Passado/Presente-em-sua-mente

2265 Words
O que se faz quando o mundo cai sobre nossa cabeça? Essa pergunta povoava a mente de Sara na última semana. Observando seu reflexo no espelho, passou a mão de leve sobre a cicatriz no alto de sua cabeça, a única prova do acidente que teve um mês atrás. Do qual não lembrava por mais que se esforçasse. Assim como os últimos dez anos... Respirou fundo e reparou nas sutis mudanças em seu rosto e corpo. Seu rosto estava mais fino, maduro e, provavelmente por causa de seu estado atual, melancólico. Suas formas também mudaram. Sofreara tanto por ser a única em seu grupo de amigas a ter s***s quase inexistentes, agora conseguia percebê-los mesmo com a roupa larga e horrorosa do hospital. Estava mais parecida com uma mulher adulta. "Lógico, Sara, você tem vinte sete anos, queria continuar com o corpo de uma menininha?". Fez uma careta diante das palavras vindas de seu interior. Podia ser uma mulher madura por fora, mas por dentro era outra história. Sentia-se como uma criança perdida diante do desconhecido mundo a sua frente. Pegou a escova pousada na pia e a passou devagar pelos fios longos e acobreados. Isso também lhe causara certa surpresa. Preferia a facilidade do cabelo curto, um pouco acima dos ombros, mas pelo jeito nos últimos anos decidira deixa-lo crescer e alcançar o meio das costas. Era estranho olhar para o espelho e encontrar uma completa desconhecida, mesmo que fosse ela. Tudo era muito confuso e quando mais buscava em sua mente mais desnorteada ficava. — Ai! Droga! — Respirou fundo e com esforço ao sentir uma pontada dolorosa na cabeça. Largou a escova e voltou cambaleante para a cama. Deitou e olhou para enfermeira dormindo na poltrona. Com certeza a mulher acordaria com muita dor nas costas. Esperava que o salário compensasse o esforço, pois ela não saíra do seu lado em nenhum momento, sempre pronta a atendê-la em tudo o que precisasse, sem deixa-la sozinha por um segundo que fosse. Aquilo lhe incomodava, principalmente quando queria conversar com sua madrinha e a mulher não tirava os olhos dela, atenta a cada palavra, ato ou gesto executado. Só não reclamava porque sabia que era paga para fazer aquilo: não tirar os benditos olhos dela. Resignada, se ajeitou melhor na cama e voltou seus pensamentos para tudo que estava lhe acontecendo. Fazia uma semana que acordara naquele quarto, a memória prejudicada e esquecida alguns fatos de sua vida, incluindo estar casada com um homem lindo, porém muito sério e calado. Estava assustava, confusa e perdida em si mesma. Suspirou ao relembrar o quanto Rodrigo, seu marido esquecido, a tratava de um modo muito estranho. Após comunicar que estavam casados e, assim que ela recebesse alta do hospital, a levaria para o apartamento onde moravam - do qual ela não recordava - ele foi embora sem falar mais nada. Nenhuma palavra de carinho, nenhum "fique tranquila, meu bem", ou um beijo no rosto. Não que quisesse que ele a abraçasse ou beijasse, longe disso, o problema era a forma que ele agia, frio e indiferente a sua dor. Quando é que mudara totalmente de gosto para homens? Até onde lembrava preferia os mais sensuais, alegres, que demonstravam o que sentiam. Seu "marido" estava longe de ser assim. "Pelo menos ele é um pedaço de mau caminho". Sorriu com o pensamento. Isso era inegável, mas não mudava que em sua mente namorava outra pessoa. Onde estaria Rob? Toda vez que sua madrinha vinha examinava, tivera vergonha de perguntar se sabia de algo sobre seu namorado, afinal, estava casada, com um homem do qual não se lembrava, mas estava. Além disso, a enfermeira na certa passava informações sobre tudo que via e ouvia para Rodrigo. Seria constrangedor chamar pelo namorado, ex nesse caso, que ainda sentia ser atual... A situação em suas memórias era uma confusão absurda e queria ter algo, alguém, para se apegar. Estava em um nível de anseio por alguma normalidade que, assim que sua madrinha entrou no quarto para a última visita daquele dia, com a enfermeira dormindo, juntou coragem e perguntou baixinho: — Madrinha, sabe algo do Robson? Tatiana a encarou com atenção. Sara notou a censura nos olhos da médica, mas não recuou. Engolindo a vergonha por pedir informações do ex-atual-em-sua-mente-namorado, devolveu o olhar, desejando passar nele todo seu desespero por ajuda. — A última notícia que tive dele é que abriu uma galeria de arte no centro de São Paulo. Sara sorriu. O sonho de Robson foi alcançado, ter uma