentando relaxar. Só que a sensação de estar num lugar estranho não saía de mim. Me vesti rápido calça jeans direto na pele, porque o gênio que arrumou a sacola nem lembrou de colocar uma calcinha.
— Sabe nem fazer as coisas direito — resmunguei, olhando meu reflexo no espelho antes de sair.
Abri a porta do quarto e fui descendo. A casa era enorme, e eu não tinha ideia de onde ficava a sala de jantar. Passei por um corredor com quadros caros, um tapete grosso e aquele cheiro de casa rica que não é cheiro de comida, mas de produto de limpeza caro.
No meio do caminho, ouvi uma voz grave atrás de mim.
— Procurando alguma coisa?
Me virei devagar e lá estava um homem, encostado na parede, braços cruzados.
— A sala de jantar. — respondi seca.
Ele arqueou uma sobrancelha, como se tivesse se divertindo com a minha pressa.
— É por aqui. — disse, apontando para esquerda.
Segui, porque não tinha muita escolha. A cada passo, eu sentia como se estivesse entrando mais fundo no território dele. Quando cheguei, a mesa tava posta com café, pães, frutas, parecia coisa de novela.
— Senta. — ordenou, apontando a cadeira.
Me sentei, tentando disfarçar a fome, mas quando ele colocou um prato na minha frente, a barriga roncou alto de novo.
Comecei a comer, igual uma draga, tudo tão bom. E ele me encarando, eu só pensava em poder comer, algo que não fosse pão.
— A partir de hoje, você vai conhecer cada canto dessa casa. Vai ter tudo que precisar, menos a saída.
Respirei fundo, precisa pesar o clima já no café da manhã.
— Por quanto tempo? — Perguntei.
— Pelo tempo que eu quiser.
Babaca, se achando meu Dono, pode até ser. Mas eu não vou facilitar, ele disse que tem muita paciência, vamos ver.
Quando terminei de comer, larguei o guardanapo na mesa e me recostei na cadeira. Ele, que não tirou os olhos de mim um segundo sequer, soltou a frase como quem dá uma ordem simples:
— Você vai em algumas lojas e vai se comportar.
Fiquei calada. Não por obediência, mas porque eu queria entender qual era a dele. Só balancei a cabeça de leve, como se estivesse aceitando.
Minutos depois, estávamos no carro. Ele dirigia sem pressa, e eu só observava a cidade passando pela janela. Quando parou, percebi que estávamos em frente a um shopping gigante, daqueles cheios de vitrines de vidro e marcas que a gente só vê em propaganda.
Ele não entrou. Um homem abriu a porta do carro e, com um gesto curto de cabeça, O homem era Alto, sério, sem trocar uma palavra comigo. Foi ele quem me conduziu pra dentro.
Na primeira loja, uma vendedora já estava me esperando. Era como se ela soubesse exatamente quem eu era e o que tinha que fazer: não disse absolutamente nada, só me mostrava a variedade de peças. Vestidos, calças, blusas, casacos, todos impecáveis. Eu ia separando tudo o que achava bonito, sem pensar duas vezes.
Da loja de roupas, fomos direto pra de sapatos. Mais uma vez, a mesma situação: uma atendente exclusiva, muda, apenas apresentando opções. Salto alto, rasteirinha, botas, tênis tudo de grife. Peguei vários pares, sem nem me preocupar se combinavam com o que já tinha escolhido antes.
Na loja de acessórios, a cena se repetiu. Bolsas, cintos, óculos escuros. Tudo caro, tudo de luxo. Meus olhos brilhavam, não porque eu fosse apaixonada por consumo, mas porque eu queria ver até onde vai o Cavalheirismo do Cavaleiro.
Até na joalheria tinha alguém me esperando. Colares delicados, brincos cravejados, anéis discretos e outros bem chamativos. Escolhi de tudo um pouco. Na farmácia, aproveitei e peguei shampoo, condicionador, cremes e alguns produtos de cuidado pessoal que eu adorava, mesmo sabendo que não tinha nada disso na casa do Clóvis.
A última parada foi a loja de lingerie. O homem que me acompanhava não entrou, ficou do lado de fora me esperando. Lá dentro, a atendente trouxe peças de renda, seda, cores vibrantes e neutras. Se eu disser que escolhi pouca coisa, tô mentindo descaradamente.
E se disser que pensei no preço, também tô mentindo. Escolhi muito. Tudo de marca, tudo no mais alto padrão. Não importava se eu nunca tivesse usado nada daquele nível antes, agora, eu queria ver a reação dele quando a conta chegar.
Enquanto saía da loja carregada de sacolas, só pensei: Se tô pagando uma dívida sem estar devendo, agora ele terá um motivo para me cobrar.