Lunara Tokatli
Mais um dia difícil.
Eu acordo com o mesmo som de passos, murmúrios e portas batendo pelos corredores da mansão. Tudo aqui soa como uma espera disfarçada. Espera pelo fim.
Parece que todos estão apenas aguardando duas coisas: se meu pai vai morrer hoje… ou se já decidiu quem tomará o controle do Norte.
Nada além disso importa.
O ar tem gosto de tensão e poeira. A luz entra pelas grandes janelas e corta o ambiente como uma espada. Os servos se movem rápido, as vozes são baixas, mas carregadas de ansiedade. Cada olhar que cruzo traz a mesma pergunta muda: ele ainda vive?
Desde que nasci, o nome Tokatli foi sinônimo de poder e respeito. É um nome que carrega séculos de domínio, guerras e sangue. Foi a nossa família que rompeu alianças antigas com outras organizações para erguer um império próprio, independente.
Enquanto muitos se apoiavam em laços estrangeiros, nós escolhemos caminhar sozinhos.
E sozinhos, dominamos o Norte.
O Sul sempre foi grande, mas traiçoeiro.
E o Leste… o Leste é uma ferida aberta, sempre prestes a sangrar. E o Sul sempre foi na sua essência, uma arrogância por ter crescido além do esperado.
Meu pai, Halit Tokatli, construiu tudo o que temos à base de sangue, autoridade e maestria. Ele sempre soube liderar, mesmo com punhos cerrados e palavras afiadas. Cumpria o que prometia, e quando ameaçava… cumpria também.
Ninguém duvidava da força dele.
Mas agora, o império dele está desmoronando junto com o corpo. O câncer já se espalhou. Já alcançou os pulmões, o fígado, o estômago… tudo.
Ele está morrendo, e nós sabemos disso.
Meu desejo é que ele melhore, ao menos por um tempo. Não por amor, esse sentimento nunca existiu entre nós, mas por segurança. A presença dele mantém as hienas afastadas. Quando ele se for, eu serei a carne fresca no meio da matilha.
Sento na sala principal e observo a lareira apagada. Tenho uma xícara de chá frio nas mãos e nenhum apetite. Tento organizar papéis, ler correspondências, qualquer coisa que me distraia, mas a mente não colabora.
Até que uma das empregadas entra às pressas.
— Senhora Tokatli. — Diz, com a voz trêmula. — O senhor, seu pai, deseja vê-la.
Meu coração dispara.
Deixo a xícara sobre a mesa e me levanto num pulo. Sem pensar, sigo apressada pelo corredor comprido. Cada passo ecoa forte demais, como se o chão quisesse me lembrar do peso do que vem a seguir.
Quando chego à porta do quarto dele, respiro fundo antes de entrar.
Meu pai está sentado na cama, as costas eretas, os olhos abertos e frios como o aço. Há dias não o via tão desperto.
O lençol branco contrasta com o tom pálido da pele, mas, apesar da fragilidade, ele ainda impõe presença.
Assim que me vê, faz um aceno com a mão para eu me aproximar e eu faço.
Curvo-me, depois ajoelho diante dele sabendo que ficar de pé para ele será impossível.
— Pai… — Eu quase sussurro. — Como o senhor se sente hoje?
Ele inspira devagar.
— Melhor. — A voz dele é rouca, mas firme. — Sinto fome. Já mandei preparar algo decente. Não suporto mais sopa rala, água e remédio que não tem fim. Isso não é vida!
Eu sorrio, aliviada. Mas também sinto a irritação dele.
— Isso é ótimo. Eu fico aliviada. — Tento mostrar um leve sorriso. — O apetite pra algo maior é um bom sinal.
Mas ele franze o cenho. Ele não mostra nada de bom.
— Você só diz isso para se manter segura. Acha que não sei?
A frase me corta como faca. Ele não sabe agir sem essa arrogância e grosseria. É parte dele!
Abaixo a cabeça.
— Eu me importo, pai. De verdade. Você é o homem mais forte que já vi.
— Pelo menos nisso, você tem razão. — Ele se recosta levemente e limpa a garganta. — Chamei você por outro motivo.
Levanto o olhar, atenta.
Os olhos dele são duros, indecifráveis.
— Hoje... — Ele começa e solta uma leve tosse. — Mandei convocar todo o conselho. Aqui no quarto. Eu preciso aproveitar que me sinto pelo menos mais... apresentável. E melhor também de falar.
Meu corpo se tenciona.
— O conselho? Aqui?
— Sim. No meu quarto. — Ele apoia as mãos sobre o cobertor. — Vou anunciar como as coisas devem ser. Não deixarei que outro nome lidere o que pertence à nossa família. Isso seria a ruína e eu tive trabalho demais pra deixar de qualquer jeito.
Sinto o ar escapar dos meus pulmões. Eu entendi certo?
— Quer dizer que...
— Que é melhor você saber o que virá. — Ele me interrompe. — Quando eu morrer, você vai comandar o Norte.
