CAPÍTULO 6
YASMIN NARRANDO:
Subir o morro parecia uma eternidade. Cada degrau, cada viela, cada curva era uma nova descoberta, e uma lembrança do quanto a vida podia mudar em poucas horas. Eu, que até ontem vivia trancada num apartamento gelado, agora subia uma ladeira cheia de vozes, música e cheiro de feijão no fogo.
Rafaela seguia na frente, equilibrando minha mala como se fosse nada. Eu tentava acompanhar o passo dela, ofegante, olhando tudo com curiosidade. As casas se amontoavam umas sobre as outras, coloridas, tortas, mas cheias de vida. Crianças brincavam nas calçadas, mulheres conversavam nas portas, e o som distante de um funk ecoava, misturado com o barulho dos pássaros.
— Falta pouco, amiga — Rafaela disse, rindo quando percebeu meu cansaço. — O morro parece grande, mas depois que acostuma, é rapidinho.
Assenti, limpando o suor da testa com as costas da mão.
— Tá tranquilo… só tô desacostumada a andar tanto.
— É, depois que tu começar a trabalhar na escola, vai ficar fácil. As crianças me fazem subir e descer isso aqui todo dia. — Ela deu uma risadinha. — No começo, eu achei que ia morrer subindo. Agora, se não subir, sinto falta.
Eu ri, mesmo sem fôlego. Aquela energia dela era contagiante. Tinha algo na Rafaela que me fazia acreditar que tudo ia dar certo, mesmo quando nada parecia possível.
Depois de mais duas curvas, ela apontou pra uma casinha bege, pequena, com uma sacada minúscula e flores plantadas em garrafas plásticas.
— É aqui. — Ela empurrou o portão de ferro, que rangeu alto. — Bem-vinda ao meu palácio.
Subimos dois lances de escada, e entramos num apartamento que parecia ter sido abraçado pelo sol. O lugar era pequeno, uma kitnet com cozinha, um sofá, uma cama de casal encostada na parede e um guarda-roupa de madeira escura. Mas tinha cheiro de lar. Cheiro de café, de limpeza, de vida.
— Eu sei que é apertado — Rafaela disse, meio sem jeito. — Mas vai dar tudo certo, tá? Se ajeita aí. A gente divide tudo. Cama, comida, conversa… o que precisar.
Olhei em volta e senti um nó na garganta. Não era luxo, não era conforto. Mas era liberdade. Era abrigo.
— Tá ótimo, Rafa. — Falei baixinho. — É um recomeço pra mim, e é tudo o que eu preciso.
Ela me olhou com ternura e, sem dizer nada, se aproximou. Passou a mão de leve na lateral do meu rosto, os dedos encostando no meu lábio machucado.
— Olha o que aquele desgraçado fez com você, Yas… — sussurrou, com a voz embargada. — Eu juro, se eu tivesse na tua cidade, eu tinha acabado com ele com as próprias mãos.
Abaixei os olhos, sentindo o coração apertar. A lembrança do rosto dele, das mãos pesadas, da raiva nos olhos, veio como um raio.
Respirei fundo, tentando afastar o passado.
— Eu só quero esquecer. — falei, num fio de voz. — Esquecer tudo o que aconteceu e viver uma nova vida. Sem medo, sem dor. Eu só quero ser eu de novo, Rafa.
Ela assentiu, ainda me olhando com carinho.
— E vai ser. Eu prometo. Aqui ninguém encosta em você.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, o som do ventilador preenchendo o ar. Lá fora, dava pra ouvir crianças brincando e uma moto subindo a rua. Aquela vida simples, vibrante, me abraçava de um jeito que eu não sentia há anos.
Rafaela quebrou o silêncio:
— Ah, e eu já falei de você pro Gringo. — Ela se sentou no sofá, cruzando as pernas.
— Gringo? — perguntei, sem entender.
— É o sub do morro, o braço direito do Magrão. Eu contei pra ele que você tá chegando, que é professora e que vai trabalhar na escola. Ele gosta de saber quem entra no morro, sabe?
Meu corpo ficou rígido por um instante.
— E… ele aprovou?
Ela sorriu.
— Disse que tudo bem. Então amanhã mesmo você pode começar na escola. A diretora já confirmou.
Senti o coração bater rápido, dessa vez, de emoção.
— Amanhã? Mesmo?
— Mesmo. — Rafaela abriu um sorriso largo. — A turma do primeiro ano tá precisando de professora. Vai ser ótimo pra você. E pra eles também.
Uma alegria tímida nasceu dentro de mim. Fazia tanto tempo que eu não sentia isso, uma sensação boa, genuína, de que talvez o futuro pudesse ser leve outra vez.
— Obrigada, Rafa… por tudo. — falei, sentando na beira da cama. — Eu não sei como vou te agradecer.
Ela riu.
— Agradece ficando. Só isso. — E piscou. — E agora, bora te ajeitar. Tenho uma parte do guarda-roupa livre pra você colocar tuas coisas.
Se levantou, abriu a porta do armário e empurrou algumas roupas pro lado.
— Olha, metade é tua. Pode colocar tudo aí. E se faltar cabide, a gente dá um jeito. Aqui tudo se resolve com prego e boa vontade.
Sorri. Peguei a mala e a coloquei na cama. Quando abri o zíper, um cheiro familiar escapou, o cheiro de casa, de lembranças, de coisas que já não me pertenciam mais.
As roupas dobradas pareciam tristes, gastas, como se tivessem absorvido o medo dos últimos meses.
Peguei uma blusa e passei os dedos pelo tecido. Lembrei do dia em que comprei, antes do casamento. Eu sorria, acreditando que a vida ia ser bonita. Que amor era sinônimo de segurança.
Engoli em seco e dobrei a blusa de novo, guardando no armário. Uma a uma, fui colocando as roupas, como quem devolve a alma ao corpo.
Cada peça guardada era um pedaço da vida que eu estava tentando reconstruir.
Rafaela se encostou na parede, observando em silêncio.
— Sabe, Yas, quando eu cheguei aqui também não tinha nada. — Ela sorriu.
— Vim do interior, cheia de medo. Achei que não ia aguentar. Mas o morro… — ela olhou pra janela, pra o movimento lá fora — o morro ensina a ser forte. A gente chora um dia, no outro levanta e segue.
— É isso que eu quero — respondi, sem parar de organizar. — Seguir.
Ela ficou me olhando por um tempo, depois disse, com um tom mais sério:
— Só promete uma coisa.
— O quê?
— Que nunca mais vai abaixar a cabeça pra homem nenhum.
As palavras dela ecoaram dentro de mim. Fechei o armário e virei pra ela.
— Prometo.
Um silêncio bonito se fez entre nós. O tipo de silêncio que conforta, não que assusta.
Rafaela foi até a pia e colocou água pra ferver.
— Vou fazer um café. Tu tá com fome?
— Um pouco, mas não precisa se preocupar.
Sentei à mesa pequena enquanto ela preparava o café. O cheiro quente e doce se espalhou pelo ar, misturado com o de pão torrado. Senti o estômago roncar, fazia horas que eu não comia direito.
Ela colocou duas xícaras na mesa e serviu o café.
— Amanhã cedo eu te levo na escola. Quero ver tua cara quando conhecer a molecada. Eles são um caso à parte.
— m*l posso esperar — respondi, sorrindo.
Enquanto tomávamos café, comecei a reparar nos detalhes da kitnet: as fotos coladas na parede, a cortina florida, a pequena TV apoiada em cima de uma caixa de som. Tudo simples, mas cheio de história.
— É bonito aqui — comentei. — Tem alma.
Rafaela deu uma risada baixa.
— Alma e barulho. — Fez um gesto em direção à janela, de onde vinha o som de risadas e motos. — Mas depois tu acostuma.
Ficamos conversando por um tempo, sobre a escola, sobre as crianças e até sobre o morro. Rafaela me contou histórias engraçadas e outras que me deixaram de cabelo em pé, tiroteios, confusões, mas também solidariedade, gente boa que se ajuda sem pedir nada em troca.
Quando o sol começou a descer, a luz alaranjada invadiu a sala.
Rafaela se espreguiçou e disse:
— Eu vou tomar um banho. O banheiro é ali no canto, tá? Depois tu vai.
Assenti. Enquanto ela estava lá dentro, fiquei parada na janela, olhando o morro. A vista dali era linda e crua ao mesmo tempo. As casas coloridas pareciam coladas umas às outras, e, no alto, o céu começava a mudar de cor.
Um grupo de rapazes passou pela rua, rindo alto, o som das armas batendo contra o jeans. Eu desviei o olhar, o coração acelerando, mas, ao mesmo tempo, havia uma sensação estranha, como se aquele fosse o mundo real, cru, sem disfarces.
Pensei em tudo o que deixei pra trás. No medo, na dor, nas ameaças.
E percebi que, apesar de tudo, eu estava viva.
Quando Rafaela saiu do banho, rindo de alguma coisa, a vida pareceu mais leve.
— Tua vez, Yas. E depois, se quiser, a gente vê um filme. A TV pega dois canais, mas a gente finge que tá no cinema.
Ri. Peguei uma toalha emprestada e fui.
A água do chuveiro era fria, mas cada gota parecia lavar um pedaço da minha alma. Fiquei ali por minutos, talvez horas, sentindo a água escorrer, levando embora o que sobrou de dor.
Quando saí, vesti uma roupa limpa e deitei ao lado dela na cama. O colchão era pequeno, mas o coração estava leve.
Rafaela apagou a luz, e o morro continuava vivo lá fora, risadas, motos, música, o som da vida seguindo.
Continua....
Deixem bilhetinhos 📚