Quando a Escuridão se aproxima P2

2641 Words
Pisquei inúmeras vezes para adaptar meus olhos a luminosidade intensa após permanecer em trevas absolutas, um contraste peculiar aos eventos anteriores. O branco compunha uma gigantesca parcela do cenário estranhamente regido pela quietude, sendo apenas eu e uma extensão de claridade sutilmente incomoda. Esquadrinhei o local com urgência desejando que algo surgisse para esclarecer o devaneio — ou o que quer que seja isso — e me trouxesse de volta a realidade finalizando o pesadelo, porém nada apareceu. Solitária, perdida e desgarradoramente deslocada. Elevei a cabeça encarando o insondável céu que ganhava cores, um novo mundo que se formava a partir do nada feito uma tela em branco em processo de criação onde a tinta, outrora uma mancha sobre a superfície, se definia em silhuetas e imagens mais concretas. A brisa farfalhou pela curta vegetação que crescera aos meus pés. Um arrepio súbito percorreu meu corpo e, em um impulso tempestuoso, girei nos calcanhares para encontrar Dante de costas para mim exatamente como esperava — para compartilhar sua companhia e ter certeza que não estava só. O lendário Devil Hunter que, em boa parte da minha adolescência, permeou meus sonhos fantasiosos com toda sua graça informal e fascínio sedutor. Sua postura poderosa e a atmosfera nobre de um cavaleiro — demoníaco. Claro que seria ele. Meus lábios ressequidos se curvaram em um sorriso melancólico, externalizando meus mais íntimos sentimentos em um semblante devastado. Mas… Não era real. Não era o Dante. A aura gentil e acalentadora me envolveu como um cálido e reconfortante abraço de reencontro, quase poderia experimentar a plenitude das minhas emoções com o contato singelo. Seu nome ecoou pela minha garganta como um clamor desesperado enquanto meu coração batia rápido preenchido com carinho e admiração. Embora estivesse bloqueando a ideia em um intento de me manter à margem e longe de qualquer decepção amorosa e um possível coração partido, não permiti que o temor me paralisasse. Se essa fosse a única chance de estar com ele, depositaria minhas esperanças e segredos naquilo. Alheio ao meu impasse interno, Dante fitou-me por cima dos ombros com um sorriso charmoso e amigável, desconstruindo as fundações que restaram da fortaleza que a custo ergui para me resguardar de desenvolver sentimentos que depois não teria controle sobre. Esfreguei os olhos para não chorar igual uma criança inconsolável, mesmo que as lágrimas ocasionalmente borrassem minha visão e me obrigasse a repetir o gesto quase que constantemente. Queria brincar com a situação, rir dos meus batimentos cardíacos velozes que martelavam no peito, das palmas das mãos suando, das borboletas no estômago e de como minha mente só conseguia compreender que os sintomas que apresentava não vinham de um ataque de nervosismo, o que à princípio até realmente acreditei que fosse e que faria um pouco mais de sentido, e sim do inegável fato de que nutria um afeto pelo caçador e um nível maior que um elo de companheirismo reforçado com seu empenho em me auxiliar em meu problema dimensional. — Não está feliz em me ver? Encurtei a pequena distância que nos separava, contudo, sem coragem de ultrapassar seu espaço pessoal. Dante, para meu assombro, me aconchegou em seus braços com firmeza, tendo cuidado para manejar sua força sobrehumana e não me ferir com um esmagar bruto. Ele me refugiava em si como se eu fosse uma frágil peça de porcelana. Retribui o abraço trêmula e desconcertada, apreciando o perfume dele com deleite encantado. — Isso é um sonho? — murmurei o apertando com vontade, receando que o tempo para estarmos juntos terminasse em um piscar efêmero de olhos. — Devo considerar que isso significa que sonha muito comigo, doçura? Uma tímida risada irrompeu por mim. — Talvez. — Então me diga, doçura, isso parece um sonho pra você? Cerrei a mandíbula reprimindo a ânsia de chorar. — Não. — Como sou um homem de palavra