Por um instante, fico em silêncio.
Tudo ao redor parece desaparecer. Ouço apenas o som do relógio batendo no canto do quarto.
Eu jurava que ele daria essa posição a um dos seus homens mais confiáveis.
— Pai… — Sussurro, ainda sem acreditar. — Eu?
— Você é uma Tokatli. — Ele não pisca. — E é a única. Mesmo solteira, vai liderar. Terá o apoio do conselho, mas se falhar… — Ele pausa. — Se falhar, tudo o que for destruído será culpa sua. E não terá ninguém para te salvar de qualquer ataque. Será seu fracasso!
Engulo em seco e aceno, com a cabeça abaixada.
— Eu farei o que o senhor mandar.
— Vai precisar de pulso firme. — Ele continua. — Deverá ser fria, imparcial. Não vai haver piedade, nem hesitação. A fraqueza é o primeiro passo para a ruína. Nada de pena, compaixão ou qualquer sentimento envolvido... seja fria e pense sempre na organização.
Eu escuto, sem ousar interromper.
Ele fala sobre as divisões de poder, as fronteiras, os acordos comerciais e as lealdades instáveis. Explica o que cada nome do conselho representa, o que esperar deles, e o que fazer se algum se rebelar.
Tento guardar cada palavra, mesmo que a mente esteja latejando com o choque.
Quando ele termina, recosto-me, exausta. A decisão é ousada. Inesperada.
Mas, no fundo, eu entendo.
Essa será a única forma de manter o nome Tokatli vivo e o Norte em pé.
{ . . . }
Horas depois, o quarto dele está cheio.
O ar é pesado, carregado de perfume, suor e tensão. O meu pai já tomou um banho, comeu bem e está sentado na cama. Barba feita, cabelos alinhados e mostra postura. Os doze membros do conselho estão de pé, dispostos em semicírculo diante da cama. Todos com expressão tensa, alguns visivelmente desconfortáveis.
Eu permaneço ao lado dele, calada.
O som de respiração é a única coisa audível. O meu coração bate como um tambor.
— Estou morrendo. — Ele fala de forma direta. Sem discursos.
A frase reverbera como um trovão.
Alguns trocam olhares, outros abaixam a cabeça. Um murmúrio se espalha, até que ele ergue a voz:
— Silêncio! Não quero ouvir nada.
O quarto se cala imediatamente.
— Não quero falsos confortos nem promessas tolas. — Continua ele. — A verdade é que meu tempo acabou. E antes que minha mortë gere disputas, quero deixar tudo definido.
Ele olha para mim.
— Minha filha, Lunara Tokatli, será a nova líder da região Norte.
O impacto é imediato.
Vários homens se entreolham, chocados. Um deles, o mais velho, balbucia algo, mas meu pai o silencia com um simples movimento de mão.
— A lei é clara! — Diz ele. — O sucessor direto tem a palavra. E ela é a única Tokatli viva.
O silêncio que se segue é quase palpável.
— Sob a liderança dela, o conselho permanecerá o mesmo. Ninguém será removido, a menos que cometa traição. Cada um de vocês manterá suas terras e rotas comerciais. Terão novas áreas de administração como forma de aprimorar suas riquezas.
Os olhares se acalmam um pouco, a ambição substituindo a revolta.
— Vocês e seus filhos terão direito hereditário sobre seus lugares. — Ele prossegue. — E ela, como líder, ouvirá todos antes de qualquer decisão. Mas, lembrem-se: a palavra final será dela. E quem desobedecer… — Ele pausa e ergue o olhar. — Saberá o preço. Ela será a única com a palavra em ação à forças maiores.
Um servo entra, trazendo uma bandeja de papéis selados.
Meu pai pega um dos documentos e o ergue.
— Estes são contratos de fidelidade. — Ele os distribui, um a um. — Neles estão escritas as condições, recompensas e punições.
Assinem!
Vejo as mãos hesitantes, os olhares desconfiados.
Mas ninguém ousa recusar. Eles sabem o que perdem se não concordarem.
Um a um, os homens pegam a caneta, assinam, selam com o próprio anel e devolvem.
O som das assinaturas é como o de correntes sendo presas.
Quando o último contrato é recolhido, meu pai me entrega a pilha.
— Guarde! Se algum deles quebrar o juramento, você sabe o que fazer.
Seguro os papéis contra o peitö.
Sinto o peso de cada nome, cada assinatura, cada vida que agora depende de mim.
Ele se recosta mais uma vez, o rosto pálido, o olhar distante.
— Está feito! — Diz, com a voz cansada. — A partir de agora, todos aqui devem obediência à líder Lunara Tokatli.
Os homens se curvam, um a um.
Eu continuo imóvel, sem saber se devo chorar, agradecer ou temer o que acabei de receber.
No fundo, sei apenas uma coisa: meu pai, mesmo à beira da morte, acaba de me entregar um império e junto dele, um campo minado.
E agora, o Norte é meu.