CAPÍTULO 7
MAGRÃO NARRANDO:
Tava sentado no caixote da boca, com a prancheta no colo, anotando as vendas do turno da manhã. O sol batia direto no beco, aquele calor que subia do chão feito fumaça quente, deixando tudo meio embaçado. O movimento tava normal: uns moleque passando pra entregar pacote, outros voltando com o dinheiro contado. Eu tava ali, concentrado, fazendo as somas, quando ouvi o passo pesado do Gringo subindo a viela.
Gringo sempre chegava com presença. Não precisava falar nada, o morro já sabia que era ele. Alto, forte, tatuagem pegando o pescoço… e aquele olhar que ninguém encarava muito tempo. Só que comigo era diferente. A gente cresceu junto aqui, então ele chegava mais solto.
— Fala tu, porrä — ele disse, chutando um pedacinho de pedra na minha direção, daquele jeito dele de avisar que tava chegando.
Levantei os olhos da prancheta.
— Qual foi? Tô fechando o caixa do plantão da manhã. Aqueles moleque tão entregando menos, já tô de olho.
Ele deu uma risadinha curta, encostando o ombro no batente da porta.
— Depois tu vê isso. Vim falar de outra parada.
Eu já sabia que quando ele vinha com esse papo, era coisa séria. Fechei a prancheta com o elástico e deixei de lado.
— Manda.
— Arrumei a professora pra escola.
Dei uma risada irônica sem pensar duas vezes.
— Professora? Tu? — ergui a sobrancelha. — Tá de brincadeira com a minha cara.
Gringo revirou os olhos.
— c*****o Magrão, tu parece uma véia resmungona. Eu tô falando sério.
Me ajeitei no caixote, ainda desconfiado.
— Quem?
— Uma amiga da Rafaela — ele respondeu seco, cruzando os braços.
Ah, pronto.
— Amiga da Rafaela? — falei alto, com indignação real batendo dentro de mim. — Tá aceitando gente de fora no morro agora, caralhø?
Alguns moleque que estavam perto até pararam pra olhar, mas Gringo levantou só uma das mãos e todo mundo virou rápido de volta pro que tava fazendo. Ele não precisava falar duas vezes.
— Calma, porrä — ele rosnou, chegando mais perto, com aquela cara de que ia me dar um tapa na orelha. — Eu já puxei a fita da mina. É de boa.
Cruzei os braços também, sem abaixar a cabeça.
— Sei não, mano. Esse bagulho de trazer gente de fora nunca dá bom. Tu sabe disso.
— A Rafaela já tá com ela — ele rebateu. — E a mina tá vindo de merdä pesada, tá ligada? A Rafaela me contou por cima. Família daquelas que acha que pode mandar na vida dos outros. O ex dela é um lixo. A mina saiu fugida.
Eu dei uma fungada, respirando aquele cheiro misturado de morro: comida, suor, fumaça. Tudo junto.
— Fugida?
— Fugida — ele confirmou. — Vai morar com a Rafa. A mulher é estudada, tem diploma, porrä. Sabe ensinar. A escola do morro tá precisando de alguém com responsabilidade.
Eu passei a mão na barba, pensativo.
Gringo continuou:
— A escola tá largada, Magrão. Tu sabe, quase não tem professora para as crianças. tia Marta tá quase tendo um troço todo dia tentando organizar aquilo sozinha. As criança não têm referência nenhuma, mano. Se a gente bota alguém firme lá, alguém que sabe o que tá fazendo… ajuda no nosso nome também. Tu entende onde eu quero chegar.
Entendi. Era mais do que "ajudar as crianças". Isso era política do morro. Respeito. Imagem. Controle. E, principalmente, proteção.
Suspirei alto.
— Tá. Mas tu confia nela assim tão fácil?
— Confio na Rafaela — ele rebateu na lata. — E a Rafaela confia nela.
E pronto. Esse era o argumento final. Rafaela era praticamente conhecida do morro inteiro. Todo mundo gostava dela. Era o tipo de pessoa que ninguém conseguia odiar. Sempre ajudando, sempre correndo atrás, sempre colocando luz onde só tinha sombra.
Eu ajustei o boné e perguntei:
— A mina já chegou?
— Deve tá chegando. O ônibus dela chegou agora há pouco. A Rafa já foi buscar na rodoviária. Daqui a pouco tão subindo o morro.
Balancei a cabeça devagar.
— Beleza. Mas vou ficar de olho. Tu me conhece, né?
Gringo deu um sorriso de canto, aquele sorriso que dizia "é por isso que tu é meu braço direito, p***a".
— É pra ficar mesmo — ele respondeu. — Mas sem assustar a mina. Já chegou arrebentada da vida. Deixa ela respirar, caralhø.
Eu levantei as mãos em rendição.
— Eu hein. Já tá achando que eu vou comer ela no tapa?
— Não. Mas tu tem essa cara de cu fechada que assusta santo — ele debochou.
Joguei a tampa da caneta nele. Ele riu e desviou.
— Vai tomar no cu, Gringo.
— Vai trabalhar, porrä — ele retrucou.
Ele deu meia-volta pra ir embora, mas antes de sumir na curva do beco, falou por cima do ombro:
— E vê se confia. Se ela tá com a Rafaela, ela tá com a gente.
Fiquei olhando até ele desaparecer na viela. Depois voltei pra prancheta, mas a cabeça continuou longe, imaginando quem era essa tal de amiga fugida. Professora, estudada, vindo pra morar no morro… era estranho. Diferente do que a gente tava acostumado.
Peguei o lápis e comecei a somar de novo, mas escrevi os números tortos. A mente não queria focar.
A Rafaela… ela sempre teve esse coração grande demais. Sempre foi o tipo que acolhe. E eu sabia que isso um dia ainda ia trazer problema pra ela. O morro não é lugar pra gente quebrada. A gente já tem problema demais pra segurar a onda dos outros.
Mas Gringo confiava. Isso queria dizer muita coisa. Eu respirei fundo, encostando no batente da porta.
— Professora nova no morro… — murmurei pra mim mesmo. — Vai ser interessante.
Fechei a prancheta, conferi pela última vez os números e dei o OK no rádio avisando que o caixa da manhã tava fechado. Dinheiro contado, pacote conferido, tudo dentro do que tinha que ser. Guardei as notas na mochila preta, tranquei o cadeado do portão lateral da boca e estiquei o pescoço, tirando a tensão dos ombros.
O sol já tava mais fraco, mas o morro continuava quente. Peguei a chave da moto no bolso e caminhei até ela, parada no cantinho do beco, em cima do cavalete. Passei a mão no tanque como se fosse bicho de estimação.
— Bora, minha filha… — murmurei.
Subi e girei a chave. O ronco do motor preencheu o beco inteiro. Alguns moleque olharam, outros levantararam a mão em cumprimento. Dei partida, engatei a primeira e arrastei a moto pra fora da sombra.
Antes de dobrar a curva, joguei um último olhar pra boca.
Trampo feito.
Agora era seguir o fluxo.
Acelerei e desci o beco, deixando a poeira e o barulho pra trás.
Continua....
Deixem bilhetinhos 📚📚