Lunara Tokatli
Os últimos dias foram, de certa forma, misericordiosos comigo.
Depois da partida de Can Ruslan, a mansão parece respirar um pouco mais devagar. Não sei se é porque a presença dele altera o ar, ou se sou eu que fico excessivamente alerta quando ele está por perto. Mas o fato é que a casa ficou mais silenciosa, e eu consegui trabalhar com menos interrupções.
Trabalhar… uma palavra tão simples e, ao mesmo tempo, tão exaustiva.
Confesso que, apesar de estar me adaptando, ainda há coisas que quase quebram a minha cabeça. Alguns documentos são complicados demais. Os termos, os padrões técnicos, os códigos internos, os relatórios sigilosos. Há momentos em que eu encaro a tela do sistema oficial e sinto vontade de arrancar meus próprios cabelos de tanta frustração. Algumas seções são tão engessadas que, se eu clicar no lugar errado, tenho a sensação de que vou destruir uma tradição centenária.
Mas tenho conseguido. Demoro o triplo do tempo que qualquer líder anterior demoraria, principalmente o meu pai, que sempre pareceu dominar tudo com a naturalidade de quem respira, porém faço. Entrego. Me viro. E, quando saio do escritório da mansão, eu visto a máscara.
A líder firme, séria, silenciosa. A filha de Tokatli. A voz do Norte.
Nos corredores, ninguém ousa contestar essa imagem. E, segundo Osman, os relatórios mostram que todos já começaram a aceitar meu comando. Se isso for realmente verdade, talvez eu não enfrente tantos problemas quanto imaginei.
Pelo menos… por enquanto.
Hoje, aproveito o único presente da semana: um dia mais calmo. Não preciso visitar galpões, nem terras, nem campos, nada. O pátio da mansão está banhado por uma luz suave. O clima está mais fresco, como se até mesmo o sol tivesse decidido me dar uma trégua.
Caminho devagar pelos caminhos de pedra, sentindo o ar fresco bater no rosto. Os soldados estão sempre ali. Como sombras posicionadas em cada canto, atentos, rígidos. Quando passo, todos reverenciam. Ainda é estranho. Há pouco tempo, eu era invisível para eles. Apenas a filha calada do grande Tokatli. Uma sombra acoplada ao nome dele e alguém sem importância nenhuma para ningém. E agora? Agora sou a maior voz do Norte. A única que resta da linhagem.
Às vezes, quando penso nisso, fico incrédula. Tudo mudou rápido. Rápido demais.
Sigo até uma grande pedra perto da parte mais alta do pátio. Subo nela com cuidado e me apoio, olhando o horizonte. As montanhas parecem uma pintura antiga. A brisa é suave. Por alguns segundos, só respiro. Inspiro profundamente, tentando esvaziar a mente, me preparando mentalmente para a noite de hoje.
A Festa das Lâmpadas de Outono.
Um evento tradicional daqui, celebrado sempre que o vento muda e anuncia a virada da estação. Os apoiadores do Norte estarão aqui. Membros importantes. Aliados, senhores territoriais, comerciantes financiadores… gente que observa tudo com olhos de falcão. Gente que pesa cada detalhe. Gente que aguarda sinais.
E hoje… eles vão me observar.
Respiro fundo outra vez.
É então que ouço passos atrás de mim.
Não me viro imediatamente. Espero. O som é familiar. Calmo, firme, mas cuidadoso.
Osman.
Me endireito, respiro fundo antes de encará-lo e, quando viro, ele está lá, mão sobre o peitö num gesto respeitoso.
— Oi, Lunara. — Ele diz. — Posso conversar um momento?
Pelo menos ele tem se comportado. Os olhares que ele me lançava antes, aqueles que cruzavam uma linha que ele nunca deveria ter se aproximado sequer, desapareceram. Tudo ficou mais… profissional. E isso me dá alívio.
Assinto e ele se aproxima devagar.
— Peço desculpas se pareço indiscreto. — Começa ele, com uma cautela que me deixa imediatamente tensa. — Mas há algo acontecendo além dos corredores. Algo que precisa ser dito.