e sendo parte do protocolo de negócios devo recordar que ainda me deve um encontro e uma pizza. — Dante gracejou jocosamente, seu tom carregado de provocação. — Você levou mesmo a sério essa bobagem? — Eu sempre levo. — havia uma chama azul queimando em seu olhar na qual prendeu minha atenção. Suas mãos descansavam sobre meus ombros, esfregando-os em um ritmo suave e acalentador. — Eu estou indo te buscar. Espere pela nossa pizza, Diva. Lentamente abri os olhos úmidos pelas lágrimas contidas e que, agora, deslizavam sem obstáculos pelas minhas bochechas rosadas. — Você está bem? — a infantil voz angustiada proferiu, atraindo de imediato minha atenção a uma criança prostrada ante a cama. Cama? — Estou. — respondi educadamente, enxugando o rosto. A garotinha usava um vestidinho rosa com babados delicados, os cabelos negros arrumados em uma trança e em seus braços segurava um ursinho remendado. Seu olhar pendia em um misto de curiosidade e constrangimento — o castanho brilhava em expectativa e se franziu intrigada. — Você acordou chorando. Teve um sonho r**m? Limpei os resquícios úmidos do rosto. — Não, um sonho bom. — Sonhos bons não fazem chorar. — argumentou com perspicácia. Analisei melhor meu entorno com os efeitos do torpor se diluindo em meu organismo e estranhei estar em um quarto considerando as circunstâncias. Dormir sob o mesmo teto que o inimigo parecia uma punição de um pecado cometido em alguma vida passada. A consciência daquilo, revendo minha situação de um ângulo menos pessimista, gerou uma perturbação interna da minha paz de espírito. Não satisfeita com meu azar, minha intuição me bombardeava de mau agouro reduzido em uma sentença aterradora: Algo r**m está para acontecer. Se fosse enumerar minhas desgraças, no topo da lista, estaria gravado em letras garrafais ser raptada e em cárcere privado. — Ei, quer ser minha amiga? — Inquiriu a menina lutando para subir na cama com o amigo felpudo em seus braços, me tirando de minhas lamentações internas. — Seria ótimo. — vivendo em um ambiente pesado, ter uma companhia tão fofa soava como um presente, um bálsamo. — E o que você está fazendo zanzando por aí? Ainda mais sozinha? — Minha irmã trabalha aqui. E não estou sozinha, tenho Bubu para me fazer companhia. — mexeu o bichinho de pelúcia como demonstração. — Nina! — alguém chamou com urgência. — Não incomode nossa convidada! — Não estou incomodando, né? — a nomeada Nina questionou com diversão. — Não mesmo. — intercedi por Nina. Com passos leves e elegantes, uma face familiar se aproximou. Nilin sorriu com amabilidade como se quisesse que minha recepção fosse o mais confortável possível. Ela estava com as madeixas soltas em delicados cachos que caiam em ondas pelos ombros e trajava um longo vestido azul-marinho, um avental amarrado na cintura fina. — Boa tarde, senhorita Diva! — cumprimentou fazendo uma reverência. — Espero que minha irmã não tenha te incomodado. — Não incomodou. Na verdade, gostei da companhia dela. Nina se aproximou, me entregando uma blusinha pequena para colocar no Bubu. — Como se sente? Deseja alguma coisa? — Ah… Bem, eu acho. — comecei atrapalhada. — Sério, não é muito a minha praia ter alguém me servindo. — Não se preocupe com detalhes e seja bem vinda a residência Clockwell. — Nilin puxou um carrinho, cheio de bandejas e aperitivos que pareciam incrivelmente apetitosos. — Trouxe seu lanche. — Muito obrigada, mas prefiro não comer. — honestamente estava faminta, meu estômago roncava baixinho implorando por uma generosa refeição, só não queria facilitar as coisas para Ace e me subjugar a sua vontade apelando para minhas necessidades físicas mais primordiais. — Tem certeza? — Sim, sim. Dispenso tudo que venha de Ace. — grunhi ressentida, fincando as unhas no lençol sob mim. Mais alterada e rancorosa do que deveria, fechei os olhos e meditei comigo mesma para reavaliar a situação e arfei por não ter visto Alexander. Ele é um fantasma, Ace não pode vê-lo, assegurei-me