4- NA ESTRADA

1137 Words
CAPÍTULO 4 YASMIM NARRANDO O sol ainda nem tinha nascido quando chamei o carro pelo aplicativo. As mãos tremiam tanto que eu quase errei o endereço. O motorista demorou uns minutos pra chegar, e cada segundo parecia uma eternidade. Fiquei parada na calçada, abraçada na mala, com o coração batendo alto demais — como se o mundo inteiro pudesse ouvir. Quando o farol do carro surgiu na esquina, respirei fundo e acenei. — Pra rodoviária, por favor — falei baixo, entrando no banco de trás. O motorista me olhou rápido pelo retrovisor. — Vai viajar cedo, hein? — perguntou tentando puxar conversa. Assenti, olhando pela janela. — É… preciso ir logo. Não consegui dizer mais nada. A paisagem passava rápido, mas minha cabeça tava presa nos últimos dias. Cada esquina que o carro dobrava, parecia que eu deixava um pedaço da minha antiga vida pra trás. Quando vi a placa da rodoviária, o peito apertou — medo, alívio, tudo misturado. Paguei a corrida, agradeci e desci do carro. A mala pesava, mas o que mais pesava era a sensação de que, se eu olhasse pra trás, ia perder a coragem. Então segui em frente. Comprei a primeira passagem pro Rio de Janeiro que encontrei. O moço do guichê perguntou se eu queria janela ou corredor. — Janela — respondi sem pensar. Queria poder olhar pra fora e lembrar o tempo todo que eu tava indo embora de verdade. O relógio marcava sete e quinze quando o ônibus chegou. Entrei devagar, o rosto ainda doído, os olhos inchados. Escolhi um assento no meio, coloquei a mala no bagageiro e sentei. Assim que o motor ligou, o coração disparou de novo — só que dessa vez, diferente. Não era medo. Era o começo da minha liberdade. Peguei o celular e abri a conversa com a Rafaela. – Rafa, tô indo. Consegui pegar o ônibus pro Rio. Saindo agora. Demorou poucos segundos pra ela responder. – Graças a Deus, amiga! Vem tranquila. Eu te espero na rodoviária, tá? Já falei com a diretora da escola, a vaga é tua. Um sorriso tímido escapou. As lágrimas voltaram, mas agora eram de alívio. – Obrigada, Rafa. Tu tá salvando minha vida. Encostei a cabeça no vidro e fechei os olhos. O ônibus começou a andar, e a cidade foi ficando pra trás. Cada quilômetro que passava, eu sentia o peso diminuir — como se a estrada estivesse me limpando por dentro. Pela primeira vez em muito tempo, eu não sabia o que me esperava. Mas sabia o que deixava pra trás, e isso já era o bastante pra seguir. O ônibus já tinha pegado velocidade quando o celular vibrou do meu lado. O nome do Gustavo apareceu na tela como quem quer cortar tudo que eu tava construindo: GUSTAVO — (2 chamadas perdidas). O coração congelou por um segundo. Minha mão tremeu, segura no aparelho, e eu não atendi. Não podia atender. Não podia ouvir a voz dele outra vez dizendo que era culpa minha; não podia sentir outro “desculpa” seguido da ameaça que vinha sempre junto. As mensagens começaram a chegar rapidinho, uma atrás da outra. Li com os olhos ardendo: – Cadê você, sua desgraçada? Você não vai me abandonar não, você não vai fazer isso comigo. – Você vai ver. Eu vou atrás de você. Você não vai somir assim da minha vida. – Acha que eu não vou te achar? Vou te deixar sem andar de tanto apanhar dessa vez. Sua vagabundä, eu vou te matar. O meu estômago virou. A raiva dele vinha escrita em cada palavra, seca, certeira. Senti vontade de vomitar. Mas junto com o medo veio outra coisa: uma fúria pequena, íntima, dizendo que eu tinha feito a coisa certa. Que eu tava viva por ter saído. Abri a conversa, minhas mãos tremendo, e digitei nada — porque não precisava dizer nada. Ele já tinha colocado tudo lá: o ódio, a promessa de violência, a vontade de me controlar. Era como se cada frase cortasse minha pele por dentro. Respirei fundo. Pensei na Rafaela, na porta que me esperava, no quarto emprestado, na paz que prometeu. Pensei nas marcas no meu rosto, nas noites sem sono, nos dias em que acendi coragem como se fosse fósforo. Com o polegar, arrastei o dedo sobre a tela. Toquei em Bloquear. O nome do Gustavo sumiu da conversa. O telefone pareceu ficar mais leve na minha mão. O silêncio que ficou depois parecia estranho, quase absurdo de tão bom. No mesmo instante, a Rafaela mandou: – Tá tudo bem ? – Gustavo tá me mandando mensagem, me ameaçando. – Chega aqui logo, amiga. Não responde nada. Quando chegar, me liga que eu vou te buscar na rodoviária. Tá tudo certo aqui. Respondi com um “obrigada” curto, os olhos cheios d’água. Não era só alívio — era, de novo, medo. Bloquear não apagava a cara dele, nem a voz, nem a raiva. Mas me deu um espaço. Um respiro. Uma fresta onde eu podia pensar em próximo passo. Guardei o celular no bolso, apertei a alça da mala e encostei a cabeça no vidro. O ônibus cortava a estrada, e as árvores iam ficando pra trás como páginas que eu rasgava. Lá fora o mundo seguia, indiferente. Lá dentro, alguma coisa em mim começava a costurar os cacos. Fechei os olhos e deixei a paisagem levar o resto. Meu rosto latejava. Cada solavanco do ônibus fazia o corpo doer como se as pancadas ainda estivessem acontecendo. Peguei o celular, abri a câmera e encarei meu reflexo na tela — e por um instante desejei não ter feito isso. O olho tava inchado, roxo no canto. O lábio cortado, o sangue já seco, misturado com a base m*l passada da noite anterior. A pele sensível, marcada. A imagem de uma mulher que eu quase não reconhecia. Soltei o ar devagar, sentindo as lágrimas queimarem de novo. Abri a bolsa com as mãos trêmulas, peguei um lencinho e limpei o rosto com cuidado. O cheiro suave do lenço contrastava com o gosto metálico do sangue seco. Cada passada do pano era um lembrete da dor, mas também uma promessa silenciosa. Enquanto limpava, olhei pra mim mesma na tela do celular e murmurei: — Nunca mais… Engoli em seco, firmei o olhar. — Nunca mais nenhum homem encosta em mim. O vento que entrava pela janela batia no meu rosto e levava junto um pedaço da dor. Ainda doía, sim — mas, no fundo, tinha uma chama acendendo. Uma força pequena, tímida, mas viva. Fechei os olhos, encostei de novo no vidro e deixei o barulho do motor me embalar. O passado ainda sangrava, mas a estrada à frente parecia prometer alguma paz. E dessa vez, eu ia lutar pra ela ser minha. Continua.... Deixem bilhetinhos 📚
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