5- CHEGANDO NO RIO

1467 Words
CAPÍTULO 5 YASMIN NARRANDO: O coração acelerou quando o ônibus passou pela placa azul, já gasta pelo tempo: “Bem-vindo ao Rio de Janeiro.” Peguei o celular, as mãos ainda trêmulas, e digitei pra Rafaela: — Rafa, tô chegando. O ônibus acabou de passar pela placa. A resposta veio quase de imediato, com aqueles coraçõezinhos que ela sempre mandava. — Tô a caminho da rodoviária, amiga! Fica tranquila, vou te esperar no portão de desembarque. Suspirei fundo. O vidro da janela tremia. Fechei os olhos por um instante, tentando guardar essa sensação. O motor do ônibus fazia um barulho constante, como um coração gigante batendo por todos nós que fugíamos de alguma coisa. Quando o ônibus finalmente entrou na rodoviária, o corpo inteiro ficou tenso. O motorista anunciou pelo alto-falante: — Rodoviária Novo Rio. Fim da linha, pessoal. Apertei a alça da bolsa e fiquei parada alguns segundos, respirando. As pessoas levantavam, se espremendo no corredor, falando alto, rindo, arrastando malas. Eu fiquei ali, imóvel, tentando reunir coragem pra levantar. Por fim, me levantei e desci os degraus devagar. O ar da rodoviária tinha cheiro de fumaça, café e pressa. Milhares de passos, vozes, buzinas misturadas. Peguei minha mala no bagageiro e procurei um canto livre. Achei um banco de ferro perto da saída e sentei. A mala encostada nas pernas, o coração ainda batendo rápido. Eu olhava pra porta toda hora, esperando ver o rosto da Rafaela surgir no meio da multidão. Vinte minutos depois, ela apareceu correndo, o cabelo preso num coque bagunçado, sorriso aberto, os braços estendidos. — Amiga! — gritou antes mesmo de chegar perto. Levantei de repente, e quando ela me abraçou, senti o corpo inteiro desabar. Meus olhos se encheram d’água e, por um instante, eu me permiti chorar. Chorar de cansaço, de medo, de gratidão. — Obrigada, Rafa… — minha voz saiu fraca. — Se não fosse você, eu nem sei… Ela me apertou mais forte. — Ei, não fala isso. Você teve coragem. E coragem é o que te salva, Yasmim. Se escuta: nunca mais volta pra aquele desgraçado. Nunca mais. Assenti, engolindo o choro. — Nunca mais — repeti, e dessa vez a frase saiu firme. Rafaela se afastou um pouco, olhou meu rosto com cuidado. — Agora acabou. Você tá segura, ouviu? Assenti outra vez. Ela sorriu e pegou a minha mala. — Vamos. O ônibus pra Penha passa ali na frente. É rapidinho. Acompanhei o passo dela até o ponto mais próximo. O barulho da cidade era ensurdecedor: buzinas, gritos, vendedores ambulantes oferecendo tudo que se possa imaginar. E mesmo assim, havia algo de reconfortante naquela bagunça, era vida. Vida real, pulsando, sem medo. Ficamos ali alguns minutos até o ônibus chegar. A placa da frente dizia, em letras brancas e gastas: PENHA. — É esse! — Rafaela avisou, levantando o braço. O motorista encostou, e subimos juntas. O cobrador nos cumprimentou com um “bom dia” rouco, e Rafaela pagou a passagem das duas. Nos sentamos no fundo, onde o barulho do motor era mais alto, e a janela deixava entrar o vento quente do Rio. Rafaela, como sempre, começou a falar, era impossível não sorrir ouvindo ela. — A escola é pequena, sabe? Mas as crianças são maravilhosas. A maioria vem sem café da manhã, e a gente tenta fazer um lanche coletivo, com ajuda do dono do morro. Às vezes falta material, mas não falta amor. Ouvir ela falar assim, com brilho nos olhos, me deu uma paz estranha. Eu tinha fugido de um inferno e estava indo pra um lugar pobre, perigoso talvez, mas, pela primeira vez, parecia que eu estava indo pra algum lugar onde eu poderia existir. — Você vai gostar — ela continuou. — É tudo simples, mas o pessoal te recebe de braços abertos. Agora, claro, tem as regras do morro, né? — Regras? Ela me olhou de lado, séria pela primeira vez. — É… Aqui quem manda é o Magrão. — Magrão? — repeti, sem entender. — O dono do morro. É ele que controla tudo lá. Não se mete com ele, nem com os caras dele. Se um dia ouvir tiro, abaixa a cabeça e não pergunta nada. E, principalmente, nunca olha pra eles por muito tempo. Fiquei quieta. O nome dele ficou ecoando na minha cabeça. Magrão. Um nome simples, mas que parecia carregar peso. O ônibus subia pelas ruas estreitas do bairro, e