Quando a Escuridão se aproxima P1

2660 Words
DANTE EMPURROU as pesadas portas duplas na pressa da corrida. Não refinado em modos e obstinado em sua busca, fez a estrutura sólida se escancarar em um estrondo pesado e estalar seco das dobradiças resvaladas, entretanto, elas logo voltaram a sua posição original e se trancaram como se possuíssem um mecanismo que as movia de acordo com o lhes fora designado. Concluiu nesse diminuto intervalo entre irromper adentro e magicamente ser convidado a permanecer ali, que não seria tão simples quanto deduziu que fosse. A breve cacofonia ressoou pelo amplo e silencioso espaço de maneira que diferenciava cada ruído com audição apurada, ciente de que, se houvesse alguém oculto, captaria sem grandes inconvenientes. Na verdade, conseguia sentir com muita clareza uma presença infiltrada pela área. Andou pelo ambiente que mais se assemelhava a um cemitério de antiguidades abandonado há décadas, quase estagnado no tempo e ausente de vida. Continuando a inspeção, a sua frente se estendia incontáveis prateleiras abarrotadas de livros de diversos tamanhos e cores ocupando cada metro quadrado e dispostos estrategicamente em círculos, em uma quantidade muito maior do que se lembrava de ter visto em qualquer outro lugar antes — e livros e ele não combinavam em nenhuma escala possível. Projetando uma fusão de cores, a iluminação miraculosa banhando a biblioteca provinha da vidraça circular acima, uma clarabóia com multifacetas. Algumas tapeçarias decoravam as paredes com desenhos de alguma mitologia ou inspirações de contos de fadas e coleções do gênero, ornamentadas pelo que, devido ao alto grau de conservação, notou ser ouro bordado. As figuras não se conectavam e a única que reconheceu era de seu pai em uma aspecto de "cavaleiro brandindo a espada". No teto e nas partes livres tinham também imagens um pouco mais fáceis de avaliar, dentre as pessoas representadas, uma familiar lhe chamou atenção: o rosto era do quadro que vira com Diva: o nomeado Alexander. Uma coincidência deveras estranha. Dante parou a breve exploração do perímetro se certificando das coordenadas pelo cartão de Amara e escutando passadas rápidas por entre as estantes. Como se o intruso quisesse escapar de espectadores curiosos, embora seu deslocamento afobado denunciasse sua localização e o transformasse em um alvo fácil para ser emboscado. O caçador prosseguiu sua peregrinação catalogando mentalmente a distância entre ele e seu, não tão discreto, perseguidor imaginando se teria que ser mais direto na abordagem ou fingir alienação. Estacionou justo onde se encontrava uma pedestal dourado que contrastava com o restante do local e, ainda assim, pertencer e compor bem o espaço. Cruzou o braço aguardando a manifestação do ser com uma postura mais acessível. — Podemos concordar que isso não é a melhor forma de recepção. — proferiu olhando por cima do ombro com um fino sorriso. — Lamento pelos meus modos, jovem. Dante riu internamente. Jovem já deixou de ser há bastante tempo, mas não expôs seu pensamento espirituoso. — É a primeira vez em muitos anos que tenho uma visita. — o senhor idoso, cuja as rugas delicadas se evidenciava por trás de seus óculos, se encaminhou até o altar adornado de símbolos em ouro. — Seja bem vindo, sou Alban, cuido dessa biblioteca. Deseja alguma coisa, rapaz? — Dante. Esse é o meu nome. — viu os olhos de Alban se arregalar com a descoberta. — Filho de Sparda. Eu já ouvi muitos boatos a seu respeito, não imaginaria que o encontraria. Há algo que posso fazer por você? Dante mirou a pintura de Alexander, ignorando o comentário sobre sua reputação, e decidiu apostar suas fichas naquela informação para ver os possíveis louros. — Quem é ele? — meneou a cabeça displicente para a obra. — Digamos que temos assuntos pendentes. — Alexander Lockhard, o fundador desse extraordinário lugar. Se não for muito invasivo de minha parte, como você conhece Alexander? Dante ponderou, entretanto não iria florear com uma resposta muito