para não me apavorar com as mais mirabolantes teorias que minha mente imaginativa elaboraria para explicar seu sumiço. A luz se infiltrou pela grandiosa janela há poucos metros da cama e decidi investigar superficialmente a área, marchando com as pernas instáveis em sua locomoção. O frescor brandamente incutiu por mim se encarregando de expulsar a melancolia que inflava em meu peito. Nilin ostentava uma expressão empática e, ao mesmo tempo, muito confundida. Talvez para elas, provavelmente, Ace seria um homem de índole impecável e incorruptível, incapaz de cometer atos tão bárbaros quanto sequestro. No horizonte, o sol estava a pino no céu parcialmente encoberto por nuvens que passavam. Suspirei. — Dante… — sussurrei, pousando as mãos sobre meu peito. — Dante é seu namorado? — Nina inquiriu sorridente. — Você também chamou por ele quando estava dormindo. Meu rosto queimou. — Eu... Bem... — engasguei. — Não exatamente, é mais meu guardião… Alguém especial pra mim. Eu estou indo te buscar. Revivi o sonho com uma visão diferente, mais tencionada a crer que, se existia uma fagulha ainda que fraca, preservaria um pouco mais de fé de que tudo se resolveria. — Minha irmã ama o senhor Ace. — Nina confidenciou inocente e repentinamente. Virei para encarar uma Nilin tão vermelha quanto uma pimenta. — Nina! — Nilin repreendeu. — Isso não é algo para se contar. — O quê? — ela indagou confusa. Achava que tinha problemas complexos por, justamente, gostar de Dante e Nilin superou minhas expectativas nutrindo afeição por Ace. O cara parecia um poço profundo de indiferença e falta de tato, orgulhoso e impiedoso. Todos os aspectos negativos ele cultivava ativamente. Não querendo muito interferir em um assunto no qual não fazia parte da minha jurisdição, desviei minha atenção para o enorme jardim abaixo da varanda. Me apoiei no parapeito de mármore entalhada, contemplando a beleza surreal da vegetação bem cuidada e esplendorosa. Em minha inspeção, para meu desgosto, encontrei Ace caminhando pelas redondezas com a típica postura altiva de sempre, ocultando quase completamente seu caráter dúbio por trás de boa aparência. Nossos olhares se cruzaram por segundos, estes nos quais um frio devastou meu estômago. Ace me encarava fixamente com uma tórrida mistura de admiração pela nova aquisição, indubitável controle e frieza. Um sorriso felino iluminou suas feições enviando arrepios pavorosos pela minha espinha. Nina olhou por entre as brechas, curiosa pela ausência de ações de minha parte. — Boa tarde, Ace! — gritou animadamente. No princípio, achei que ele fosse ignorá-la, entretanto, para meu espanto, acenou para a garotinha com um sorriso mais dócil. — Boa tarde, Nina. — começou gentilmente, pisquei genuinamente pasma. — Boa tarde, Diva. Fechei a cara transmitindo, sem verbalizar uma única palavra, que não acreditava na imagem que ele tentava passar. Nunca conquistaria minha simpatia. — Nilin. — A fitei com uma repentina, porém, confiante curiosidade. — Que música era aquela que você cantava quando nos conhecemos? Os olhos dóceis de Nilin se arregalaram ligeiramente, um misto de assombro e constrangimento. — Tenho a impressão de ouvi-la as vezes desde que cheguei nesse mundo. A brisa rodopiou em meu entorno carregando o perfume do tapete de flores no jardim. Embora não tivesse decorado a letra, podia entoar a canção pelo pouco que fora reproduzida. — É uma música antiga de um conto de fadas que minha mãe costumava cantar pra mim quando era bem pequena. — um tímido sorriso desabrochou em seu rosto e um rosa tingiu suas bochechas. — O nome é "Canção do Herói". Minha mãe costumava dizer que sempre em um momento de necessidade, ao cantá-la, um herói seria invocado. A risada que ela deixou escapar era melodiosa. — Acho que se essa lenda for real… Estou bem longe de ser uma heroína. Três batidas leves ecoaram. Nina agitadamente abriu a porta e permitiu que Ace entrasse. — Espero não ter atrapalhado a