cada curva mostrava um pedaço diferente da cidade: becos apertados, muros pichados, roupas coloridas penduradas nos varais, crianças correndo descalças entre os carros. Quando o motorista gritou “Penha!”, Rafaela puxou a cordinha e o ônibus parou. Descemos juntas. O ar ali era diferente, quente, vivo, denso. O cheiro de comida misturado com fumaça e música. No pé do morro, um pequeno comércio fervilhava: gente vendendo pastel, outros conversando alto, alguns olhares desconfiados pra quem chegava. — Bem-vinda ao morro, amiga — Rafaela disse com um meio sorriso. — Agora é só subir. Olhei pra cima. As casas se empilhavam umas sobre as outras, coloridas e tortas, como se desafiando a gravidade. As vielas eram estreitas, e as vozes ecoavam pelas paredes. No alto, um grupo de rapazes encostados numa moto observava tudo com atenção. Foi impossível não sentir o coração acelerar. Dois deles seguravam fuzis. Outros, pistolas à mostra, o boné virado pra trás. O olhar deles era firme, frio, calculado, como se cada movimento nosso estivesse sendo avaliado. — Fica tranquila — Rafaela murmurou perto do meu ouvido. — Eles sabem quem entra e quem sai. Comigo, tá tudo certo. Assenti, engolindo o medo. O chão de paralelepípedo rangia sob nossos passos, e o som de um funk ecoava de alguma casa próxima, vibrando nas paredes. O morro parecia um corpo vivo, respirava, observava, julgava. Conforme subíamos, as pessoas iam surgindo: Uma senhora varrendo a calçada, um menino empinando pipa, um cachorro dormindo ao lado de um botijão vazio. Era um caos bonito, humano, verdadeiro. Mas ainda assim, os olhos armados no alto me seguiam. E eu não conseguia deixar de pensar que, em algum lugar dali, estava ele, o homem que mandava em tudo, que decidia o que vivia e o que morria naquele pedaço de chão. — A escola é logo ali — Rafaela apontou, quebrando meu devaneio. — Vem, que eu te mostro. Entramos por uma ruazinha lateral, com muros pichados e um portão azul descascado. Por trás dele, dava pra ver um pátio pequeno com algumas crianças brincando. A parede da escola tinha desenhos feitos à mão, arco-íris, casinhas, flores tortas, tudo colorido e cheio de esperança. — Aqui é o nosso pedacinho de luz — ela disse, abrindo o portão com um sorriso. — A diretora tá te esperando. Eu sorri, um sorriso tímido, mas verdadeiro. Por um instante, esqueci os fuzis, o medo, o passado. Ali dentro, o barulho era diferente. As vozes das crianças, os risos, o som de giz riscando o quadro. Era como se o mundo lá fora tivesse ficado suspenso por alguns segundos. — Yasmim! — Uma mulher alta, de óculos e cabelo preso, veio ao nosso encontro. — Seja bem-vinda! Rafaela falou muito de você. Apertei a mão dela com cuidado, ainda sentindo a mala pesando nos dedos. — Obrigada. Eu tô muito feliz pela oportunidade. — Aqui a gente trabalha com o coração — ela respondeu, sorrindo. — E com o que tiver. Vai ser bom ter mais uma professora assim com a gente. Rafaela me mostrou a pequena sala que seria minha. Tinha quatro fileiras de carteiras antigas, um ventilador barulhento e um armário cheio de livros usados. Mesmo assim, era o lugar mais bonito que eu já tinha visto em muito tempo. — É aqui que você vai ensinar, sonhar e recomeçar, amiga — Rafaela disse, apoiando a mão no meu ombro. — E não se preocupa, tá? O Magrão não mexe com a escola. Ele respeita o espaço das crianças. Assenti, mas uma parte de mim ainda estava curiosa. Quem era esse homem que todo mundo parecia temer? Por que ele, que controlava tudo, respeitava um lugar tão pequeno quanto aquele? Enquanto olhava pela janela da sala, vi lá fora um vulto passando na rua, um homem alto, de camisa preta, tatuagem subindo pelo braço, um olhar distante. Por um segundo, nossos olhos se cruzaram. Foi rápido. Mas suficiente pra me deixar com o coração batendo estranho. Ele não sorriu, não falou nada. Só passou, com aquele ar de quem carrega o mundo nas costas. E, de algum modo, eu soube que era ele. O Magrão. Respirei fundo. Um arrepio percorreu a espinha, e Rafaela me chamou de volta à realidade. — Vamos? Vou te mostrar onde eu moro e onde você tá bem vai morar. É pertinho daqui. Continua....
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD