Acordei com o sol atravessando as frestas da cortina, iluminando meu quarto de um jeito que me dava preguiça. O cheiro de café subia da cozinha e preencheu o ambiente. Aroma de casa, de manhã de rotina, de vida no morro. Era minha última semana antes das provas finais do terceiro ano. Faltava pouco pra acabar o ensino médio. Faltava pouco pra tudo mudar.
E eu nem sabia se tava pronta pra isso. Na real, eu não sabia nem lidar direito com as coisas que já estavam acontecendo.
Tipo ele.
Herus.
O problema com H maiúsculo, como eu mesma apelidei. E pior: afilhado da minha mãe e do meu pai. Não tinha como ser mais confuso.
Meu celular vibrou em cima da cômoda.
Era a Milena, minha melhor amiga desde a terceira série, mandando áudio no tom mais animado possível:
— Sophia! Tô quase chegando na sua quebrada! Se demorar, eu vou sem você, hein? Hoje tem ensaio do coral depois da aula, lembra?
Sorri sozinha. A Milena é aquele tipo de pessoa que parece que veio ao mundo com glitter. Rica, linda, confiante. Mora num prédio chique no asfalto, perto da escola particular onde a gente estuda. Mas todo santo dia pega o carro pra me buscar no morro. Isso mesmo. Ela sai de um apartamento climatizado pra entrar na minha quebrada cheia de escadão e roupa no varal. Não tinha como não amar uma amiga dessas.
Mas o pai dela… Nossa, o pai dela nem sonha que a filha atravessa o túnel da cidade alta pra cá. Nem imagina que a melhor amiga da princesa dele é filha do dono do morro. E se descobrisse então quem era o meu crush? Aí era caso de polícia.
— Neném, tá pronta? — a voz do meu pai ecoou pelo corredor.
Murilo. Ou Falcão, se você perguntar por ele lá fora. Pra mim, ele sempre foi só papai. O homem que acordava cedo pra fazer café quando minha mãe tava de plantão no postinho. O mesmo que me ensinou a andar de bicicleta e que tirava sarro das minhas notas boas, me chamando de nerd.
Hoje ele apareceu encostado no batente da porta, com aquela cara desconfiada que ele reservava só pra mim.
— Tá bonita hoje — ele falou, estreitando os olhos. — Mas esse shorts aí… não tá meio curto, não?
Revirei os olhos.
— Papai, pelo amor de Deus! Tá um calor dos infernos!
Mas no fundo eu sabia: ele não tava reclamando por m*l. Era medo. Medo do que o mundo podia fazer comigo. Ele vivia entre dois mundos também — o pai carinhoso em casa, e o chefão que comandava tudo ali fora. E, por mais contraditório que fosse, ele sempre quis que eu ficasse longe desse lado dele.
— Não gosto desses moleque te olhando torto por aí — ele resmungou.
Eu podia até enganar os outros, mas minha mãe me decifrava no olhar.
Falando nela… A doutora Melissa Meyer. Médica do postinho aqui do morro. Linda, braba, dona da maior paciência do mundo — menos quando o assunto era meu pai. Era ela quem equilibrava a nossa família. Ela e o vovô Fausto, que também trabalhava no postinho, viviam ali tentando transformar o caos em alguma coisa boa.
Mas aí veio ele. Meu irmão.
— Que isso, Sophia? Vai sair assim? — José Vicente apareceu atrás do nosso pai, já com aquela cara fechada de sempre.
Vicente era três anos mais velho que eu e agia como se fosse meu pai número dois. Controlador. Ciumento. E completamente apaixonado pela Milena, a ponto de ficar mudo toda vez que ela aparecia. Só que em vez de falar isso pra ela, ele preferia descontar tudo em mim.
— Não enche, Vicente — murmurei. — É só um shorts.
— Se eu ver algum moleque te encarando na rua, arranco os olhos dele, falou, sério. Eu nunca sabia se ele tava brincando ou não.
Balancei a cabeça e saí, porque quanto mais eu ficasse ali, mais ia me atrasar.
Foi só pisar na calçada que o ar pareceu pesar. Não pelo calor, mas por causa dele.
Herus.
Encostado na esquina da ladeira, uniforme da escola desabotoado até o meio do peito, tatuagem enorme quase sumindo no tom bronzeado da pele. Corrente prateada balançando devagar. Ele era aquele tipo de erro que a gente já sabia onde ia dar, mas mesmo assim queria cometer.
Quando me viu, abriu aquele sorriso maroto. Um canto da boca só, como quem já sabia a bagunça que causava.
— Princesa Meyer — ele soltou, devagar, olhando pra mim de cima a baixo. Principalmente pro bendito shorts.
Senti minhas bochechas esquentarem. Não consegui disfarçar.
— Para com isso, Herus — sussurrei, a voz quase falhando. O jeito que ele falava princesa parecia um deboche, mas tinha um cuidado ali. Como se ele estivesse brincando com fogo e sabendo exatamente o que tava fazendo.
Pra piorar, Milena chegou nessa hora, dirigindo o carro caro do pai dela.
Linda. Cabelo loiro preso num coque bagunçado, batom vermelho combinando com a blusa da escola. Ela buzinou, abriu o vidro e sorriu daquele jeito que só ela sabia sorrir.
— Oi, gato! — soltou, mordendo o canto da boca.
Meu estômago embrulhou. Sempre embrulhava quando ela chamava alguém de “gato”, ainda mais se fosse o meu crush. E mesmo assim, como se o universo fosse generoso comigo por um segundo, os olhos do Herus não desgrudaram de mim.
— Tá cuidando da minha princesa aí, loira?
Minha princesa.
Eu quase tropecei no próprio pé.
E, claro, quem chegou junto logo depois foi Vicente. Ombro contra ombro com o Herus, o clima pesou de verdade.
— Fica longe da minha irmã, Cachorrão.
O apelido. A provocação. O jeito que Vicente falou foi puro aviso. E eu sabia que, ali, meu irmão era muito mais perigoso que o Herus.
Herus ajeitou a corrente no pescoço, sorriso ainda nos lábios, mas o olhar… O olhar era outro. Seriedade. Promessa.
— Relaxa, Zé. Tô só brincando.
Brincando. Brincadeira nenhuma. Quem conhecia o Herus sabia que aquele sorriso escondia segredos. E quem conhecia o Vicente sabia que ele era do tipo que não deixava nada passar batido.
Enquanto eu entrava no carro da Milena, minhas pernas tremiam. Olhei uma última vez pra trás. O sorriso dele ainda tava lá, mas o olhar agora era só pra mim.
E eu?
Eu tava completamente ferrada.
Porque no meio desse jogo perigoso de mundos diferentes, eu era a peça mais frágil.
Ou achava que era.
Até hoje.
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