confraternização. — engoli em seco com a falsa ternura que embebia suas palavras. — Podem me deixar a sós com nossa convidada? Não. Não. Não. Não. Meus pensamentos se embaralharam pelo pânico, torcendo para que uma das duas lesse o pânico através da minha linguagem corporal e que não saísse. Contrariando toda minha vontade, elas partiram cordialmente. Ace nada disse até garantir que os passos delas se distanciavam o suficiente para não ouvi-las mais. — Está gostando da hospedagem? — andou elegantemente até a varanda. — Desculpe ter lhe trazido tão rudemente de volta. Você não me deu escolha. — Seus lacaios quase me mataram! — gritei. — Lamento por esse imprevisto também. Como sangue borbulhando e a fúria consumindo meu ser, golpeei o rosto de Ace com toda potência que me fora conferida no surto de adrenalina. Com a cabeça virada pelo tapa, seu olhar doentiamente dócil se converteu em uma frieza sombria, estudando meu rosto com feições impossíveis de ler. — Já esperava esse tipo de reação. E você pretende fazer o que para mudar sua condição atual, huh? Chorar? Gritar? — Ele segurou meu braço para imobilizar-me antes que efetuasse mais um ataque. — Grite! Berre! Acha que isso vai te salvar? Acha que vai fazer aquele demônio vir correndo? Estremeci com a menção a Dante, algo que fora percebido prontamente por Ace. — Claro, não poderia ser diferente, não é? A humana enamorada de um demônio. Que comovente história de amor. — debochou com aspereza. — Acorde do seu conto de fadas, criança ingênua, ele não vai te resgatar. Ve? — estendeu os braços com visível arrogância. — Ele não está aqui. Você foi o entretenimento do momento para ele. Ou acredita que ele irá retribuir seus sentimentos? — Cala boca! — A verdade é dura, não é? — reprimi o soluço que ameaçava escapar. — Essa é a sua única casa. Neguei veemente com a cabeça. — Você ainda enxergará tudo com mais clareza e eu estou te libertando. — Me trancando a sete chaves do mundo? — vociferei com a garganta dolorida pelo demasiado esforço. — Que tipo de mente doente acha que isso vai ajudar? — Querida e doce irmãzinha… — murmurou roçando os dedos pela minha bochecha, então começou a rir sem afetação. — Creio que devo esclarecer certas… Pendências como cortesia. — ele caminhou pelo cômodo como se estivesse imerso em um monólogo complexo. — Não somos irmãos. Petrifiquei com seu transparente cinismo. — Digamos que usei um recurso mais tocante para os humanos. — sorriu convencido de seu êxito. — Talvez teria sido mais efetivo se aquele demônio não tivesse interferido. O alívio me engolfou por saber que não possuía relação com esse cara, porém incerta sobre qual seria o objetivo dele ao me relatar seu plano. — Você quer saber por que tenho certeza que ele não vai te salvar? Engoli em seco. — Seu demônio querido está morto. — disparei pra cima de Ace ao escutar tamanha infâmia. Ele pareceu satisfeito com meu surto e ainda mais por me atingir com um movimento sutil de sua mão. Não chegou a ser um ataque direto, mas foi uma pressão forte o bastante para me arremessar contra a parede. — Se conforme com esse fato. — Eu não acredito. Alguém como você nunca conseguiria matar Dante! Ace riu. — Talvez. — balançou a cabeça como se visse graça em minha explosão. — Você está bem confiante na capacidade do filho de Sparda e não vou te derrubar dessa ilusão. Uma forte e atordoante dor despontou do centro de minha cabeça e se espalhou impiedosamente. Nunca tinha experimentado algo tão esquisito. Como se todas as minhas preocupações e medos me dominassem com tudo, deixando-me tonta, uma vertigem incapacitante. A mesma sensação de antes se consolidou com a pressão dolorosa: algo r**m estava para acontecer. Agora, sem dúvida alguma. — Tenho planos para você, minha Diva — proferiu aproximando-se de mim. Olhei assustada. Depois disso, fui devorada pelas trevas. Uma, no qual não conseguia sair, não importa o quanto eu lutasse.
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