delicada. — Conheço uma pessoa que tem contato com ele. O fantasma dele nesse caso. — deu de ombros como se falar aquilo em voz alta soasse ainda mais absurdo do que repetir mentalmente. De fato, alcançava um novo patamar em termos de loucura. — Oh… Entendo. — a pausa de Alban se prolongou. — Alexander é uma pessoa emblemática. Uma pena ele ter falecido em tão tenra idade. — Ele parece ser famoso também. — varreu toda extensão da parede com um Alexander imponente gravado. — Certamente! — Alban concordou, ajustando o óculos sobre seu nariz. — E a pessoa que tem contato com ele, é algum médium? — Não. É uma pessoa normal. Ou quase. — Oh… Então... — desviou o olhar, vagando até o suporte dourado no centro do altar. — Você quer algo relacionado… — Na verdade, eu quero saber o que ele é. — Dante cortou, se aproximando do bibliotecário. — Sem essa informação não vou conseguir ajudar a pessoa ligada a ele. — Você parece muito interessado. — sorriu, deslizando os dedos pelas bordas do móvel. — A pessoa que vai ajudar deve ser muito importante pra você. Dante recordou de quando levaram Diva ferida com eles, não conseguia parar de pensar nela e em seu crítico estado. A raiva ardeu em seu peito se misturando com a frustração… E uma súbita pressão no ar. Sabia o que significava. — Eu vou buscar o que procura, Dante. Enquanto isso, fique à vontade para ficar e descansar se necessário. Dito isso, Alban seguiu para uma sala de difícil acesso em uma localidade particularmente oculta pelas tapeçarias. Bibliotecas não eram seu ambiente relaxante favorito, contudo, aproveitou para se recostar contra um pilar refletindo sobre sua busca — sobretudo por salvar Diva. Não soube quanto tempo passou ali, m*l notou as horas antes de entrar em estado de pseudo sono revivendo a conversa com Eryna. Dante deslizou as mãos pelas madeixas claras para afastá-las do seu foco de visão ligeiramente entorpecido pela sonolência. O tédio de um lugar cheio de livros drenou sua energia, pensou descontraído. — Aqui está você, rapaz. — Alban respirou fundo. — Por um momento achei que tinha ido embora. — Eu tenho um trabalho e um acordo pra cumprir, vovô. — se espreguiçou com o corpo vagamente mais travado pela má postura. — Não ia embora sem conseguir algo. — Venha, tenho que te mostrar o que encontrei. — pediu e o caçador foi em seu encalço. Alban parecia quase uma entidade religiosa por seu comportamento mais formal e a roupa semelhante a um hábito cujas cores branco e cinza predominavam. — Mais livros? Esse lugar está cheio deles. — comentou sarcasticamente ao ver os livros que Alban lhe trouxe. — Esses são os que tenho a respeito de Alexander. Alexander, o Grande? Arqueou a sobrancelha ao folhear um dos livros e vislumbrar a alcunha. Não podia evitar a curiosidade se aflorando, pois tendo conhecimento da identidade do fantasma, melhores as chances de descobrir o que Diva estaria relacionada. Alban ficou em um profundo silêncio meditativo. — Salve a garota, rapaz. Dante franziu o cenho, genuinamente intrigado. O velho homem o fitou com melancolia, abrindo um sorriso cúmplice. — Você é mais imprevisível do que aparenta, vovô. — o mestiço sacou Rebellion ao constatar que seus instintos não o enganaram. — E vocês demoraram bastante para dar as caras, esperavam um convite formal? A horda de demônios rompeu os vidros da claraboia, sedentos. Alban tomou a frente de Dante que se surpreendeu com tal atitude. — Você precisa ir, rapaz. — convocando um círculo mágico, o senhor se pôs a repelir as criaturas das trevas. — Proteja a criança que Alexander salvou! — Que cena. — a risada cortou entre os ruidosos ganidos selvagens dos demônios carniceiros. — Tive sorte de chegar bem no clímax. Ace aplaudiu sarcasticamente. — O que você acha… — Dante imitou Ace mecanicamente quando, para seu desgosto, viu uma silhueta ao lado dele que se revelou ser Diva. — Minha cara? — Diva! — elevou a voz para atrair sua atenção. Entretanto, ela sequer o olhava. Não somente isso, a jovem não demonstrava