Prólogo
Filadélfia, 2012.
Doze anos atrás.
Kellan
ESTOU CAINDO INERTE E NÃO tinha onde me segurar. Estava em um letífero conflito entre mim e meus pensamentos, que agora se encontravam completamente bagunçados. Minha visão começava a ficar turva, porém eu conseguia enxergar claramente quem estava caído à minha frente, com sangue escorrendo por sua blusa e manchando o piso de madeira desgastado da nossa antiga casa velha.
Eu não queria acreditar. Olhando para o corpo pálido do meu padrasto no chão da sala eu começava a entrar em um desespero silencioso. Não posso entrar em pânico agora, não quero acordar minha irmãzinha que dorme no quarto ao lado, mas mamãe não colaborava.
Mamãe se encontrava jogada em cima dele, aos prantos. Uma certa raiva crescia dentro de mim ao vê-la chorar por esse i*****l. Ah, minha querida mãe, eu não queria dizer que a entendia, pois não conseguia de forma alguma. Alguém que sofreu abusos na mão de outra pessoa deveria odiá-la profundamente, mas o que mamãe dizia sentir era um amor doentio. Eu chamava isso de dependência.
Aperto meus punhos em fúria ardente.
— Mãe? — chamo. Queria que ela saísse de cima do corpo, principalmente para que parasse de chorar. — Mãe, você...
— O que vamos fazer, Kellan? — berrou, sem olhar para mim.
Fecho os olhos me forçando a pensar com clareza. Passo as mãos no rosto em um desespero contido, tentando raciocinar qual seria meu próximo passo. Eu estava, definitivamente, perdido. Não posso simplesmente esconder o corpo, alguém acharia e ligaria a mim, seria meu fim. p**a que pariu. Por quê estou cogitando a ideia de esconder o corpo do meu padrasto?
Minha cabeça e rosto doíam tanto que só agora percebi que recebi uma pancada forte na nuca, e a facada que Bob me deu passou de raspão pelo meu supercílio e olho esquerdo. Um filete de sangue escorre sob minha testa e pinga em minha camisa branca. Ele conseguiu fazer um belo estrago.
Minha ficha cai.
Eu era um assassino, mas não queria ser. O homem que abusou da gente nossa vida inteira estava morto agora, eu não conhecia nada além da dor que ele nos causou, no fundo, eu estava aliviado de ter lhe infringido a mesma dor. Agora ele não machucaria a gente nunca mais.
— Vou contar a verdade, mãe, dizer que ele estava tentando te matar.
Era minha única saída. Ele estava em cima dela, com as mãos em seu pescoço enforcando-a; seu rosto ficando roxo, quase dando seu último fôlego de vida quando cheguei. Falar a verdade talvez me salve. Mamãe finalmente se vira. Seu olhar profundo e sombrio, sua alma tão torturada quanto a minha
— Mas não matou. — falou baixinho.
— Ele tentou! —gritei, exasperado.
— Kellan, o que tá' acontecendo? — Sophie sai do quarto e para na porta esfregando os olhos, sonolenta.
— Nada, meu amor, volte para o quarto — pego ela em meus braços e corro de volta para o quarto. — Durma mais um pouco, ainda está cedo, eu te acordo para o café da manhã. — minha voz sai embargada, mas controlo as lágrimas para Sophie não desconfiar de nada. Faço cafuné em seu cabelo até ela pegar no sono novamente e volto para a sala.
Eu não estava preocupado comigo agora, mas sim com minha irmãzinha, o que vai ser dela se eu for preso? Não irá sobreviver com mamãe. Sarah gasta o pouco dinheiro que tem com bebidas e drogas, quem sustenta a casa sou eu com o bico de mecânico.
Eu tinha uma ideia, mas preciso ligar para nossa tia que mora em outro estado. Ela vai me entender
[...]
Conto tudo para nossa tia Olívia, que ficou chocada no começo, mas logo me escutou. Amanhã ela irá pegar o primeiro voo para cá e vai cuidar de Sophie. Assim eu me sentiria mais tranquilo. Agora eu tenho outro problema, convencer mamãe a contar a verdade para a polícia.
— Mãe, preciso que me escute. Eu preciso que a senhora diga toda a verdade, o que ele vem fazendo com a gente por anos.
— Não vou incriminar meu marido morto, Kellan! Não vou fazer isso por você! — sua voz voltando a ficar embargada. — Você matou ele, deve pagar.
Eu estava cético.
— Sou seu filho. — disse, com o último resquício de orgulho que me restava.
— Você não é meu filho, eu não sou sua mãe! A culpa da gente viver nessa pobreza é toda sua. Maldita hora que escolhi ter você. Era para eu ter te colocado na adoção.
Ela se virou e voltou a abraçar o cadáver de Bob. Doeu como se eu tivesse levado uma facada no peito. Foi ai que eu soube que minha mãe não estaria do meu lado, ela preferia chorar pelo canalha que a machucou durante vinte anos, do que defender seu único filho que só fez isso por amá-la demais e que não podia mais vê-la sofrendo, mesmo sendo uma péssima mãe.
Suas palavras ficaram se repetindo em minha mente, era como se eu estivesse vivendo um inferno. Meu inferno particular. Onde eu sou um menino fodido que não é capaz de ser amado por alguém, nem pela própria mãe, e que não devia ter nascido.
Só havia uma coisa a fazer. Respirei fundo, me tremendo, peguei o celular do chão e digitei o número da polícia. Agora não tinha mais volta, não tinha como fugir, mais cedo ou mais tarde eles me pegariam e eu responderia por dois crimes.
O telefone tocou três vezes até alguém atender e uma voz feminina soar do outro lado da linha: — Polícia da Filadélfia, em que posso ajudar?
— Eu m-matei, m-meu padrasto.
Olho para mamãe e choro como um menino assustado querendo seu colo. Por algum motivo, eu sabia que não a veria novamente. Choro principalmente por Sophie, que não merecia a família que tinha.
Em menos de dez minutos ouço as sirenes da polícia. Por favor, Sophie, não acorde, por favor, não acorde, não quero que me veja sendo levado. Uma batida forte na porta da frente e ela é aberta de forma brusca, dois policiais passam por ela apontando a arma em minha direção.
— Mãos na cabeça, agora!
Eu nunca mais voltei para o café da manhã.
Me perdoe, Sophie.