Isso é um sonho?

4999 Words
— Olha só o temos aqui. Tirei a sorte grande hoje. — a voz rouca de Dante arrancou-me do transe. — Sempre me surpreende como coisas interessantes podem cair do céu. Resista a gadisse, Diva, ponderei. — Você é... Dante. — balbuciei grogue, apelando a minha teimosia para permanecer desperta. — Já nos conhecemos? Eu lembraria de tê-la visto antes. Pela minha visão periférica vislumbrei o vulto veloz do homem que há alguns minutos me atacara. Encolhi-me instintivamente, preparada para o pior cenário possível desse encontro. A fúria se transfigurou a nojo em contraste com a aparição de Dante no instante mais oportuno. A transparência que o homem exprimia suas emoções agitou algo em meu âmago, um pavor inquietante que retorcia violentamente meu estômago de lidar com uma entidade volátil cuja natureza desconhecida despertava uma irracional sensação de risco iminente. Ele saltou graciosamente para o que sobrou de uma pilastra dentre os escombros, sua desenvoltura para realizar tal acrobacia sem se desequilibrar não somente desconcertou minha mente entorpecida, como também me recordou que ele poderia nem ser um humano normal dadas as circunstâncias. E honestamente, aquela altura, tinha uma leve dúvida a respeito até da minha humanidade — e da sanidade também. Com todas as hipóteses plausíveis que sustentariam minhas teorias, a que soava razoável era de que estava morta e, por consequência, presa no purgatório em uma ilusão bem no naipe de a Divina Comédia. Entretanto, não contaria com um anjo para me guiar e estava muito satisfeita de não ter sido arremessada em algum dos nove círculos do inferno. A luz da lua providenciou a iluminação precisa para discernir a imagem do estranho: seu cabelo ruivo esvoaçante tremeluzia com o brilho prateado sob sua figura esbelta, porém, articulada. Suas roupas lembravam vagamente as vestes de mercenários que geralmente se vê em jogos, porque ninguém em sã consciência usaria trajes tão elaborados para um trabalho que exigiria bastante do físico. Havia tanto cinto e pele descoberta que, por um breve segundo, considerei que ele fosse o típico cara de estilo excêntrico e exibido. E, ao piscar para reduzir o incomodo no meu campo de visão, assistindo como os cortes estratégicos e o tecido que abraçava sua forma facilitavam sua mobilidade, descartei a ideia inicial. Dante não parecia tão afetado com a performance acrobática do homem — havia um desdém notável em seu olhar e o homem só exteriorizava o que descreveria como profundo desgosto e antipatia. — Filho de Sparda, por mais que tenha ciência dessa sua mania de se intrometer nos assuntos que não te correspondem. Quero evitar mais transtornos desnecessários. — sacou dois punhais gêmeos. — Entregue a garota e volte para o caminho que veio. Fitei Dante com pavor, o cérebro em pane e os olhos ligeiramente vagos. Ele, por outro lado, lançou um sorriso tranquilizador para mim — que me desestabilizou por completo. — Por que não deixa a dama decidir? — o eco da sua voz rouca reverberou pelo espaço em ruínas. — O que me diz, doçura? Quer ir com ele ou ficar comigo? — Por favor, me ajuda. — murmurei tensa. — Não deixe que ele me leve, por favor... — Não se preocupe. — sussurrou de volta. — Está segura agora, não vou deixar que a leve. Nunca na minha vida me agarrei com tanta veemência em um homem como grudava em Dante. — Ouviu a moça. — ele anunciou para o ruivo. — Você não sabe no que está se metendo, caçador. — a frieza no timbre dele gelou minha pele. — Então estamos empatados, parceiro. Mas você é o único aqui que está perseguindo garotas. Sua mãe nunca ensinou como tratar uma dama? — gani com o impulso ágil dele ao me arrancar da linha de ataque do cara. — Se me permite, doçura, estão requisitando minha atenção. Se não se importar, é claro. — me deixou longe da batalha e próxima a uma menina. — Como se sente? — a pequena indagou, preocupada. — Sua testa está cortada. O que seria capaz de dizer? Tive contato com um personagem de um jogo em um mundo que, aparentemente, não era o meu. Aquilo não somente seria absurdo como uma bizarrice sem precedentes. Toquei o ponto dolorido na testa e