nenhum tipo de reação com sua presença. Desde que a conheceu, notava o quão inquieta ela ficava sempre que estavam perto e que, não importa o que fazia, sentia sua contemplação muda sobre si. Agora, parecia estranha e alheia ao mundo que a cercava. — Ela não vai te escutar. — Alban informou. — O símbolo na testa dela significa que ela está sob controle. Brilhando em um vermelho doentio, a marca emitia uma pulsação perversa e pesada. — Vá, Dante! — Alban vociferou. Os dedos tamborilaram pelo material lustroso do parapeito do segundo andar e a satisfação transbordava pelos contornos da face de Ace. Ele não aparentava nenhum traço de tédio genuíno tampouco deboche, era uma máscara endurecida encenada — um júbilo visceral e estranhamente enjoativo. Empoleirado ao seu lado, uma sombra imóvel, um homem com uma fisionomia vazia cujos olhos sugavam qualquer um que ousava os mirar diretamente em um breu interminável e distorcido e… Recordou onde o vira antes, o maldito que levará Diva. Não podia se desvencilhar de Diva que não se mexia e continuava perigosamente próxima de Ace, completamente fora de qualquer noção cognitiva comum. Estando tão longe dela, a pequena e inanimada jovem, fisicamente fora de seu alcance, não conseguia realizar nenhum avanço sem pôr o pescoço dela em risco e jogá-la no limiar da imprudência traria os piores resultados. Abandonando a conduta passiva, Ace tocou os ombros de Diva com uma i********e muito além do que supostamente os irmãos compartilhariam, mas ficou mais óbvio que tudo se tratava de um teatro arquitetado, uma fachada que ele inventou. Cônscio de toda situação, não tinha como não desaprovar a petulância descarada do adversário. Com os lábios rentes a orelha dela, sussurrou algo que serviu como um operador de comando, pois assim que se afastou Diva saltou graciosamente para o térreo com o leve vestido branco e disparou para atacá-los. Alban reforçou o campo de força que recebeu um dano considerável pelos golpes repetidos. A sólida estrutura que a mantinha cativa do lado oposto perdia o vigor. — Vá! Agora você não pode fazer nada! Não houve mais nada após isso. A luz engoliu tudo. ××× À DERIVA EM UM mar escuro de ondas tímidas, pensamentos mais ativos brotaram do mais profundo de minha mente atordoada, remendos de memórias que se costuravam à medida que as imagens clarearam, fervilhando e induzindo a um despertar mais efetivo e abrupto. Minhas pálpebras pesavam e a ideia de forçá-las a cumprir seu propósito não agradava muito, não precisava abri-las para ter certeza da infindável escuridão que encobria tudo como um véu tenebroso e intimidante. As costas cravadas no piso de pedra polida não colaborava para nenhum nível possível de conforto, o pescoço travado e os braços incapazes de seguir comandos básicos de movimentos se mantinham rentes ao meu corpo que reclamava com a série de dores que se propagavam por cada célula em uma espécie de ressaca moral, m*l sabia onde elas começavam e onde terminavam — uma distorção da minha capacidade de distinguir a realidade. Vagando pelos domínios oníricos e flutuando sobre um campo além da consciência, vislumbrei vultos me rondando como criaturas amorfas até que se assentaram em formas mais nítidas e reconhecíveis. Tombando delicadamente a cabeça para o lado em um ângulo estranho e desconfortável, piscando em um frenesi ansioso e aturdido, observei uma menina se sentar no chão e brincar sozinha, usufruindo de seu período de entretenimento em sua própria companhia. De acordo com minha perspectiva de expectadora pouco confiável nas condições mais precárias emocional e psicologicamente, a pequena quase parecia solitária e dispersa em uma redoma que ela mesma construirá até… Ele chegar. Alexander agachou na altura da criança e pegou um papel nas mãos, sorrindo com o desenho com traços pouco simétricos e coloridos com uma variedade de cores quentes, com a exceção dos tons de roxo nos olhos. — O que é isso? — indicou a ilustração com o orgulho e afeto firmemente gravados