1-Casa da escuridão

1202 Words
Lunara Tokatli Está acontecendo. O tempo está passando rápido demais. Tudo isso ainda é uma loucura na minha cabeça. Por dentro, eu sinto o mundo desmoronar, mas por fora... preciso parecer firme, sólida, inatingível. Eu mesma repito isso em silêncio todas as manhãs que preciso de uma base, uma âncora, qualquer coisa que me mantenha de pé. Mas não tenho. Não confio em ninguém. Absolutamente ninguém. A região norte está um caos desde que anunciaram que meu pai está doente e de cama. A notícia se espalhou como pólvora, e com ela vieram os olhares, os cochichos, as visitas falsas e as promessas vazias. Pior ainda: justo agora, o Sul foi atacado pela região leste. O equilíbrio entre as forças se rompeu, e o Norte, o nosso território, tornou-se alvo fácil, vulnerável e desejado. Por qualquer região que seja. Vivemos em alerta. A tensão é constante. A doença do meu pai, o líder máximo da região, é um golpe que todos tentam disfarçar, mas eu vejo o medo no rosto dos soldados, nos passos rápidos dos criados, nas reuniões silenciosas que terminam tarde da noite. A verdade é que ninguém sabe o que vai acontecer se ele morrer. E eu… eu sou o centro das perguntas. A única filha viva. A herdeira de um império sangrento. “Quem vai liderar agora?” “Com quem ela vai se casar?” “Quem vai assumir quando ela casar?” São as frases que ecoam pelas paredes desta mansão como sussurros venenosos. Os olhares que me seguem são uma mistura de bajulação e desprezo. Uns sorriem demais, falam baixo e me chamam de “senhora” com uma doçura forçada. Outros desviam os olhos, como se eu fosse um fardo prestes a cair. Alguns me olham como se eu fosse apenas uma moeda e o valor dessa moeda depende de quem a possui. Eu tento não me abalar, mas é difícil. Tudo o que sinto é o peso invisível das expectativas, o cheiro da ambição flutuando entre os corredores. Meu nome é Lunara Tokatli, filha do grande Halit Tokatli, líder da região norte da Turquia. A última filha viva. Antes de mim, vieram três mulheres e dois homens. Todos já foram mortos. Meus irmãos... Emires e Kemel, morreram em combate, ainda jovens, num conflito armado contra um grupo rebelde do Leste. Eles foram emboscados, e quando os corpos voltaram, já estavam irreconhecíveis. Meu pai diz que eles morreram como heróis. Eu não acredito nisso. Eles morreram como peças sacrificadas num jogo que nunca entenderam. Minhas irmãs eram: Seda, Brit e Meral. A mais velha, Seda, apaixonou-se por um homem casado, um dos conselheiros do meu pai. Foi julgada, sentenciada e morta em praça pública, “para manter a honra da família”. Brit, a do meio, envolveu-se com um soldado sendo ainda menor de idade. Entregou-se na pureza, como dizem. Quando descobriram, ela foi condenada à mörte, junto do soldado. Meral, a mais nova entre as três, morreu de overdose de remédios. Poucos dias antes, havia sido surrada após gritar com meu pai diante do conselho. Chamou-o de fraco, de covarde, de homem pequeno. Tudo porque ele cancelou uma viagem dela para fora do país, alegando que a região estava em guerra. Desde então, o nome Tokatli carrega o peso da tragédia. Eu aprendi com o sangue dos meus irmãos o que acontece quando alguém desafia as regras deste império. Por isso, desde cedo, eu decidi ser diferente. Quieta, observadora, calculista. Cumpri ordens, obedeci a protocolos, fui exemplo. Mas mesmo sendo a filha “perfeita”, isso nunca me aproximou dele. Sem ele saber, aprendi um pouco sobre autodefesa. Ele jamais permitiria assim, mas fiz. E fiz por mim. Não sou uma grande guerreira como falam da filha Selik do Sul, mas tenho noções. Meu pai sempre foi um homem difícil. Autoritário, impaciente, machista até os ossos. Acredita que o poder é coisa de homem, que o sangue que corre nas veias das mulheres serve apenas para gerar herdeiros, não para comandar exércitos. E ainda assim... eu sou a única que restou. O corredor principal da mansão está silencioso quando começo a descer. As paredes altas, cobertas por quadros antigos, parecem me observar. O mármore sob os meus pés reflete o brilho frio das luminárias. O ar tem cheiro de remédio e metal, uma mistura que só aparece quando há mörte por perto. Enquanto caminho, ouço passos atrás de mim. — Senhora Tokatli. — A voz grave me faz virar. É Ertan, um dos membros do conselho. Ele se curva levemente, com aquele ar bajulador que me irrita. — Como está seu pai hoje? Seguro o impulso de revirar os olhos. — Eu o vi mais cedo. Ainda está dormindo. Teve febre durante a madrugada, mas foi medicado. Pareceu bem melhor Ertan cruza as mãos, fingindo preocupação. — Posso vê-lo por um instante? Apenas para oferecer as minhas orações. — Não. — Minha resposta é imediata. Ele pisca, surpreso, talvez não esperasse que eu o cortasse tão rápido. — A recomendação médica é que ele descanse. Sem reuniões, perguntas ou assuntos de trabalho. — Continuo, com firmeza. — Nenhuma visita por enquanto. Assim que ele acordar e se ele pedir, o senhor será avisado. — Entendo... — Murmura, mas o tom é de contrariedade. — Talvez eu retorne mais tarde, então. Assinto brevemente. — Faça isso. Ele se curva novamente, dá meia-volta e segue pelo corredor. O meu olhar o acompanha até ele desaparecer. Há algo no modo como esses homens me olham depois de uma negação que me provoca uma irritação quase física. Eles odeiam quando uma mulher diz “não”. E isso não importa qual seja o assunto. Respiro fundo. Continuo andando. O ar parece mais pesado dentro desta casa. Cada canto dela carrega uma memória e todas são ruins. Aqui, ninguém fala o que realmente pensa. Ninguém age sem um motivo. E todos, absolutamente todos, esperam que eu desmorone. Mas eu não vou. Meu pai pode estar à beira da mortë, o Norte pode estar rachando por dentro, os inimigos podem estar prontos para atacar, mas eu aprendi a sobreviver no meio de monstros. Eu cresci cercada por eles. E outra coisa que aprendi, foi sobre política e estratégias. Paro diante da grande porta dupla que leva ao escritório do meu pai. O cheiro de tabaco e couro ainda domina o ambiente, mesmo sem ele aqui. As janelas estão fechadas, o ar abafado. Sobre a mesa, pilhas de documentos, mapas, cartas seladas com sangue e poder. Eu toco o braço da cadeira dele e fecho os olhos por um instante. É estranho como, mesmo ausente, a presença dele ainda domina tudo. Meu pai é uma sombra que nunca dorme. — Está acontecendo... — Sussurro de novo. — E não tem volta. Abro os olhos e me encaro no vidro da janela. A mulher que me olha de volta não é uma filha em luto. É uma herdeira em alerta. E, no fundo, eu sei: se o Norte cair, se meu pai morrer, se a guerra estourar de vez... serei eu quem vai precisar levantar o império dos Tokatli. Nem que o preço disso seja a minha alma.
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