procurei o r***o que, de acordo com minha memória, ocorrera com o impacto da queda. — Precisamos sair, o senhor Dante dará conta disso. — comentou, me auxiliando a firmar de pé do melhor modo que seu tamanho e corpo suportassem. Sem energia para retrucar, segui ela para longe da cacofonia. Me sentei escorada em um escombro mais distantes do local no qual cai, tonta e com a mente pendendo entre a inconsciência e a vigília. Com a adrenalina evaporando do meu metabolismo, meus pensamentos, antes a mil por hora, reduziram a frequência para que assimilasse o ocorrido com um olhar mais crítico e o analisasse com pragmatismo. Ainda bastante tonta, esquadrinhei os arredores com apatia — digamos que meu cérebro regulou toda energia para desenvolver uma resolução plausível em vez de coordenar as funções relevantes como a de socializar. Se eu procurasse bem, quem sabe não acharia uma câmera para concluir que tudo não passava de uma pegadinha. Ou, quem sabe, um set de filmagens? — Que lugar é esse? — É um antigo santuário na área isolada da cidade. — a garotinha contou, colocando um curativo improvisado na minha testa. O céu noturno não muito convidativo com nuvens se amontoando, trazia o presságio de uma chuva que não tardou para verter sobre nós. — A propósito, meu nome é Sylpha. E o seu? — Oh, eu me chamo... — gritei com o impacto que chacoalhou o chão feito um abalo sísmico. Uma ventania poderosa irrompeu abruptamente em nossa zona segura e nos encolhemos para que a explosão de pedras não fosse varrida para cima de nós. Por uma fresta, identifiquei a silhueta de Dante sobre uma pilha de destroços, empunhando Rebellion como costumava agir nos jogos. — Vocês duas estão bem? — Sim! — a menina declarou com entusiasmo. Com os olhos arregalados, virei, ainda agachada, para encarar o nada, atônita. — Tudo bem, avaliando a situação... — me aprumei para espiar de novo e arfei com a figura de sobretudo vermelho tão próxima de mim, rastejei para longe com poucos centímetros para nos separar. Não que estivesse com medo dele por julgá-lo uma ameaça, apenas não estava preparada para, bem, para tê-lo tão pertinho. — Hm. — agachou para ficar na minha altura e ter contato visual direto. — Até que não está tão m*l, vai deixar uma marca, mas nada que afete a sua vaidade feminina. — as orbes azuis me examinando minuciosamente, me fizeram ruborizar. Nem mesmo as gotas frias que continuamente caíam, esfriaram minhas bochechas. — Consegue se levantar? Assenti, me erguendo titubeante. Poderia dizer que enfrentei tudo com muita maturidade e ter agido com prudência, porém, contrariando a norma, belisquei minhas bochechas, murmurando repetidamente “acorda” em uma falha e exasperada tentativa de sair do torpor que distorcia minhas funções cognitivas básicas. — Vamos, acorda de uma vez! Vai, vai! — bati com as duas mãos contra minhas bochechas, sem nenhuma reação válida além da queimação pelas pancadas. Lembro de ter visto animes com a temática de isekai, porém nunca, em hipótese alguma, imaginei que cairia em tamanha loucura. Vendo um lado positivo: ainda viva e intacta. Não tão intacta por conta dos ferimentos e das dores. — Isso não é um sonho, é? — Depende do que pode chamar de sonho. — gracejou com um o semblante presunçoso ao notar o quão afetada fiquei com a resposta. Demorei para captar a mensagem repassada e a jocosidade que embebia sua frase, me desnorteando momentaneamente. — Então, o que seu amigo tanto queria? — Dante questionou. — Não faço ideia, ele me atacou do nada. É um maluco s*******o que primeiro ataca e depois pergunta. — fixei meu olhar no Devil Hunter mais famoso da franquia materializado, carne e ossos e estilo. Preenchida com toda sensatez que a circunstância demanda, respirei profundamente e fechei os olhos com a enxaqueca que emergia com uma potência atordoante. — Você está bem, doçura? — elevei a cabeça e o mirei, decidindo internamente como procederia em tão delicado intercurso. Dante externou preocupação com meu estado, pois até o humor abandonou seu tom sendo substituído por simbólica empatia. — É ele, de verdade. — murmurei, mais como se checasse mesmo a veracidade daquilo, assinalando