galeria para expor suas obras. Então a tristeza a atingiu ao recordar que ele sempre a incluía em seus planos. Tinham terminado como? Quando? Por qual motivo? Massageou a cabeça, gemendo com a pontada dolorosa que nublou sua vista. — O que está sentindo? — Tatiana perguntou preocupada. — É só uma dorzinha. Sempre que me esforço pra lembrar-se de algo ela vem — confessou. — Tenha paciência. Com o tratamento reverteremos seu quadro. Assentiu, embora paciência era algo difícil de ter trancada ali, com visitas esporádicas de seu marido esquecido. Inspirou e expirou fundo. Pelo menos sabia que Robson e ela estavam na mesma cidade. Tinha se surpreendido quando Tatiana contou que morava na capital de São Paulo há alguns anos. Agora compreendi o motivo dos colegas da minúscula Cezário não visita-la. Infelizmente, seria mais fácil encontrar Robson em Cezário em vez de uma metrópole como São Paulo. Mesmo assim estava determinada a resgatar um pedaço de seu passado/presente-em-sua-mente. — Madrinha, sabe o endereço da galeria do Robson? — Sara, o que pretende? — Só queria falar com ele, entender... — desviou os olhos para as mãos. — Nos amávamos tanto... Tatiana acariciou o topo da cabeça da afilhada, consternada pela jovem. — Não creio que procura-lo te ajudará a lembrar de algo. O efeito pode até ser o contrário — alertou. — Tranquilizar seus pensamentos, seguir o tratamento e descansar te fará um bem maior que confrontar pessoas. Assentiu e fechou os olhos com força, para seguir o conselho, relaxar e aguardar com paciência. Porém, era mais fácil na teoria que na prática. Não conseguia relaxar presa em um hospital e sabendo que, assim que tivesse alta, teria de morar com um completo desconhecido que afirmava ser - e tudo levava a crer que era de fato - seu marido. ~*~ Os dias passavam devagar para Rodrigo Montenegro. Dividia-se entre o trabalho, o hospital e a solidão de seu apartamento. Em nenhum desses lugares se sentia bem. No trabalho pensava na esposa; no hospital evitava aproximar-se dela, que o encarava com medo; e no apartamento... O lugar não era o mesmo sem ela. Durante as noites solitárias, passou e repassou a discussão que tiveram no dia do acidente, o que s aumentara sua culpa e a raiva por ter sido tão duro com a esposa. Se pudesse voltar no tempo... — Senhor Montenegro? Despertou de seus devaneios e olhou irritado para o funcionário que se atrevera a lhe chamar a atenção. O pobre homem encolheu-se em seu lugar. Rodrigo passou o olhar para os demais funcionários, sentados ao redor da grande mesa de reunião de sua empresa. Todos repetiram a reação do primeiro. Era temido por ter gênio difícil e não gostar de ser interrompido de forma alguma, mas naquele momento o errado era ele. Estava numa reunião e sua atenção estava em outro lugar. Óbvio que nunca admitiria isso. — A reunião está acabada, voltem para suas funções — ordenou impassível. Sem cerimônia, os funcionários recolheram seus papéis e saíram com o passo normal, mesmo querendo correr para bem longe do chefe. Somente sua secretaria permaneceu sentada ao seu lado, mas, assim que ficaram a sós, a ruiva curvilínea se levantou, posicionando-se atrás de Rodrigo para massagear seus ombros. — Essas preocupações desnecessárias te deixam tenso. Isso não lhe faz bem, Rodrigo. — Deslizou as unhas pintadas de vermelho pelo tórax masculino. — Assim que Sara assinar os papéis sua vida ficará melhor. — Ela inclinou-se para sussurrar no ouvido de Rodrigo. — Eu prometo que te ajudo no que precisar. Rodrigo afastou as mãos da secretária com brutalidade. — Quero ficar sozinho. Volte para o seu devido lugar assim como os outros fizeram, Karen — ordenou sem olhar nem um segundo para a surpresa estampada no rosto dela. Karen não acreditava que Rodrigo a expulsava quando oferecia seu amor incondicional para acabar com a solidão dele. Estava indignada com a rejeição constante de Rodrigo. Sabia muito bem o porquê da distração do chefe, todos sabiam. Mas isso seria passageiro, logo conseguiria que o poderoso Rodrigo Montenegro fizesse o que ela queria. Ele se arrastaria pelo chão atrás dela e a desejaria como esposa, assim que removesse a pedra sardenta de seu caminho. Por hora, aceitaria passivamente a única opção que o homem que mais amava no mundo lhe oferecia, por enquanto. — Como queira, Rodrigo — resmungou insatisfeita. Sozinho, Rodrigo apoiou os cotovelos na mesa de madeira polida, uniu as mãos na frente do rosto, os polegares sustentando seu