Capítulo 1 — Sophia

1105 Words
Acordei com o sol atravessando as frestas da cortina, iluminando meu quarto de um jeito que me dava preguiça. O cheiro de café subia da cozinha e preencheu o ambiente. Aroma de casa, de manhã de rotina, de vida no morro. Era minha última semana antes das provas finais do terceiro ano. Faltava pouco pra acabar o ensino médio. Faltava pouco pra tudo mudar. E eu nem sabia se tava pronta pra isso. Na real, eu não sabia nem lidar direito com as coisas que já estavam acontecendo. Tipo ele. Herus. O problema com H maiúsculo, como eu mesma apelidei. E pior: afilhado da minha mãe e do meu pai. Não tinha como ser mais confuso. Meu celular vibrou em cima da cômoda. Era a Milena, minha melhor amiga desde a terceira série, mandando áudio no tom mais animado possível: — Sophia! Tô quase chegando na sua quebrada! Se demorar, eu vou sem você, hein? Hoje tem ensaio do coral depois da aula, lembra? Sorri sozinha. A Milena é aquele tipo de pessoa que parece que veio ao mundo com glitter. Rica, linda, confiante. Mora num prédio chique no asfalto, perto da escola particular onde a gente estuda. Mas todo santo dia pega o carro pra me buscar no morro. Isso mesmo. Ela sai de um apartamento climatizado pra entrar na minha quebrada cheia de escadão e roupa no varal. Não tinha como não amar uma amiga dessas. Mas o pai dela… Nossa, o pai dela nem sonha que a filha atravessa o túnel da cidade alta pra cá. Nem imagina que a melhor amiga da princesa dele é filha do dono do morro. E se descobrisse então quem era o meu crush? Aí era caso de polícia. — Neném, tá pronta? — a voz do meu pai ecoou pelo corredor. Murilo. Ou Falcão, se você perguntar por ele lá fora. Pra mim, ele sempre foi só papai. O homem que acordava cedo pra fazer café quando minha mãe tava de plantão no postinho. O mesmo que me ensinou a andar de bicicleta e que tirava sarro das minhas notas boas, me chamando de nerd. Hoje ele apareceu encostado no batente da porta, com aquela cara desconfiada que ele reservava só pra mim. — Tá bonita hoje — ele falou, estreitando os olhos. — Mas esse shorts aí… não tá meio curto, não? Revirei os olhos. — Papai, pelo amor de Deus! Tá um calor dos infernos! Mas no fundo eu sabia: ele não tava reclamando por m*l. Era medo. Medo do que o mundo podia fazer comigo. Ele vivia entre dois mundos também — o pai carinhoso em casa, e o chefão que comandava tudo ali fora. E, por mais contraditório que fosse, ele sempre quis que eu ficasse longe desse lado dele. — Não gosto desses moleque te olhando torto por aí — ele resmungou. Eu podia até enganar os outros, mas minha mãe me decifrava no olhar. Falando nela… A doutora Melissa Meyer. Médica do postinho aqui do morro. Linda, braba, dona da maior paciência do mundo — menos quando o assunto era meu pai. Era ela quem equilibrava a nossa família. Ela e o vovô Fausto, que também trabalhava no postinho, viviam ali tentando transformar o caos em alguma coisa boa. Mas aí veio ele. Meu irmão. — Que isso, Sophia? Vai sair assim? — José Vicente apareceu atrás do nosso pai, já com aquela cara fechada de sempre. Vicente era três anos mais velho que eu e agia como se fosse meu pai número dois. Controlador. Ciumento. E completamente apaixonado pela Milena, a ponto de ficar mudo toda vez que ela aparecia. Só que em vez de falar isso pra ela, ele preferia descontar tudo em mim. — Não enche, Vicente — murmurei. — É só um shorts. — Se eu ver algum moleque te encarando na rua, arranco os olhos dele, falou, sério. Eu nunca sabia se ele tava brincando ou não. Balancei a cabeça e saí, porque quanto mais eu ficasse ali, mais ia me atrasar. Foi só pisar na calçada que o ar pareceu pesar. Não pelo calor, mas por causa dele. Herus. Encostado na esquina da ladeira, uniforme da escola desabotoado até o meio do peito, tatuagem enorme quase sumindo no tom bronzeado da pele. Corrente prateada balançando devagar. Ele era aquele tipo de erro que a gente já sabia onde ia dar, mas mesmo assim queria cometer. Quando me viu, abriu aquele sorriso maroto. Um canto da boca só, como quem já sabia a bagunça que causava. — Princesa Meyer — ele soltou, devagar, olhando pra mim de cima a baixo. Principalmente pro bendito shorts. Senti minhas bochechas esquentarem. Não consegui disfarçar. — Para com isso, Herus — sussurrei, a voz quase falhando. O jeito que ele falava princesa parecia um deboche, mas tinha um cuidado ali. Como se ele estivesse brincando com fogo e sabendo exatamente o que tava fazendo. Pra piorar, Milena chegou nessa hora, dirigindo o carro caro do pai dela. Linda. Cabelo loiro preso num coque bagunçado, batom vermelho combinando com a blusa da escola. Ela buzinou, abriu o vidro e sorriu daquele jeito que só ela sabia sorrir. — Oi, gato! — soltou, mordendo o canto da boca. Meu estômago embrulhou. Sempre embrulhava quando ela chamava alguém de “gato”, ainda mais se fosse o meu crush. E mesmo assim, como se o universo fosse generoso comigo por um segundo, os olhos do Herus não desgrudaram de mim. — Tá cuidando da minha princesa aí, loira? Minha princesa. Eu quase tropecei no próprio pé. E, claro, quem chegou junto logo depois foi Vicente. Ombro contra ombro com o Herus, o clima pesou de verdade. — Fica longe da minha irmã, Cachorrão. O apelido. A provocação. O jeito que Vicente falou foi puro aviso. E eu sabia que, ali, meu irmão era muito mais perigoso que o Herus. Herus ajeitou a corrente no pescoço, sorriso ainda nos lábios, mas o olhar… O olhar era outro. Seriedade. Promessa. — Relaxa, Zé. Tô só brincando. Brincando. Brincadeira nenhuma. Quem conhecia o Herus sabia que aquele sorriso escondia segredos. E quem conhecia o Vicente sabia que ele era do tipo que não deixava nada passar batido. Enquanto eu entrava no carro da Milena, minhas pernas tremiam. Olhei uma última vez pra trás. O sorriso dele ainda tava lá, mas o olhar agora era só pra mim. E eu? Eu tava completamente ferrada. Porque no meio desse jogo perigoso de mundos diferentes, eu era a peça mais frágil. Ou achava que era. Até hoje. DEIXE COMENTÁRIOS E BILHETE LUNAR SIGA MEU PERFIL DREAME!
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