mentalmente quais dados enumerados em minha lista conferiam com a realidade. Recuei, rindo. — Por que ainda estou duvidando? Um demônio me atacou. — a epifania me atropelou com violência e minhas pernas bambearam. — Não tem como buscar lógica nisso tudo, porque não há. O implacável ímpeto de rir me assaltou, não sei como resisti tanto em alguns minutos. Entretanto, não tinha capacidade para ocultar os tremores e oscilações decorrentes da ansiedade — a manifestação das minhas emoções derivadas do nervosismo se dissolviam em gargalhadas e daquelas ruidosas, imparáveis e vergonhosas. — O corte não foi profundo para causar isso. — a mão quente verificando a zona machucada em minha testa me resgatou do pseudo transe. — Está escutando? — Isso é inacreditável! — balbuciei recobrando a lucidez, invocando toda minha fangirlzice do fundo do baú. — Você é mesmo o Dante! O lendário Dante! Lendário caçador de demônios! — o examinei de cima a baixo com animação. — Como isso é possível? — O primeiro e único. — fez uma mesura teatral. — Ao seu dispor. — Uou, que f**a! — guinchei estupefata. — Sou uma acompanhante assídua da franquia Devil May Cry e é uma honra estar te conhecendo pessoalmente. O famoso filho de Sparda e Eva, aquele que venceu Mundus e que salvou o mundo várias vezes! — tagarelei com fervor apaixonado de uma fã. As feições de Dante contraíram ligeiramente. — Ei, ei, calma aí. — resfoleguei e ele franziu o cenho, instigado com meu falatório, supus. — Você sabe muito sobre mim, reconheço isso. É um pouco suspeito, admito. Surpreendente em parte, mas estranho. — cruzou os braços, intrigado. — Talvez seja mais simples se esclarecesse as coisas para não termos problemas, é claro. Não tinha pensado nessa parte, como se tivesse um script que ia unicamente até determinada página. — Para ser sincera não sei se eu deveria dizer, é pouco provável que vá acreditar em mim e achará que não bato bem da cabeça. Isso é loucura em muitos âmbitos. — informei, aturdida. — É complexo, muito mais do que parece. — Experimenta. Não é como se não estivesse acostumado com absurdos e coisas nesse calibre são parte do meu trabalho. — assegurou. Depois de enfrentar demônios, reis do submundo e todo tipo de criatura sinistra, certamente isso não seria estarrecedor o suficiente para competir com suas experiências anteriores. — Você é um personagem de um jogo e eu sou de outro mundo. Eu acho. — despejei sem tomar fôlego. — É, você tem toda razão, não acredito em nada disso. — respondeu plácido, dando de ombros. — A queda deve ter prejudicado sua percepção da realidade. — Eu sei muito bem o que estou dize... — arfei com a horda de demônios que emergiu subitamente atrás de Dante. — Cuidado! Cerrei as pálpebras com a minha mais opressora companheira de jornada — o medo — nesse intervalo de minutos se infiltrando novamente na minha fina camada de segurança, desejando que o desenrolar da cena fosse um produto da minha imaginação. Minhas pernas perderam a estabilidade e bati em algo duro que anteparou meu desmoronamento. ××× A anciã os recebeu com visível afabilidade que se alterou ao ver a jovem desmaiada nos braços do caçador. Dante assistiu tanto a pequena menina quanto a senhora tratarem a mulher com ervas medicinais que não sabia o nome e cujo cheiro imbuiu o ambiente, limpando as leves escoriações e entoando cantigas que, supôs, ser parte ritualística da região. — O que ela tem? — Nada de mais. — a senhora esclareceu, catalogando mentalmente os machucados para melhor administrar a medicação para fortalecer a pele e acelerar a cicatrização. — Os ferimentos e a perda de consciência provavelmente foram devido a alguma pancada e também a exaustão, logo ela vai acordar. — Eu vou esperar para ter certeza. — Pode descansar por aqui se for de seu gosto. — propôs. — Agradeço a oferta gentil e aceito de bom grado. — respondeu com humor, se sentando no sofá com odor acentuado de jasmim e outras especiarias. A atmosfera pacífica proporcionou uma miríade de emoções, sendo a principal de todas a serenidade somada ao desapego absoluto de tensão incrustada em seus músculos que exigiam revigoração. Fechou os olhos, se entregando ao