Olhos Vigilantes

2495 Words
A primeira coisa que fizemos quando chegamos fora cair na cama de tanto cansaço. Eu não estava muito exausta, aproveitei o longo trajeto e tirei um cochilo no carro — fora uma curta soneca, de qualquer forma. Dante, por outro lado, passou a noite em claro dirigindo, é natural que ele esteja dormindo para repor as energias. Deixei-o em paz. Afinal é merecido. Cada dia fico mais agradecida por ter Dante ao meu lado. Não é todo mundo que pode contar com alguém especial em momentos como esse — em meio a uma busca de poder onde você é a principal caça. E mais, quem passaria a noite em claro para garantir sua segurança sem cobrar absolutamente nada em troca? Nisso tinha muita sorte! Não encontramos nem Trish e Lady. Elas devem estar em missões. Principalmente Trish que deve estar se ocupando com todas as missões que seriam de Dante. O bom é que por enquanto ele não precisaria se preocupar com isso. Encarei descontente o escritório. Eu tinha me esquecido completamente do caos que Dante chama de agência — e casa. Devil May Cry é um típico lar de um homem solteiro e despreocupado. Era tanta bagunça e sujeira que chegava a despertar repulsa em qualquer um que entrar por aquela porta. Não entendia como ele conseguia viver tranquilamente assim, sem se incomodar com o decadente cenário a sua volta. Agora que ficaria nesse mundo por tempo indeterminado, poderia arrumar tudo e por as coisas em ordem. E ajudaria na maneira do possível no convívio com Dante. Peguei tudo que podia me auxiliar nessa luta. Desde baldes e esfregões a pequenas flanelas. Arregacei as mangas e pequei a vassoura e comecei a varrer cada canto encoberto por uma densa camada de terra e sujeiras. Recolhi as caixas de pizza e os engradados de refrigerante. Apenas com esses lixos deu para encher dois sacos — grandes. Esfreguei o assoalho que passava de marrom escuro para um mais claro e limpo. Abaixo da mesa principal havia uma poça de sundae seco e grudento, no qual tive muito trabalho para esfregar. Bati a poeira para fora do sofá. Com os golpes, e por uns a breves minutos, parecia que estava espancado alguém com tamanha vontade. Limpei a mesa gasta e cheia de lascas, arranhões e marcas de garras e também pegadas. Notei algo estranho em cima dela, que não tinha visto antes. Na mesa, quase passando despercebido um bilhete: "Você se esqueceu" Escrito com uma caligrafia impecável no pequeno papel vermelho claro. Peguei o pingente que se encontrava junto com a mensagem, apertando-o delicadamente entre meus dedos. Tateei involuntariamente meu pescoço a procura de algo que só agora sentia falta. Era meu cordão da sorte que sempre carregava comigo desde quando Lyana me presenteou com ele no meu aniversario. Mas como veio parar aqui? E ele estava comigo antes de vir parar nesse mundo? Quem deixou isso aqui? Valia mesmo a pena encher minha cabeça com perguntas sem resposta? Coloquei o pingente com o formato Yang — o princípio da luz e do céu. O de Lyana que era uma pulseira em formato Yin, a escuridão e a terra. Não há razões suficientes para ficar paranoica, é só mera coincidência. Continuei meus afazeres. Deixei o jukebox por ultimo tendo cuidado para não danifica-lo ainda mais. A visível marca registrada da impaciência e a falta de tato de Dante para lidar com isso. Ele já estava todo arruinado e o que mais chamava atenção eram os amassados por causa de chutes ou por socos. Era um verdadeiro milagre que ainda funcione apesar do grande estrago. Insistentemente apertei o botão "on", demorou a ligar — quase tive a ponto de imitar Dante e dar um soco ou um chute para ver se pegava. Será que precisa dar corda? —, mas a espera valeu a pena, pois a música desconhecida com teor metal soou por todo escritório, dando agitação e euforia. O som me deixou mais empolgação para continuar a tortuosa limpeza. Em meio ao som frenético, ousei dar uma de cantora e balancei com o ritmo. Com um espanador retirei os resíduos dos lugares mais altos e para facilitar usei a cadeira para me dar apoio. Algumas vezes tentava cantar junto à música, usando o espanador como microfone. — O que está fazendo? — o tom da voz era carregado de divertimento. Dante me encarava com as sobrancelhas erguidas e os braços cruzados, havia um meio sorriso estampado em seu rosto. — Ah, dando uma limpeza — respondi constrangida por ter sido flagrada no ato. Mesmo que não tenha sido nada grave — ainda era muito embaraçoso. — Ou um espetáculo — Dante olhou em volta como se estivesse reconhecendo um lugar totalmente diferente. Após a sutil inspeção, ele calmamente pegou o telefone e discou. Continuei meu trabalho, só que em silencio dessa vez. — Pediu uma pizza? — deduzi, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Na