Lunara Tokatli
Eu ainda estou no quarto, ao lado de Harika, quando percebo que hoje tudo parece mais leve. Pelo menos ainda. Talvez seja o efeito dos tecidos brancos espalhados pela cama, talvez seja a maneira animada como ela toca cada vestido, como se estivesse diante de tesouros.
Eu passo a mão por um dos véus bordados e vejo Harika sorrir de orelha a orelha. É um sorriso vivo, quase infantil.
— Você está muito animada. — Digo, franzindo as sobrancelhas. — Por quê?
Ela ri, como quem recorda algo importante.
— Porque… Lunara… eu passei anos sem isso. — Ela ergue um vestido azul como se fosse uma joia rara. — Não tinha festas, não tinha motivos para me arrumar. Eu só servia, trabalhava, obedecia. E agora… agora posso escolher vestidos, posso ouvir música, posso… existir. E posso passar tempo com você... isso me anima demais.
Eu não espero que meu peitö amoleça assim, mas amolece. Coloco um sorriso mais sincero no rosto e devolvo o ânimo que ela queria de mim.
— Então vamos escolher direito. — Digo. — Quero algo que faça o Norte esquecer que sou a filha de Halit por algumas horas.
Acabo escolhendo um vestido branco longo, de tecido leve, com véus perolados que caem como neblina sobre meus braços. Harika suspira, encantada, e começamos a explorar as maquiagens, as joias, os perfumes. Pela primeira vez em dias, minha cabeça respira.
Eu só penso: Por favor, só por hoje… que seja uma noite tranquila.
{ . . . }
Quando a noite cai, sou ajudada por duas mulheres a colocar o vestido. O tecido é firme, mas delicado, e preciso erguer os braços enquanto ajeitam as camadas. Uma delas tenta cobrir o meu cabelo com um lenço branco, costume tradicional em eventos formais.
Mas eu seguro o braço dela antes.
— Não hoje! Quero deixá-los soltos.
Ela inclina a cabeça, respeitosa, e passa óleo de mirra nos meus fios, alinhando cada mecha com precisão. Meu cabelo é minha vaidade, meu orgulho, meu território inviolável e esconder seria um pecado.
E como a festa é no salão da própria mansão… não há motivo para me esconder.
Quando Harika entra no quarto, pronta, dá uma volta inteira.
— Eu pareço perfeita, não pareço?
— Parece. — Admito. — Você está radiante.
Passam batom em mim, ajeitam os véus, borrifam perfume. E enfim estou pronta. Hoje o conselho lidera os rituais e eu só preciso comparecer, sorrir, acenar. Não preciso discursar, não preciso representar força absoluta. Só preciso… existir entre eles.
Isso já é metade do meu trabalho.
Logo estamos a caminho e posso ouvir as músicas de longe.
O salão está iluminado com luzes quentes e velas alinhadas pelas paredes. A música tradicional ecoa de forma suave, preenchendo o ar. Conversas, risadas discretas, taças de vinho. Os membrös do Norte estão reunidos, e assim que entro, rostos se voltam para mim.
Eles me reverenciam.
Eles me admiram.
É uma sensação estranha.
Eu não sei se é pela aparência, o branco sempre causa impacto, ou se é pela liderança que represento. Mas passo entre eles com postura firme, acenos leves, um sorriso controlado. E por alguns segundos, eu realmente acredito que hoje será bom. Será leve.
Será meu.
Então eu o vejo.
Kan Ruslan.
Meu sangue congela.
Ele está ali. No meu salão. Na minha casa.
Ele não deveria estar no Norte hoje.
— Mas que... merdä! — Resmungo sem mover os lábios.
Ninguém me avisou. Nenhuma escolta, nenhuma nota, nenhum comunicado.
A raiva nasce tão rápido que parece um golpe no estômago.
Ele está encostado perto de uma coluna, uma taça na mão, conversando com dois homens que não pertencem ao Norte. Assim que ele me vê, o sorriso dele surge devagar. Como se estivesse satisfeito demais com a própria ousadia.