primeiro estágio do sono — embora seus sentidos aguçados ainda recebessem os estímulos externos de seu entorno. Em meio a sua soneca, distinguiu ruídos de passos oscilantes. — Já ficou claro que nunca viu um homem tão bonito quanto eu, doçura. — cabisbaixo não ocultou o sorriso atrevido. — Mas você não veio aqui só para me admirar, certo? A garota estava enrubescida e a respiração ofegante denunciou a corrida. Sua fisionomia frenética e a não tão discreta inspeção deu a vaga ideia de que vê-lo a inquietava, não de maneira que caracterizava terror e sim uma mistura muito peculiar de sentimentos que estampavam a face feminina — curioso para entender o papel que assumiu nessa história para conferir sentido a reações tão atormentadas de uma pessoa que nunca conheceu antes. — Disseram que estava aqui e queria agradecer por me salvar... Também ter certeza de que aquilo que houve não fora uma alucinação. — a coragem despertada pela adrenalina começou a mitigar enquanto ela lutava para não deixar tão visível o nervosismo. Seria engraçado em outras circunstâncias. — Não precisa agradecer, é o meu trabalho. Matar os monstros e salvar donzelas indefesas. — se acomodou mais confortavelmente no sofá. — Eu sei. — ela replicou, todavia prontamente se corrigiu: — Eu suponho. Isso é tão louco... — Começou a gargalhar de apreensão quase compulsivamente. — Preciso conciliar o ocorrido e nem sequer sei por onde... — Não deveria estar descansando? — Oh, sim. Olha... Sei que não acredita em mim, só que não tenho motivos para mentir. — pressionou as mãos uma na outra como um reflexo ansioso. — Vim mesmo de outro mundo e você é um personagem de um jogo. Um personagem fictício... No meu universo. A ânsia de gargalhar borbulhou de seu âmago e ecoou por todo recinto, como se tivesse ouvido a piada mais engraçada com a insistência alucinógena de lhe atribuir um aspecto de ser ficcional. Era a primeira vez que alguém lhe associava com algo semelhante e não tinha como encarar aquilo com seriedade. Quando ela mencionou antes, pensou que estivesse brincando e não considerou muito seu devaneio. Ainda assim, ela persistiu com o argumento e não fora apto para conter sua risada com o assunto. — Qual é a graça? — gaguejou indignada, cerrando os punhos. — Não é óbvio? — controlou as vibrações do riso comedido. — Devo parabenizá-la pela criatividade e um extra pela audácia. Seu senso de humor é um dos melhores que já tive o prazer de assistir. Um talento nato para comédia, gosto disso. Fechou a cara, furiosa. — Tudo bem, tudo bem, sem risadas, madame. — ergueu as mãos em falsa rendição. — Não estou brincando, então não vejo motivo de graça! — bufou irada. — Isso nem deveria estar acontecendo. De qualquer modo, posso provar minhas alegações! — Comece. — gesticulou para que prosseguisse, bastante interessado no desempenho dela para convencê-lo. Pela determinação dela, seria um espetáculo e tanto. — Sua loja se chama Devil May Cry, você tem um irmão gêmeo e... Já foi um mercenário! — arqueou uma das sobrancelhas ao testemunhá-la jogar informações precisas de sua vida como se o conhecesse mais que ele próprio. — Vai confiar em mim? — Isso soa absurdo e sem o mínimo sentido até para os meus parâmetros. Claro que não n**o seu conhecimento específico e como não tenho muito o que perder com essa história, vou dar o benefício da dúvida. Diga, se é de outro mundo, como veio parar aqui? A garota ponderou, incerta. — Eu não recordo muito... — massageou o centro da testa como uma sugestão de dor que tentava atenuar. Escanear memórias anteriores à sua chegada se provou um problema de início, como fragmentos de imagens que não se ligavam um no outro coerentemente. — É meio confuso. Estava em casa, arrumando minhas coisas e aquele cara junto com um monstro me atacou. Creio que ele, de alguma forma, me trouxe para cá. É minha única hipótese para ter vindo parar aqui... É essa ou estar em coma. Só que a segunda opção não parece ser a mais agradável. Ela suspirou longamente. — Aliás, onde estamos? — indagou reparando melhor em seu entorno, vendo alguns frascos com ervas e instrumentos herbalísticos. — Você está na minha casa, querida. Eu sou