3- MAGRÃO

1253 Words
CAPÍTULO 3 MAGRÃO NARRANDO Ser dono do morro não é glória, não. É peso. É olho aberto vinte e quatro por sete. Aqui, se tu vacila um segundo, o chão te engole e ninguém lembra nem do teu nome. Eu aprendi isso do jeito mais cabuloso. Comecei no corre moleque, sem ter pai, mãe, nem ninguém pra me dar conselho. Fui criado em orfanato até os quatorze. Quando fugi, vim parar aqui na Penha — sem destino, só com a fome e a raiva nas costas. O antigo dono do morro era o Cascão, sangue-r**m, mandava e desmandava, mas tratava a quebrada como se fosse um lixão. Vendia pra polícia, traía os parceiros, deixava o povo morrer de fome enquanto o bolso dele engordava. Um dia, ele vacilou. Deixou a casa dele sem contenção achando que ninguém ia ter peito de encarar ele. Mas eu já tava de olho fazia tempo. Juntei uns quatro homens fiéis, subi na calada da noite, e o resto... foi barulho de tiro e grito ecoando entre as vielas. Quando o sol nasceu, quem mandava aqui era eu. Desde então, o respeito é a moeda que circula. Quem trabalha direito, come. Quem vacila, some. Meu braço direito é o Gringo — cria antiga, me acompanha desde os tempos de vapor. O bicho é frio, sangue nos olhos, não fala muito, mas pensa rápido. Se eu digo "vai", ele já foi. Se eu digo "mata", ele nem pergunta quem. Eu confio nele mais do que em qualquer outro. É o único que sabe onde eu durmo, o único que entra na minha casa sem bater. Tenho trinta anos, moreno, alto, tatuado da cabeça aos pés. O corpo é forte, mas não por vaidade — é pra aguentar o tranco. Cada marca na pele tem história: cicatriz de bala, corte de navalha, lembrança de quem tentou e não conseguiu me derrubar. Família? Não tenho, não. Quem nasce sozinho aprende que amor é fraqueza. E aqui no morro, fraqueza é o que mais mata. A Penha hoje é minha. Cada viela, cada barraco, cada esquina tem olho e ouvido voltado pra mim. Mas eu sei que essa paz é fina, quase invisível. Num piscar, tudo pode virar fumaça. Por isso eu mantenho o foco, a arma na cintura e o respeito no olhar. Porque aqui, quem vacila morre, e eu não nasci pra morrer — nasci pra mandar. Hoje eu moro no alto do morro, num bagulho que eu mesmo nunca pensei em ter. Uma mansão de verdade — piscina, varanda com vista pro morro todo, churrasqueira, quarto com cama king e lençol caro. Tem dia que eu paro na beira da sacada, olho pra baixo e fico lembrando do muleque que dormia em chão de abrigo, com fome e frio, jurando que o mundo já tinha acabado pra ele. Nunca sonhei em luxo, não. Meu sonho sempre foi poder mandar. E agora eu mando. Cada canto daqui de cima é conquista minha. O chão que piso tem sangue, tem suor e tem história. Quem olha de fora acha bonito, acha que é vida boa… Mas ninguém imagina o que custou pra eu chegar até aqui. Não foi sorte, foi estratégia. Foi ficar acordado enquanto os outros dormiam, foi desconfiar até da sombra, foi enterrar parceiro que vacilou e sorrir pra inimigo até a hora certa de puxar o gatilho. Aqui em cima, a vista é linda… mas é fria. Quanto mais tu sobe, mais solidão vem junto. Tem mina que sobe comigo só pra tirar foto, pra dizer que ficou com o dono do morro, mas vai embora antes do sol nascer. Afeto não sobe ladeira, não. O Gringo vive me zoando, diz que eu virei patrão de novela com esse casarão e carro importado. Mas ele sabe que nada disso me deslumbra. Pra mim, mansão é só um abrigo mais caro. O morro continua sendo meu campo de guerra, e eu sigo pronto pra atirar se alguém tentar tomar o que é meu. Acendo um baseado, encosto no corrimão da varanda e vejo a quebrada lá embaixo, viva, pulsando. Cada luz piscando é um corre acontecendo, cada som é um pedaço da minha história rodando no eco das vielas. Aqui de cima, eu mando. Mas lá no fundo, ainda tem uma parte de mim que lembra o muleque que não tinha nada. E talvez seja por isso que eu nunca relaxo. Porque o Magrão de hoje vive cercado de tudo que o Magrão de ontem sonhou… Mas continua sozinho, igualzinho antes. Tava eu encostado na varanda, fumando, quando a porta se arrebenta e o Gringo entra feito um trem. O bicho sempre chega no pique — sem cerimônia, sem tempo r**m. — Patrão! — ele falou, já vindo em minha direção. — Tem um corre aqui que tá pegando. A escola tá meio enrolada. Fiz aquele sinal com a cabeça pra ele falar logo. Odeio homem enrolado. — Fala logo então — respondi seco. — Que que pegou na escola agora? Ele puxou uma cadeira, sentou pesado e me contou com pressa, olhando pros cantos como quem não quer ser ouvido: — Tá faltando professora, chefe. A diretora veio na boca ontem, disse que a gurizada tá sem aula e a mãe das criança tão reclamando. Disse que se a gente não resolver, a assistência vai meter a mão e vai ser a maior vergonha — fez cara de nojo. — Tá difícil achar alguém daqui que queira dar aula, patrão. Quem tem coragem já tem trampo, e quem não tem… não tem preparo. Mordi o canto do lábio. Escola. Criança. Coisa que sempre foi meio delicada pro meu mundo. Sempre deixei a educação de lado — balcão fechado, favela organizada — mas nunca fui de deixar a comunidade quebrada sem suporte quando convém. — Tu quer que eu pegue alguém de fora? — perguntei, já vendo o perigo. — Não quero estranho metendo dedo aqui. O Gringo fez cara de quem tentava balancear as opções: — É que… a diretora quer alguém, chefe. Disse que tem vaga urgente. Se a gente não arruma rápido, vai virar caso — falou baixo. — E aqui na comunidade não tem ninguém qualificada sobrando não. A gente já tentou. Fiz um silêncio. Pensei nas opções: botar um filho da quebrada pra ministrar aula sem preparo. — Se vira — mandei curto, levantando devagar. — Vai falar com a diretora, diz que a gente resolve. Pega alguém de confiança, alguém da quebrada que a gente faça ficar quieto. O Gringo assentiu, aliviado. — Entendido, chefe. Eu vou ver quem dá conta. — E se não achar ninguém? — perguntei, cruzando os braços. — Aí eu volto pra te incomodar até tu me matar de raiva — ele respondeu seco, mas com um meio sorriso de canto. Sorri também, por reflexo. Porque no fim, o Gringo é assim: resolve. Vai na fé, bate perna, traz resultado. E eu? Eu mando. Puxo as corda do meu jeito. Mas enquanto ele sumia pela porta, uma pontada de inquietação ficou. Falta de professora. Urgência. Coisa pequena, talvez, mas que mexe com a rotina da quebrada. E onde a rotina mexe, eu tenho que estar junto. Voltei à sacada, olhando o morro dormir lá embaixo, pensando nos fio que ligam as coisas — escola, família, respeito. Às vezes, pra segurar o morro, tem que segurar também as coisa que aparentam ser fracas. Criança vira homem, homem vira responsável. Se eu cuidar do começo, eu cuido do resto. Continua....
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