verdade duas — estiquei meus braços para tirar o monstrinho de pó do ventilador. Senti a forte presença de Dante atrás de mim. — Não vai continuar o show? — havia um misto de deboche e lascividade em seu tom, e seu olhar penetrante evidenciou suas intenções — Agora você tem um espectador que está muito interessado na apresentação. Não seria nada legal da sua parte se negasse esse favor a um fã. — Sinto muito tirar o prazer de me ver cantando, mas não quero pagar mais mico do que já paguei. — Que pena, adoraria ter um showzinho particular. Para minha sorte as pizzas não demoraram a chegar. Com a desculpa que ia pagar por elas no fim do mês, Dante pegou as duas caixas e depositou na mesa. O entregador sem saída apenas deu meia volta e saiu. Para quem não comece Dante, da impressão de ser m*l e ameaçador — aparentemente isso se deve a sua aura demoníaca que causa essa reação instintiva nas pessoas. E por isso que ninguém tem coragem de cobra-lo. No entanto, o modo de vida desleixado e seu jeito tranquilo para quem o conhece a fundo não são nem de longe assustador. Eu sei bem do que estou falando, afinal mesmo tendo a ficha da minha atual realidade, Dante não deixa de ser um personagem de jogo muito conhecido no meu mundo. Pegando a cadeira e a pondo em seu lugar, ele se sentou praticamente se jogando sobre ela. Então tirou uma fatia de pizza, degustando-a em seguida. A expressão em seu rosto era puro deleite. — Esta servida doçura? — Outra hora, tenho que terminar a limpeza. Alias, era para você fazer isso. — coloquei as mãos na cintura, batendo o pé em sinal de protesto. — Tenho coisas mais importantes para fazer com meu tempo livre que limpar — rebateu pronto para pegar a segunda fatia. — Como o que? — Hm — chiou dando uma generosa mordida — Caçar demônios, resolver problemas relacionados a eles, comer, dormir, te seduzir... Trabalhos que alguém tem que fazer, sendo eu o mais indicado. — Seu trabalho não é me seduzir, e sim me proteger. — Eu tomo isso como um bônus. Um adicional para meus serviços. — Certo então — bocejei indiferente, e subi as escadas para os quartos. Cuidadosa e determinada, limpei cada um dos cômodos. Chegando ao quarto de Dante — que serve como meu também —, organizei a bagunça colocando tudo em seu devido lugar, joguei fora o grande número de embalagens e outros tipos de sujeira. Resolvi não tirar os pôsteres de mulheres de biquíni, por que em primeiro lugar não sabia se Dante permitiria e eu não tinha direito nenhum de tira-las, nem ao menos podia usar a desculpa de ser namorada dele para fazê-lo. Não vou dizer que ver aquilo não me incomodava, só de olhar tenho a sensação de não ser boa o suficiente — algo parecido com inferioridade. Até me perguntava o que tinha de especial, principalmente comparada àquelas imagens. Nem tinha como não chegar a tantas conclusões enquanto ficava me comparando com aquelas mulheres. Afastei qualquer pensamento negativo da minha mente, concentrando-me somente na arrumação. Além disso, eu tinha algo que nenhuma delas pode ter; habilidades únicas. Sou quase tão fodona quanto Lady ou a Trish — claro que ainda faltava muito para estar no mesmo patamar delas, mas estou no caminho. Abri o armário e deparei-me com varias roupas a maioria de vermelho — que não chega a ser impressionante, pois a pessoa em questão é Dante —, mas havia roupas normais, de civis. Nunca imaginaria Dante usando algo assim. Terminando minha tarefa, desci as escadas e encontrei Dante falando ao telefone: — É aqui mesmo, — respondeu inalterado e mordiscou a pequena fatia pizza deixando um rastro de queijo derretido — mas como não estou me sentindo animado e sua proposta não me interessou... — suponho que ele deva estar conversando com um cliente. E pela sua atitude estava prestes a dispensar. Rapidamente tomei o telefone de suas mãos antes que chegasse a terminar a frase. — Ele está brincando! Claro que aceita — Dante ergueu uma sobrancelha, intrigado. Ele estava pedindo através daqueles gestos uma explicação. — Então esta marcado, senhorita. Como já expliquei para o rapaz — o homem expôs claramente nervoso — Venha hoje ao Love Planet as dez em ponto. — Pode deixar — desliguei. Encarei Dante incisivamente: — Não fique dispensando trabalho! Lembre-se que tem que precisa trabalhar para pagar suas dívidas e manter essa espelunca. — Vai dar uma de babá agora, doçura? Eu tenho planos muito melhores para você. — Nem pensar, vou te botar na linha. Mesmo que signifique te obrigar a ir à labuta. Dante suspirou, aproveitei e sentei em seu colo. — Conhece um lugar chamado Love Planet? — É próximo daqui — Perfeito, assim podemos... — Como assim "podemos"? Não tem nós — Dante cortou. — Você fica! — Por quê? — Por que meus trabalhos não são da sua