Amara. — a anciã esclareceu com amabilidade, andando em passos lentos até ambos. — Não se esforce demais por hora: Não correndo para começar. Corou com a recomendação da senhora. — Sinto muito e agradeço por cuidarem de mim... Eu me chamo... — pigarreou ligeiramente forçado. — Diva. — Diva? É um nome bonito. — a mais velha elogiou, fazendo a garota a acarar surpresa. — Agora sente-se. — pediu delicadamente, algo que fora prontamente atendida. — Beba isso, vai ajudar com o desconforto e a desorientação. — ofereceu, com simpatia, uma xícara com uma substância esquisita e malcheirosa. A expressão da garota se retorceu em uma careta, entretanto, não recusou a gentileza, bebendo o conteúdo com um tragar longo e rápido. — Esse negócio tem um gosto horrível! — se encolheu ainda com o rosto todo franzido com o amargor. Dante riu pela honestidade dela. — Tente repousar por agora, logo estará melhor. Diva assentiu, acompanhando a idosa aos aposentos para dormir apropriadamente e assimilar a sequência de acontecimentos tórridos. Dante não tirou os olhos dela, principalmente, pela maneira quase devota que a jovem o encarava por cima dos ombros, um fascínio quase divertido se não fosse contrário e tudo que é razoavelmente racional e, em teoria, complexo. Assim que Amara retornou a sala, o caçador cogitou questioná-la a respeito de Diva e se ela teria uma relação com o que dissera há um tempo. Como se lesse sua mente, a mulher se adiantou: — Isso é... Impressionante — comentou vagamente, adotando uma atitude menos paranormal com a história. — Você sabe o que ela é? Negou com a cabeça. — Posso descrever o caminho, no entanto, não os obstáculos. — É, acho que estamos na estaca zero. — deu de ombros ciente que ela, em alguns momentos, gostava de confundi-lo com suas palavras. — Temos acomodações extras se desejar pernoitar. — persuadiu ternamente, pegando alguns galhinhos de uma planta que o meio-demônio nunca vira antes. Dante não recusou. Diva dormiu nos últimos dois dias. Ocasionalmente ouvia murmúrios vindos dela tão baixos que somente com sua audição mais apurada que de um humano lhe permitiu captá-los, as vezes ela soltava, por entre os lábios, seu nome. Não deixou de sorrir com as, não muito raras, ocasiões que isso ocorria. Na manhã do terceiro dia, ela acordou alterada pelo tempo desfalecida, embora ainda se impressionasse com a sua aparição. — Como se sente? — Amara inquiriu, lhe entregando um chá com um aspecto menos repulsivo que o anterior. Houve certa relutância por parte dela quanto a consumir outra infusão de ervas. Depois de alguns segundos, deu-se por vencida e bebericou o conteúdo da xícara, gostando da composição que consistia em camomila e mel. — Bem, eu acho. — se aprumou um pouco desajeitada. — Você veio de outro mundo, correto? — Amara sondou. — Sim. — Diva assentiu. — Pelo menos é o que deduzo. — olhou confiante para o caçador. — No meu universo, ele é um personagem fictício. E isso serviu para me orientar... — tateou as roupas e parou, frustrada com o lapso de memória. — Merda, esqueci que o i****a que me atacou destruiu meu celular. Vocês tem telefone? — Venha, querida. — encorajou Diva a acompanhá-la para seu telefone antigo. Sem dizer seu propósito, Diva discou um número desconhecido e aguardou a chamada ser atendida. Após alguns segundos, pôs o objeto de volta gancho e suspirou. — Nem os números do meu mundo tem sinal aqui. Pensei que se acontecesse comigo seria divertido e emocionante, vivendo a situação na realidade, parece bem r**m. Dante analisou o quanto essa sandice despertava seu entusiasmo e que, talvez, fosse algo que deveria se encarregar pessoalmente. Diva continuava murmurando e se calou ao escutá-lo: — Não sou de fazer caridade, mas abro uma exceção para você e te ajudo a retornar pra casa. — um sorriso iluminou as feições dela com o compromisso firmado. — De verdade? — Tem a minha palavra, doçura. — afirmou com firmeza. — Você é o melhor, Dante! — choramingou emocionada, agradecendo freneticamente pela bondade dele. — Pelo menos vou estar com o homem mais gostoso do mundo dos jogos e... — Diva desconcertada reparou no que acabara de soltar em meio ao