Harika segue meu olhar e murmura:
— Ele… veio sem avisar?
Eu não respondo. Não consigo. Apenas sinto o meu maxilar travar.
Ruslan caminha até mim. A passos firmes, lentos, calculados. Ele está vestido de negrö, o traje impecável, o cabelo preso atrás com um cuidado irritante. É homem seguro demais da própria sombra.
Mas o pior vem agora. Ele sai do seu lugar e vem até mim.
— Boa noite, Lunara Tokatli.
O tom dele é educado demais para ser sincero.
— Não esperava vê-lo aqui. — Digo, com frieza suficiente para congelar o vinho na taça dele.
Mas ele não se abala. Claro que não.
— Vim prestigiar a anfitriã. — Responde, inclinado. — E pedir uma dança.
Eu me preparo para recuar, para cuspir um “não” tão forte que ecoaria pelas paredes, quando ele inclina levemente o rosto e...
— Todos estão olhando. Não cairia bem uma cena. Seria… infantil da nova líder, não acha?
Eu ergo os olhos, varro o salão, e vejo dezenas de olhares curiosos nos observando. E, ao fundo, Osman. Tenso, observando cada segundo da interação e está com a testa franzida.
Ruslan sabe exatamente o que faz.
Eu engulo a vontade de mandar enfiar a própria audácia no lugar certo e digo, entre os dentes:
— Uma dança. Só isso!
Ele sorri como quem já venceu.
Sou levada ao centro do salão. Ele coloca a mão na minha cintura, a ousadia, e outra na minha mão. Eu respiro fundo, mas o cheiro dele chega antes da sanidade. Ele conduz com firmeza, confiança e uma insolência que me dá vontade de quebrar o nariz dele.
— Você é maluco. — Digo sem me conter.
— Talvez. — Ele responde.
— E idiotä.
— Provavelmente.
A resposta dele me irrita ainda mais.
— Admito. — Ele continua. — Que comecei tudo do jeito errado. Podemos tentar de novo. Sem guerra, sem ameaças. Só… nos conhecer.
— Não quero! — Digo. — Não existe “nós”.
Ele gira o meu corpo com destreza e, quando volto para perto dele, Ruslan sorrir.
— Você é péssima em negociações, Lunara.
Meu sangue ferve.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Sei que está sozinha em um trono que foi feito para dois. Sei que está tentando carregar o Norte inteiro nas costas. Sei que está exausta e orgulhosa demais para admitir.
Eu paro por um segundo, porque ele toca um ponto sensível demais.
Mas não dou a ele o prazer de perceber isso.
— E sei... — Ele continua. — Que você é linda. Muito linda. E como mostrei, é destinada a mim. E viu as provas.
A indignação me atinge como uma flecha.
Eu solto a mão dele.
— A dança acabou.
Me afasto sem olhar para trás, o peitö arfando, a irritação me deixando mais quente do que o salão inteiro.
Caminho até Harika, que me olha com os olhos brilhando.
— Ele é… muito charmoso. — Diz ela, com uma empolgação que me irrita mais ainda.
— Ele é um interesseiro. — Retruco. — Igual a todos os outros. Nada mais.
Ela não debate, mas vejo no olhar dela que ainda está impressionada e ela observa o irmão dele.
Eu, ao contrário, quero socar uma parede.
E do outro lado do salão, Kan Ruslan bebe o vinho, ri com alguns homens e se comporta como se tivesse direito de estar aqui. Como se meu território fosse dele. Como se já estivesse sentado na cadeira ao meu lado.
Eu sinto crescer dentro de mim algo perigoso, feroz e inegociável.
Eu não vou me casar com ele.
Eu não vou dividir o Norte.
Eu não vou ser moeda de troca de nenhum homem.
E, enquanto o observo sorrir, conversando como se fosse o dono da noite, uma certeza se solidifica dentro de mim como pedra: Kan Ruslan não tem juízo. Mas eu tenho.
E ele nunca vai me dominar.
Nem no salão.
Nem na política.
Nem em nada. Nunca!