Meus ombros travam.
— Diga! — Peço, tentando parecer mais inabalável do que eu realmente sou.
Osman respira fundo, como se pesasse as palavras antes de soltá-las.
— Eles começaram a fazer perguntas. — Diz ele. — Perguntas sobre um casamento para você. Querem saber da linhagem, quando isso vai ser anunciado e com qual membrö será feito o acordo.
Meu corpo inteiro endurece. Eles não sabem deixa nada quieto.
Foi praticamente ontem que assumi tudo publicamente.
— Uma mulher no poder já é algo difícil de aceitarem. Uma mulher solteira, sem filhos… é quase impossível eles enxergarem estabilidade nisso. Eles prezam pela linhagem. E como a senhora é a única Tokatli, o medo começou. Já perguntam por que nada foi anunciado… e até quando isso vai continuar assim.
Eu demoro alguns segundos antes de responder.
— Eu não pretendo me casar! — Digo, clara, firme, sem hesitar.
Os olhos de Osman se arregalam, como se eu tivesse acabado de anunciar minha própria sentença de morte.
— Lunara… isso é loucura.
— É a minha decisão! — Respondo sem hesitar.
— Eles não vão aceitar isso. Eles precisam de uma garantia. De um herdeiro. De continuidade. E se você insistir nisso… haverá rebelião. Quase ninguém ficará ao seu lado... isso ´...
Fecho a mão, contendo a vontade de explodir.
— Eu sei! — Digo entre os dentes. — Mas ainda assim, é a minha decisão. Peço que respeite isso.
Ele aperta os lábios, frustrado, quase ofendido.
— Eu quero ajudá-la. — Diz ele. — Mas será complicado fazer os outros entenderem algo que eu mesmo não consigo entender.
— Apenas diga que não sabe de nada ainda... só isso!
Viro de costas antes que ele veja a raiva em meus olhos. Respiro fundo. Outra vez. De novo. Tento me manter inteira.
Eu fico imaginando todos eles. Sempre homens querendo mandar, querendo ser ouvidos e tendo suas vontades atendidas. É sempre assim! Por isso não posso ceder a um casamento. Seria a minha ruína total.
— Lunara... — Ele chama atrás de mim. — E se… se fosse alguém de sua confiança? Alguém escolhido por você?
A resposta sai antes que eu sequer pense:
— Eu não confio em homem algum a esse ponto. — Sou bem clara nisso.
Silêncio.
Eu me viro o suficiente para ver a expressão dele. Surpresa. Talvez choque. Como se não conseguisse imaginar uma mulher que não precisasse depender de ninguém.
Ou pior: como se estivesse sendo ferido por não ser uma das exceções.
Não me importo.
Essa é a verdade. Eu não confio em homem nenhum ao ponto de eu me casar e me deitar com ele. E sei que jamais chegarei a esse ponto.
— Com licença. — Digo, encerrando a conversa.
Desço da pedra e sigo caminhando de volta para a mansão. Meu peitö está quente, apertado. Raiva, frustração, medo… tudo misturado num nó que se recusa a se desfazer. Cada passo ecoa minha irritação.
Quando finalmente entro pela porta principal, vejo Harika vindo pelo corredor.
E só a presença dela já desacelera meu coração.
— Lunara! — E la sorri, segurando dois vestidos nos braços. — Será que pode me ajudar a escolher o vestido para hoje? Eu sou muito indecisa nisso.
Um pequeno alívio brota em mim. Não grande, mas suficiente para me impedir de quebrar alguma coisa.
— Claro. — Digo, soltando o ar. — Eu também ainda não escolhi nada.
Os olhos dela brilham.
— Então vamos decidir juntas. — Ela diz, animada.
Aceito, porque pensar em vestidos agora é infinitamente melhor do que pensar em casamento.
Principalmente em um casamento que nunca acontecerá comigo.
E, enquanto seguimos pelo corredor, sinto a tensão dentro de mim diminuir só um pouco, como se a companhia dela fosse um lembrete silencioso de que, apesar de tudo, eu ainda tenho pequenas frestas de leveza onde respirar.