monólogo, totalmente movida pela vivacidade, e olhou para o meio-demônio com uma evidente expressão de horror e vergonha. — Eu disse isso alto? Dante assentiu com um sorriso convencido. — Merda. — grunhiu envergonhada. Após o procedimento de troca de bandagens e a muda de roupas, a senhora entregou um cartão em branco para a jovem que não entendeu o propósito, procurando uma informação invisível aos olhos. — Não se preocupe, isso vai se revelar no tempo certo. Diva guardou o cartão sem grandes pretensões sobre ele. Com algumas horas de resguardo, tanto o caçador quanto a garota, não mais tão atordoada, partiram. — Juízo. Se cuidem e boa sorte na viagem. — Voltem para nos visitar algum dia! — a menina fofinha e bastante prestativa pediu, acenando com vigor. Dante a conduziu até o carro, seguindo o protocolo de cavalheirismo, ainda que fosse em um tom menos sério do que essa situação requeria, de todo modo, isso transformou o que seria um encontro caótico em algo engraçado para ambas as partes. Nesse ínterim, ela fez o possível para recapitular os eventos que a jogaram para esse lugar e encontrar uma pista para se dar um norte. Evitou contato visual com Dante em todo trajeto, não querendo parecer uma i****a babando nele. Fechou os olhos, meditativa, ouvindo uma música suave ecoando baixo, porém, conseguia discernir um pouco do conteúdo. — Você está ouvindo? — inquiriu com impressão de escutar uma música. — Ouvir o que? — Parecia que tinha alguém cantando. Ou... Talvez tenha sido só coisa da minha cabeça. Dante apertou o volante, optando pelo silêncio no restante do percurso. — Chegamos. — anunciou. Diva deu dois passos para trás para ter uma visão mais ampla da fachada da agência, havia um brilho de excitação flamejante dançando em seu olhar e assim que recaiu sobre o nome no letreiro que pomposamente emitia uma luminescência neon escarlate em letras cursivas, seu rosto transbordava de vitalidade que nunca presenciou antes em ninguém que chegava ali. Esbarrou em algo ao entrar a loja, tropeçando e despencando para um acidente que provocaria os mais doloridos hematomas para somar sua má sorte, entretanto, Dante a agarrou, impedindo o que seria uma queda dolorosa e humilhante. — Cuidado onde pisa. — murmurou suavemente, Diva ruborizou com a proximidade e seu tom aveludado. — Obrigada. — agradeceu assim que ele a firmou no chão para evitar riscos e prosseguiram. — Creio que não tenham cortado a energia enquanto estive fora, por sorte. — agarrou instintivamente o sobretudo dele para poder se direcionar pelo breu, quase colidindo nele no processo. — Bem-vinda a Devil May Cry, espero que aproveite minhas humildes acomodações. — aclamou modesto e teatral ao acender as luzes. Protegeu os olhos do súbito lampejo de luz que banhou a sala. — Estou mesmo... — Piscou, absorvendo as informações visuais que recebia. — No Devil May Cry! Que fantástico! Admirou estabanada tudo que seus olhos capturavam, tonta pela intensidade das próprias emoções diante de uma realidade fora da redoma. Para alguém que vivera no mais normal dos parâmetros humanos, ter a chance de ver um pouco de um jogo que adorava era um sonho — a experiência de estar ali, de poder explorar, tocar e mesmo sentir a atmosfera presente era totalmente diferente vê-lo em cutscenes ocasionais durante as gameplays. Tudo era melhor, porque era REAL. Verificou a mesa de bilhar, passou o dedo pela superfície de madeira. — Ah, isso tá imundo. Você deveria ser processado só pelo estado desse lugar. — comentou reparando no lixo e poeira impregnado na mobília. — Não vejo nada de errado. — Vou fingir que não ouvi isso, porque claramente temos perspectivas distintas quanto a sujeira. Dante dispôs o armamento na mesa, retirando o seu casaco assinatura. — Essas são as... — correu para perto de onde estavam as belíssimas pistolas marca registrada do Devil Hunter. — Que incrível! Deslumbrada, contemplou as famosas armas que Dante recebeu de herança — e presente no caso das pistolas gêmeas que foram dadas pela Nell — do pai, deslizando os dedos pelos contornos pesados de Rebellion, com cuidado para não cortar os dedos com a lâmina afiada. — O que houve com as outras armas demoníacas? — Vendi. — expôs indiferente. — O quê? Como vendeu aquilo que, nem em estética, é normal? — Tem mais gente estranha que adquire isso do que sua cabecinha possa imaginar. — E isso não é razão mais que suficiente para não vender? — O encarou perplexa. — As contas não se pagam sozinhas, sabia? Segurou Ebony, admirando a pequena gravura de uma mulher vitoriana de cabelos pretos incrustada na coronha e a assinatura nela, feita sob medida para atender a destreza de Dante para disparos a longa distância. Ela era um pouco pesada e, como suas habilidades de manuseio não a ajudavam, sem querer, atirou no teto da agência, mortificada. — Ei, nada de destruir minha casa. — Dante não mostrou traços de fúria, talvez um lampejo de desapontamento e divertimento, não aparentava ser algo tão grave quanto imaginou a princípio. — Desculpe, me empolguei um pouco. — o caçador se aproximou, olhando a pistola marfim nas mãos dela. — Só as use quando precisar. E não se preocupe que só aconteceria em último caso. — ele afirmou, recuou corada com a maneira inebriante que o meio-demônio falava. Não tinha certeza se seu julgamento sobre ele não seria maquiado pela paixonite. — Eu vou lembrar disso. — deixou Ebony no devido lugar e avaliou as condições do teto, vendo o lustre meio velho balançar vagamente. — E lamento pelo dano ao patrimônio. — Uma destruição nova a cada dia, não é uma novidade. — recostou na mesa dele. — E não fique perambulando por aí nesse estado, não vai querer desmaiar, certo? Sorriu. — Agradeço a preocupação. — Não precisa agradecer, madame. Só se sente e relaxe, minha casa é sua casa. Dante se jogou no sofá e indicando um local vago ao seu lado. — Fique a vontade, eu não mordo. Exceto se pedir. Distraída, escutou um chamado estranho, como uma canção exatamente como discorreu na viagem, só que mais clara. — Diva? Doçura, você está começando a me preocupar. — Não, não. Acho que foi novamente a impressão de ter escutado algo. — levou a mão a cabeça. — Eu não ouvi nada. Diva franziu a testa, confusa. — Bem, deve ser coisa da minha cabeça, acho que exagerei e devo estar ainda grogue. — esfregou a testa. — Queria ter alguma ideia do que fazer agora. — Como não temos nenhuma pista do que aconteceu com você, ficará bem por aqui, contanto que não arrume problemas. — Agradeço a hospitalidade. — sorriu. — Prometo me comportar e não mexer nas suas armas — automaticamente fitou o buraco no teto. — E nem atirar no seu teto e destruir mais coisas. — Eu deveria te cobrar por isso, sabia? — Você não faria isso, faria? Você não pode esperar algo de uma universitária que não tem dinheiro nem pra um salgado. — a garota fez uma careta abismada. — Olha, para não ficar no prejuízo posso te pagar com um encontro. É um bom negócio, não? — sugestionou com um sorriso convincente. O mestiço explodiu em uma gargalhada irrefreada, se descobrir ser um integrante de um jogo em outro mundo o inundou com um jato anestesiante de descontração, a sugestão dela que beirava o absurdo trouxe mais entretenimento. Ela era hilária. — Ei, não ria. Não é tão r**m assim. — cruzou os braços, arqueando uma das sobrancelhas enraivecida. — Onde veio essa ideia? E por que achou que funcionaria? — o caçador balançou a cabeça, sem deter o riso irreverente. — Eu vi isso em um jogo. — Não me diga que é no meu? — Dante inquiriu. — Não, é em outro e funcionou. Não é justo. Esse mundo deveria ser um universo fictício de um jogo, por que essa lógica não se aplica aqui? — Porque isso é a vida real, doçura. Mas para que sinta melhor, aceito suas condições. A expressão dela com a bem sucedida negociação certamente fora impagável. O clima despreocupado se rompeu com batidas sincrônicas na porta, alertando-os de uma nova companhia. — Você não vai abrir? — Não. — Dante colocou os braços de apoio a cabeça, exibindo nenhuma vontade de sair do lugar, cabendo a jovem oferecer serviço. Sem alternativa, deslocou-se até a entrada pronta para saudar quem quer que fosse para, no mínimo, tornar sua estádia menos problemática. — Seja bem vindo... — Engasgou ao ver a silhueta, retesando.
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