queixo, e repassou aquela semana incomum. Não houvera progressos com Sara. Exames e mais exames foram feitos, mas ela só se lembrava de coisas que não o incluía: amigos, lugares e, mesmo que nunca tenha dito, namorados que tivera antes de conhecê-lo... O nome Robson o atormentava há dias. Estava estressado e não conseguia disfarçar seu desagrado, o que, por sua vez, deixava Sara incomodada com sua presença e gerava reprimendas da parte da doutora Tatiana. A doutora era o demônio em forma de mulher, não temia ele de forma alguma e gritava — sempre que podia — que ele era um ignorante e coisas piores. Ninguém havia sido tão dura com ele quanto à madrinha de Sara, nem seus pais. Não conseguia se concentrar, seus pensamentos tão calculistas tinham entrado em desordem e seu trabalho se encontrava atrasado. Era difícil não misturar o pessoal com o profissional quando sua vida se encontrava de ponta cabeça. Se fosse algum de seus funcionários já teria sido demitido, pois, nunca acreditara que problemas pessoais interferiam no trabalho. Seria tolerante dali para frente com esse tipo de caso. — Oi, sócio! O grito estridente ecoou pela sala e fez Rodrigo sobressaltar-se e encarar o homem a sua frente, seu melhor amigo e sócio, Júlio Castro, com raiva. Não que o outro se importasse. Anos de amizade tinham anulado qualquer precaução dele, se é que algum dia tivera. — O que quer com todo esse escândalo? Júlio não se importou com o tom nada cordial, estava habituado ao comportamento antissocial de Rodrigo. Fingindo não notar o olhar irritado que Rodrigo lançava em sua direção, andou até a cadeira ao lado do amigo e sentou. — Ouvi que o "supremo senhor Montenegro" sonhava acordado na reunião do balanço semestral. Rodrigo bufou. Odiava que falassem dele pelas costas. — Quem falou isso? Júlio deu de ombros, abrindo um sorriso enorme e despreocupado, sua marca registrada. — Ninguém em especial. Não serei responsável pela demissão de ninguém. — Onde estava com a cabeça quando montei sociedade com você? — Na grande soma de dinheiro que contribui — Júlio respondeu rápido, depois apoiou as mãos na mesa, a expressão ficando séria. — Mas não vim aqui lembra-lo disso. É o estado da Sara que o preocupa, certo? Rodrigo já imaginava o rumo que a conversa tomaria. Desde que vazara a notícia que sua mulher o deletara da memória - era isso que constava em uma certa revista de fofocas -, várias pessoas se aproximaram para "consola-lo". Demorou a Júlio se incluir na lista. — Não é da conta de ninguém minha vida pessoal — respondeu seco. — Sou seu amigo e da Sara também. Embora tenha me afastado dela. Rodrigo levantou a mão para deixar claro que não queria que ele falasse mais nada. — Não preciso de explicações sobre o porquê de ter se mantido afastado. — Rodrigo desviou o olhar e murmurou chateado. — Embora, nesse momento, Sara provavelmente lembra-se de você com carinho. — Provavelmente. — Júlio fez questão de deixar claro que ouvira o sócio. — Por isso pensei... Na verdade, é uma ideia da Laura... Não conseguiria pensar nisso sozinho... — Fale logo. — Laura quer visitar Sara. Terem sido melhores amigas talvez ajude na recuperação. Aquela oferta fez Rodrigo olhar o amigo com desconfiança. Júlio ajudar Sara em sua recuperação não era surpresa, mas Laura. — Laura quer tentar isso mesmo? Depois de tudo que a Sara disse da última vez que estivemos todos reunidos? — Você sabe que a minha esposa não é de guardar rancor. A ideia partiu dela, pode ter certeza que Laura só quer ajudar. Era tentador, mas Rodrigo temia o caos no hospital caso Sara fosse desagradável com Laura. Se restasse algo de sua tempestuosa esposa dentro de Sara, ela não gostaria de fortalecer os laços desfeitos. — Melhor esperar Sara voltar para casa, depois pensamos nessa possibilidade. — Não seja cabeça dura, Rodrigo, é uma boa alternativa. — Prefiro pensar que Sara recordara tudo assim que estiver em casa. Nesse caso, ela não vai aceitar a presença da Laura por perto. Júlio riu com nervosismo e coçou a nuca. Conseguia rever com clareza objetos pesados voando em sua direção e na de Laura. — Você está certo. Melhor não irritar a Sara. Estaremos à disposição no que precisarem, com ou sem a memória restabelecida. Mesmo sem demonstrar, Rodrigo ficou feliz por ter amigos dispostos a ajuda-lo, mesmo que isso significasse fechar os olhos para as atitudes desagradáveis que Sara tivera nos últimos tempos.
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