em suas feições. Me apeguei a cena que se desenrolava com uma emoção peculiar aquecendo meu peito e a curiosidade avivada. A menina ergueu ligeiramente a cabeça, porém não pude identificá-la por estar de costas para mim. Ela usava um vestido azul claro e seus cabelos curtos eram de um castanho derretido como chocolate. — É um retrato seu. Você gostou? Alexander assentiu e afagou a cabeça da pequena. — Sempre me surpreende como consegue fazer coisas tão bonitas. — a voz dele soava tão carinhosa e encorajadora. — E por que está aqui sozinha? — Não tenho com quem brincar. — ouvi um suspiro por parte da menina. — Você é o único amigo que tenho… Meu melhor amigo! A tristeza se fez presente nos olhos púrpuras que outrora se imbuíam de ternura. O desfecho daquele delírio me tragava em uma espiral aterradora. — Diva…? Arquejei. Arregalando os olhos e com o coração batendo acelerado, pulsando em meus ouvidos em um badum ininterrupto. Todo o fôlego escapou de meus pulmões e respirava em arfadas superficiais e descompassadas enquanto restaurava minha energia. Era como se estivesse todo esse tempo submersa e alguém me tirou antes que me afogasse, salvando-me das garras cruéis de uma morte esquecível. O oxigênio entrava ardendo e a minha temperatura corporal diminuía tamanho o frio que se infiltrava pelas áreas cobertas pelas roupas. Meu cérebro processava com a capacidade reduzida, concentrando-me em normalizar as funções do corpo para que não tremesse tanto pela instabilidade climática quanto pelo choque que rastejou por minhas entranhas. — Ei, ei. Fique calma. Sou eu, o Alexander. — Uma voz gentil e preocupada me tranquilizou. Assim que foquei no dono dela, meus medos primitivos se evaporaram e minha respiração se estabilizou. As íris púrpuras faiscavam em inquietante e minuciosa inspeção para, quem sabe, determinar meu estado. — Alexander? — murmurei grogue. — Como se sente? — indagou apreensivo. — Cansada e congelando. — como se acionasse um interruptor, as últimas lembranças vieram à tona e tateei desesperadamente onde o ferimento deveria estar, encontrando nada. Nenhuma evidência de que, um dia, estivera lá. — Ace… Cadê ele? — Ele saiu faz um bom tempo. Praguejei mentalmente. Dante tinha razão em desconfiar de Ace no fim das contas. Ele estava de complô que o maluco que me atacou e me sequestraram. A pressão na cabeça oprimia o fluxo de pensamentos de modo que não tinha mais o alicerce da coerência e a racionalidade para orquestrar uma fuga, restando somente meus instintos e intuição como suporte. Rolei para uma posição menos vulnerável e, reunindo coragem, me levantei cambaleante. Não havia estabilidade em meus movimentos tampouco coordenação, andando vacilante, escoltada por Alexander, sem destino pela escuridão. Com passos lentos e cautelosos, me direcionei para a área onde uma luz frugal brilhava em uma tonalidade de azul cobalto. Apesar de meus sentidos estarem mais apurados que o normal, não evitou que me esbarrasse com algo invisível que me derrubou com um poderoso impacto repelidor. Não queria arriscar novamente, mas não tinha escolha se quisesse escapar. Estiquei as mãos e a descarga elétrica que respondeu ao meu toque me obrigou a recuar. — Ele colocou um selo. — Alexander analisou como a parede invisível vibrava com resistência a qualquer pulsão de poder. — E um pesado pelo visto. Novamente estendi a mão para a barreira para certificar sua durabilidade e força e, feito um agente repressor, me rechaçou ante minha audaciosa empreitada. Sentei desolada no chão, esfregando os olhos em um ato inútil de afugentar a estranha letargia que me domou, desarmando-me a ponto de não oferecer mais resistência. Respirei pausadamente, buscando um último recurso para escapar do cativeiro com a percepção nublada por uma névoa densa que se deslocava por ali. — Diva? — Estou com tanto sono, Alexander. — balbuciei sonolenta. — Resista! Diva! Diva! Gradativamente a voz de Alexander desvaneceu.
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