conta. Seja uma boa menina e me espere aqui. — Desde quando você virou meu chefe? — finquei as unhas no casaco dele, irritada. — Primeiro cuidado com meu casaco — Dante tirou delicadamente minhas mãos do tecido — Em segundo; minha casa, meu trabalho, minhas regras. E não quero que se envolva. — Não quero ficar sozinha aqui enquanto você se diverte chutando traseiro de demônios arruaceiros! Vai Dante! Sempre quis ver uma missão sua bem de perto. Se quiser prometo me comportar. — E o que te faz pensar que pode me convencer? — Poder de persuasão? — disse incerta, esperando que minha tática desse certo — Pense que não seria seguro que eu fique aqui desamparada, totalmente a mercê de criaturas malvadas. As possibilidades de que esteja a salvo com você é cem por cento. — Essa não seria a primeira vez. Por acaso adquiriu medo de ficar sozinha ou não consegue mais ficar sem mim? — Neh, lógico que não! Agora tudo é diferente, antes não sabia do que era capaz e nem que existem seres que cobiçam minhas habilidades. Ficamos nos encarando, Dante sabia muito bem que não desistiria tão facilmente da ideia, e anunciou com tom cheio de condescendência: — Certo, eu te levo. — Ah, obrigada! — O que não faço para te agradar! Espero ser recompensado por isso. *** As ruas à noite eram iluminadas por umas variedades de luzes com cores diferentes e fluorescentes. Havia bastante pessoas caminhando, aproveitando o relaxante ar noturno, ou em frente a boates, bares e outros estabelecimentos normalmente abertos nesse horário. "Love Planet" O nome em neon rosa elétrico quase gritava por atenção. Era difícil não reparar em algo tão ridiculamente chamativo. Pelo nome do lugar já tinha uma plena ideia de que seja. Estava familiarizada com o ambiente. Essa não seria a primeira vez que frequentava um Pub. Porém todas às vezes eram com Lyana, e mesmo não me sentindo a vontade nesses lugares eu ia como a amiga sensata que zelava pela outra. No fim da noite, eu cuidava com que Lyana não passasse da conta ou a ajudasse com qualquer eventual problema. Isso quando tinha que leva-la para casa, pois ela não tinha condições de tão bêbada. Sorte que os pais dela estão viajando pela Europa a trabalho — por isso nunca cheguei a conhecê-los. Por dentro, o clube estava cheio de fumaça de gelo seco levemente adocicado, formando um estratégico nevoeiro. Luzes coloridas piscavam em um ritmo frenético e refletiam-se na pista de dança em meio a corpos que balançavam ao som da música eletrônica que tocava. Não havia nada de anormal para ter uma missão justamente ali. Dante caminhou cheio de confiança, descontração e sensualidade que somente ele conseguia emanar — ele é um homem quente —, por entre a multidão que de bom grado abriam passagem. Eu o segui com cuidado para não me perder em meio a tantas pessoas. Paramos no balcão do bar. A energia e animação se derramavam pelo ar, e era revigorante. — Fique aqui e tente não se meter em problemas na minha ausência, ou faça quando estiver por perto para salvar sua pele — Dante comandou, sua voz elevada para que pudesse ouvir perfeitamente através do som alto. Não protestei, uma vez que não estava em condições de negar nada a ele. O fato de ter permitido que fosse nessa missão junto com ele fora o suficiente. Sem contar que não sabia absolutamente nada sobre ela, então não poderia ajudar. E eu não queria ficar no entre essas pessoas. Dante saiu enquanto permaneci sentada frente ao balcão observando tudo que acontecia. — Deseja alguma coisa senhorita? — o jovem garçom perguntou, um sorriso sugestivo dançava em seu rosto. — Um refrigerante, talvez! — Trago em um instante — o garçom depositou a latinha em minha frente e retirou-se. Beberiquei o refri, atenta a cada movimento das pessoas na pista. — Que porre! — resmunguei aborrecida, tamborilando os dedos no balcão. — Senhorita? — o garçom me chamou. — Sim? Ele depositou um copo de um conteúdo desconhecido para mim. Pisquei confusa, lançando um olhar interrogativo a ele. — Uma mulher pagou essa bebida para senhorita — informou. — Mulher? Que mulher? — Aquela ali... — virei abruptamente, encarando a mesa vazia que ele apontava — Ué, ela estava ali agora a pouco. — Como ela era? — Não dava para ver direito. Mas ela disse que vai estar de olhos atentos em você... É um pouco estranho — deixei de prestar atenção enquanto o garçom tagarelava sem parar. Mordi o lábio inferior nervosa. Será que a tal mulher era a mesma que me encontrei no museu? Ela era o alvo? Se fora ela quem pagou essa bebida não terá colocado algo? E como sabia que estaria aqui? Estaria me seguindo? E isso de estar sempre de olho em mim o que significa exatamente? Estou realmente ficando preocupada.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD